O rapper Lil Nas X foi formalmente acusado de quatro crimes graves, entre eles três acusações de battery (agressão) com lesão a policiais e uma de resistência a oficial executivo, conforme divulgado pelo escritório do promotor distrital de Los Angeles.
Na manhã de quinta-feira, 21 de agosto de 2025, ele foi encontrado caminhando pela Ventura Boulevard, em Studio City, apenas de cueca e botas de cowboy. De acordo com relatos policiais, Lil Nas X teria investido contra os agentes ao ser abordado, o que gerou as acusações atuais. Pouco depois, foi hospitalizado por suspeita de overdose e, em seguida, levado sob custódia, inicialmente sem direito a fiança até sua primeira audiência.
O caso atraiu ampla atenção internacional — vídeos e imagens circularam intensamente nas redes sociais mostrando o rapper em comportamento errático, como usar um cone de trânsito na cabeça e cantar trechos de uma música de Nicki Minaj enquanto caminhava quase nu. A situação acontece em um momento delicado para o artista, que recentemente havia falado publicamente sobre seus desafios pessoais e a busca por autoconfiança e renovação criativa em sua carreira musical.
Segundo o People, as acusações criminais podem acarretar anos de prisão, além de multas de até US$ 10 mil por cada crime de agressão, caso haja condenação. Ele compareceu a uma audiência de acusação em Van Nuys, mas até o momento não há maiores informações confirmadas sobre sua permanência na prisão ou possibilidade de liberação sob fiança.
Em resumo, o episódio evidencia os desafios de saúde mental enfrentados por artistas negros, cuja visibilidade pública intensifica pressões e expectativas, ao mesmo tempo em que se tornam mais expostos às consequências jurídicas e à repercussão midiática.
A Lenda da Rainha Errante de Lagos (Foto: Leo Purman)
A Mostra de Cinemas Africanos chega pela primeira vez ao Rio de Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB RJ), o único festival continuado no Brasil dedicado exclusivamente à exibição de filmes africanos contemporâneos. A programação integra a Temporada França-Brasil 2025 e será realizada entre os dias 10 e 15 de setembro. A entrada é gratuita mediante a retira de ingressos disponibilizados às 9h do dia da sessão na bilheteria física ou em bb.com.br/cultura.
Criada há oito anos, a Mostra já circulou por seis cidades brasileiras e levará ao Rio, 15 longas e 5 curtas de 11 países africanos. As produções já marcaram presença em festivais como Cannes, Locarno, Tribeca e Berlinale, e muitas delas serão exibidas de forma inédita no Brasil. A curadoria é assinada por Ana Camila Esteves, idealizadora do projeto, e pela ganense Jacqueline Nsiah, integrante do comitê de seleção da Berlinale.
Entre os destaques estão:
O Fardo da Nigéria (When Nigeria Happens, Nigéria, 2025), filme de abertura seguido de debate com a diretora Ema Edosio;
Demba (Senegal, 2024), novo trabalho do premiado Mamadou Dia, que encerra o evento com a presença do cineasta;
Sobre Quando Quebrei o Silêncio (On Becoming a Guinea Fowl, Zâmbia/EUA, 2024), produção da A24 dirigida por Rungano Nyoni, cineasta reconhecida por Eu Não Sou uma Bruxa.
O fardo da Nigéria (Foto: Iyua Alaha)
Naija Focus: a força do cinema nigeriano
Um dos pontos altos desta edição é o Naija Focus, recorte especial dedicado à cinematografia da Nigéria. O termo “Naija”, usado de forma afetuosa por nigerianas e nigerianos, reflete orgulho e identidade nacional. Além do filme de abertura, o foco reúne três longas de grande destaque:
A Lenda da Rainha Errante de Lagos (The Legend of the Vagabond Queen of Lagos, 2024), fantasia urbana do Agbajowo Collective, exibida no TIFF;
O Fim de Semana (The Weekend, 2024), de Daniel Oriahi, suspense que retrata a classe média nigeriana, exibido em Tribeca;
A Estrada da Liberdade (Freedom Way, 2024), de Afolabi Olalekan, denúncia da corrupção policial, também apresentado no TIFF.
O Naija Focus ainda traz cinco curtas em parceria com o S16 Film Festival, de Lagos, e uma exibição especial de Mami Wata (2023), de C.J. Obasi, com participação da diretora de fotografia brasileira Lílis Soares, vencedora em Sundance por este trabalho.
Demba (Foto: Sheldon Chau)
Formação e reflexão
A programação no Rio inclui ainda um minicurso sobre cinema nigeriano, ministrado por Ana Camila Esteves. A atividade mergulha no universo de Nollywood, uma das maiores indústrias cinematográficas do mundo, explorando sua história, estratégias de mercado, narrativas populares e presença nas plataformas de streaming.
Malcolm X (Foto: Warner Bros, cortesia da Everett Collection)
Denzel Washington e Spike Lee construíram, ao longo de mais de 30 anos, uma das parcerias mais marcantes do cinema. Descritos pelo próprio Lee como o “duo dinâmico, D e Lee”, eles se reencontram agora para o quinto trabalho conjunto: o filme “Luta de Classes”, que estreia na Apple TV+ no dia 5 de setembro.
A trajetória da dupla começou em 1990, com “Mais e Melhores Blues”. Para viver o personagem do drama musical, Washington aprendeu a tocar trompete, mostrando a dedicação que viria a marcar todas as suas atuações sob a direção de Spike. No ano anterior, Denzel conquistou seu primeiro Oscar com “Tempo de Glória”, enquanto Lee lançava “Faça a Coisa Certa”, obra que o projetou mundialmente.
Mais e Melhores Blues (Foto: Divulgação)
Em 1992, lançaram “Malcolm X”, considerado um dos melhores cinebiografias da história do cinema e exigiu de Denzel uma imersão completa, com um ano de preparação antes das filmagens. Spike enfrentou dificuldades para viabilizar a obra e se inspirou no próprio legado do revolucionário ao recorrer ao apoio de personalidades negras para financiar a produção. Para o cineasta, a atuação de Washington é “a melhor atuação em um filme biográfico de todos os tempos”.
Jogada Decisiva (Foto: Entertainment Pictures)
Nos anos seguintes, vieram produções como o drama esportivo “Jogada Decisiva” (1998) e o suspense policial “O Plano Perfeito” (2006), demonstrando a versatilidade da dupla e mantendo a boa recepção da crítica.
Agora, 19 anos depois do último projeto, eles voltam a dividir o set com “Luta de Classes”. O thriller é uma releitura contemporânea do clássico japonês “Céu e Inferno” (1963), de Akira Kurosawa, mas desta vez ambientado na indústria da música. No longa, Washington interpreta um magnata do ramo musical, famoso por ter “o melhor ouvido do negócio”, que se vê diante de um dilema moral ao precisar decidir entre vida e morte após um pedido de resgate.
Luta de Classes (Foto: David Lee)
Mais do que uma parceria profissional, a relação entre Denzel e Spike é de irmandade. “Nós somos irmãos. Simplesmente fazemos o que fazemos. Nos conhecemos bem… nossas famílias são muito unidas”, disse o diretor no ano passado. Washington retribui a admiração: “Spike é Spike de forma consistente, e eu adoro isso nele”, disse Washington. “E adoro trabalhar com ele, e trabalharia com ele novamente. Eu simplesmente gosto do jeito que o cérebro dele funciona.”
Eu me chamo Laís Gomes, tenho 38 anos, voo desde os 18 e, internacionalmente, desde os 26. Sou jornalista, profissão que me faz viajar de avião constantemente e, ainda assim, foi a primeira vez que vi um piloto negro. Na verdade, toda uma tripulação. Esse foi meu primeiro impacto ao chegar à África do Sul. E essa sensação de primeiras vezes seguiu ao longo da viagem. Assim como a sensação de pertencimento.
Foi a minha primeira vez na África, mas a sensação era de volta. De reencontro com velhos amigos, porque o povo sul-africano é extremamente gentil, prestativo e curioso em saber mais sobre as pessoas e o mundo.
Foram só dois dias em Johannesburgo, antes de ir para Cape Town, que equivaleram a uma faculdade de história. Da história que a história não conta, como cantou a Mangueira em 2019. Escolhi fazer os passeios sem agência, encontrando guias locais. O primeiro, Lungsta, nos conduziu por seu lugar: Soweto, uma periferia habitada por mais de 2 milhões de pessoas, onde aconteceu um fato que eles contam e recontam para que não se repita e não se esqueça.
E se eu te disser que uma linha, e não falo de uma linha imaginária, mas física, cortava Soweto em dois lados, onde brancos e pretos não podiam se misturar? Pisei e cruzei a linha várias vezes, meio inconsciente, até perceber o que e por que estava fazendo aquilo. Tudo isso enquanto escutava nosso guia contar a história de 16 de junho de 1976, quando crianças e adolescentes protestavam pacificamente, com cartazes, contra consequências do Apartheid, como a superlotação das escolas para negros e a proibição do ensino de sua própria língua, o bantu.
Eles foram recebidos por uma tropa de choque que respondeu com tiros e matou um adolescente de 13 anos, Hector Pieterson, que saiu carregado nos braços pela irmã. O registro foi capturado por jornalistas locais que acompanhavam a manifestação disfarçados e publicado no dia seguinte nos jornais. Hector virou símbolo da “revolta de Soweto”, que teve mais de 600 mortos e marcou para sempre a história daquele lugar.
Fotos: Lais Gomes
Me perguntei diversas vezes como eu nunca tinha ouvido falar dessa história na escola, em reportagens, vídeos ou podcasts. E então segui para a casa de Nelson Mandela e do reverendo Desmond Tutu, também no bairro, aprendendo mais sobre os heróis daquele país.
Visitei ainda o Museu do Apartheid, que já impacta na entrada separada para brancos e não brancos, e que conta, em detalhes, a história do regime separatista que durou até 1984 e cujo reflexo permanece não só em Johannesburgo, mas em todo o país.
Conheci também o Constitution Hill, complexo histórico que inclui uma cadeia onde ficaram presos políticos como Mandela e Gandhi. É de embrulhar o estômago. O mais impressionante é que não estamos falando de 100 ou 200 anos, mas de 45.
Apesar das mazelas, me encantou o que eles carregam: havia sorriso, alegria, orgulho, muito orgulho dos seus cabelos, da sua história, de quem são. E havia também a esperança e a certeza de que eles jamais serão colonizados novamente.
O que os meus olhos viram em Johannesburgo eu jamais vou esquecer.
Superdotação e altas habilidades tem sido um assunto recorrente nas redes sociais, mas este ainda é um cenário de pouco debate e reconhecimento entre as pessoas negras. O psiquiatra Lucas Mendes, 36 anos, descobriu apenas recentemente que é uma pessoa com superdotação, com o auxílio da neuropsicóloga Luciene Pires. Sendo um homem negro, ele conta que mesmo tendo passado em primeiro lugar no vestibular de Medicina aos 17 anos e conquistado vaga em uma das residências em Psiquiatria mais concorridas do país, nunca teve o diagnóstico sequer sugerido.
“Ninguém conseguiu considerar nos ambientes que eu passava, que um cara preto pudesse ser superdotado, mesmo vendo que tinha uma inteligência e um desempenho muito grande”, afirma em entrevista ao site Mundo Negro. Segundo Mendes, esse apagamento fez com que ele passasse anos desmerecendo suas conquistas, atribuindo-as à sorte ou ao apoio de terceiros. “Eu costumo dizer que eu passei com 17, mas eu demorei 17 anos para me apropriar do que eu fiz e para ter realmente orgulho do que eu fiz”, conta. Para ele, a invisibilidade do tema atinge de forma ainda mais dura pessoas negras, cujas capacidades intelectuais muitas vezes não são reconhecidas ou são distorcidas.
Lucas também explica o que são as altas habilidades e a superdotação. “São conceitos diferentes, mas que se resumem a mesma coisa, que é o potencial cognitivo de um indivíduo em áreas específicas. E aí que entra, por exemplo, um potencial elevado para destreza motora fina, que aí pode ser pintores, escultores, artistas, um potencial para destreza motora mais ampla, um atleta. A ideia das habilidades é que a gente tem múltiplas habilidades cognitivas que são desempenhadas de diversas formas.”
Foto: Divulgação
Leia a entrevista completa abaixo:
MN: O que exatamente significa “superdotação” e “altas habilidades”? Existe diferença entre os dois conceitos?
Altas habilidades e superdotação são conceitos diferentes, mas que se resumem a mesma coisa, que é o potencial cognitivo, especialmente cognitivo, de um indivíduo em áreas específicas. E aí que entra, por exemplo, um potencial elevado para leitura, um potencial elevado como músicos, para audição, para percepção de ritmo, um potencial elevado para destreza motora fina, que aí pode ser pintores, escultores, artistas, um potencial para destreza motora mais ampla, um atleta e por aí vai. Então a ideia das habilidades é que a gente tem múltiplas habilidades cognitivas que são desempenhadas de diversas formas e que algumas pessoas têm elas maiores ou menores. E aí quando a gente está falando de superdotação é um potencial global aumentado, tudo aumentado. Essa é uma das linhas de teoria quando se está falando de altas habilidades, são ou todas, ou várias, ou algumas habilidades específicas aumentadas ou várias habilidades específicas aumentadas.
Pro MEC [Ministério da Educação] e para o Ministério da Saúde, superdotação e altas habilidades são a mesma coisa. Ele é usado como conceito para formalizar o diagnóstico de avaliação educacional infantil como a mesma coisa. Alguns autores colocam no mesmo lugar e tem inclusive conceitualizações diferentes. De múltiplas inteligências, de potencial, de talento inato, então, são conceitos complexos. No Brasil, pelo MEC, é usado muito como o mesmo significado. Nas testagens neuropsicológicas, que são um tipo de exame que usa para fazer o diagnóstico, muitas vezes eles vêm como sinônimos. Mas, dependendo da linha e aí de forma didática, não é necessariamente isso, mas como é um jornal de forma didática.
MN: Como o imaginário social sobre inteligência e genialidade — muitas vezes associado a pessoas brancas — interfere na autoimagem e no desenvolvimento de pessoas negras superdotadas?
Eu, particularmente na minha experiência profissional, tenho recebido muitos pacientes na vida adulta, eu não atendo crianças e adolescentes, adolescentes eventualmente no contexto específico, mas trabalho mais com adultos, e tenho recebido muitos adultos com altas habilidades de superdotação. Alguns de um nível de excepcionalidade muito alto, mas que não tinham essa auto percepção e que isso gera uma distorção de auto percepção que a pessoa não consegue entender o funcionamento dela. Inclusive, os problemas do funcionamento, as dificuldades de se enquadrar em grupos, de socializar, de pertencer a grupos acadêmicos, de escola, de tudo, de lidar com autoridades intelectuais, e essas pessoas tentam acreditar que isso é um problema delas. Essa é uma distorção racial frequente, porque o racismo faz uma tradução simultânea de tudo que é bom em algo ruim, então a pessoa começa uma perseguição por um problema, e isso já aconteceu várias vezes, a pessoa vem atrás de um problema e problemas que já foram sugeridos, inclusive pelo viés racista, “ah, é borderline, é bipolar”, e quando você vai aprofundando tá em outro lugar. É uma intensidade emocional muito grande que vem de uma superdotação, mas um funcionamento muito acima da média, e aí entra o outro fenômeno racial que é o da validação externa.
É muito, muito, muito menos frequente a validação externa dessa superdotação e altas habilidades para pessoas negras e para as pessoas brancas inclusive é validado mesmo não tendo. Isso gera quase um sequestro e aí vem um fenômeno que é: ou você espera encontrar em pessoas brancas uma genialidade às vezes, até força com que ela esteja lá não estando. Às vezes é uma habilidade específica que inclusive não é nem uma habilidade nata, é um esforço repetitivo com a pessoa desenvolveu a habilidade e destitui isso quando ele existe numa pessoa negra. Então é bem comum, a gente vê isso muito em ambiente acadêmico. Especialmente eu vejo em pós-graduações, mestrado, doutorado, esse olhar que tende a hipervalorizar a inteligência da pessoa branca e desvalorizar da pessoa negra. E aí com certeza a autopercepção de valor cognitivo, intelectual, e aí vale para tudo, ela fica distorcida e como todo efeito do racismo ele faz uma distorção invertida negativa, então o que é bom, transforma em ruim. E aí a criança é o problema, criança que reclama muito, é uma série de questões.
MN: Quais são os sinais mais comuns que podem indicar que uma pessoa tem altas habilidades? E como investigar?
Essa é uma pergunta difícil, que eu particularmente não gosto muito, porque eu acho que tem que ser cuidadoso. Por exemplo, especialmente numa matéria, e não correr o risco de simplificar uma coisa que é muito complexa e que aí ocorra numa coisa que a gente vê bastante ultimamente e crítica muito, que é o hiperdiagnóstico de pessoas por detalhes. Então assim: “se a pessoa tem um hiperfoco ela é autista”. E aí eu realmente prefiro não dizer quais são os sinais mais comuns, porque é muito heterogêneo e é difícil de precisar, porque envolve um desempenho global da pessoa no ambiente onde ela está. Então vai variar de estímulos que ela recebe e tudo mais, mas no geral é avaliado pelo desempenho cognitivo, aí entra uma questão. Tem uma distorção muito frequente que a gente entende desempenho cognitivo como nota na escola. E nota na escola é uma das avaliações de um tipo mais específico de desempenho cognitivo que pode ter inúmeros outros. Motor, subjetivo, emocional, por exemplo, que é bem interessante de ver pessoas que têm uma habilidade emocional muito boa de comunicação e interação social, de linguagem, pessoas muito persuasivas e que têm uma capacidade de comunicação com outras pessoas muito interessante, muito grande. Então é muito difícil dizer sinais mais comuns porque varia, por exemplo, de que tipo de habilidade vai depender, o que você vai ver e o contexto. Então não dá nem para dizer isso.
E aí como é que investiga? Avaliação psicológica, avaliação pedagógica, ou psicopedagógica. Uma das formas interessantes é a testagem neuropsicológica, que é um exame realizado por psicólogos ou psicólogas, e que avalia objetivamente as funções cognitivas, e aí ele dá uma estimativa do coeficiente intelectual, do QI. Esse é um exame objetivo bem interessante para complementar a avaliação, e aí avaliação psiquiátrica, psicológica e pedagógica. Esses três juntos conseguem fazer esse olhar ampliado, porque a superdotação de altas habilidades é uma condição que é a forma de existir da pessoa. É o jeito dela, é a forma como ela veio, é a estrutura neurológica e psíquica dela. Então, você tem que ver aquilo ao longo da vida toda. Claro, ajustado para o contexto, mas tem que estar lá a vida inteira, então tem que fazer essa avaliação global. “Fiz uma prova de concurso difícil, passei, logo sou superdotado.” Não é simplista assim. Então eu tomaria esse cuidado. O melhor é procurar avaliações bem de qualidade para poder saber do que a pessoa irá rastrear por ela mesma. Até porque a gente já tem um senso comum e se tem um indício, vai atrás.
MN: Isso é possível ainda na infância ou adolescência?
É a melhor época. Quanto mais cedo, melhor. Claro, não vai fazer isso no bebê, mas quanto mais cedo for possível avaliar globalmente o funcionamento cognitivo de um indivíduo e ajudar ele a entender como ele é e até como ele destoa da média das pessoas, porque essa é a grande questão. Pessoas superdotadas e com altas habilidades, elas fogem da média de nível intelectual ou de nível de habilidades, e isso pode ser muito bom se ela desenvolver as habilidades ou entender o funcionamento dela, entender as questões envolvidas, as reações emocionais intensas, algumas características específicas dessas pessoas, isso vai ajudar muito, mas também pode ser uma fonte de sofrimento imensa por a pessoa não se enquadrar. Por ela não conseguir seguir um regime escolar habitual, por exemplo, porque ela acha chato, ela já entendeu as coisas, então é bem complexo.
No coração do Velho Cosme, a Casa Milagre surge como um refúgio que une beleza, memória e ancestralidade. À frente deste projeto está Cidoca Nogueira, mulher preta, empreendedora e guardiã de espaços de afeto e resistência. Com olhar sensível e intuitivo, Cidoca transformou seu jeito de viver e compartilhar em cada detalhe do lugar: cores, texturas, aromas e objetos que contam histórias, evocam memórias e celebram a presença negra.
A Casa Milagre vai muito além de um espaço para hospedagem: é um lar que convida à troca, à comunidade e à experiência de pertencimento. Cada elemento do ambiente reflete a trajetória de Cidoca e a potência de um projeto que nasceu da vontade de criar conexão, acolhimento e beleza em harmonia com a ancestralidade.
Em entrevista ao Mundo Negro, Cidoca compartilhou sua trajetória, suas inspirações e os conceitos por trás da Casa Milagre. Ela falou sobre a importância de criar um espaço que une estética, ancestralidade e comunidade, além de refletir sua visão de pertencimento, afeto e coragem para sonhar e realizar projetos como mulher preta e empreendedora.
Inspiração e Intenção
O que te inspirou a criar a Casa Milagre no Velho Cosme, e qual era o sonho ou a intenção por trás desse projeto desde o começo?
“Já nasci com um senso de comunidade muito presente! Fui filha única durante 21 anos, e meus pais sempre foram atentos, principalmente nos primeiros 6 anos de vida, quando o caráter está sendo formado. Preocupados em que eu não me tornasse uma criança e, mais tarde, uma adulta egoísta. Não daria certo ser preta, pobre, mulher e egoísta na vida. Desde criança, sempre compartilhei minhas coisas com as pessoas, e sigo minha vida dessa maneira. A Casa Milagre nasceu dessa memória afetiva de compartilhar, pelo apreço de acreditar no desejo, no conforto e nos desafios de viver em comunidade.”
Decoração e Conexão com a Ancestralidade
A decoração da Casa Milagre carrega elementos que parecem conversar com a ancestralidade, fé e afeto. De onde vêm essas escolhas e como elas refletem sua história e identidade?
“Tudo acontece de forma muito intuitiva. Eu não penso muito, apenas sinto, vou fazendo, colocando, arrumando, e quando vejo, está pronto. Meu coração me guia de forma natural. Tudo tem muito de mim, e acredito que tem a ver com minha fé e ancestralidade. Sinto Deus e os orixás na criação de tudo que tem poder, cor, cheiro, harmonia e sensibilidade estética. Crio meus espaços dentro do que sou, do que sinto e do que acredito.”
Estética, Política e Pertencimento
Você sente que a Casa Milagre é uma resposta estética e política dentro do território? Como ela rompe ou ressignifica a ideia tradicional de hospedagem?
“O Rio me trouxe um lugar de pertencimento, igual ao que só senti em Montes Claros, Sertão Norte Mineiro, onde nasci. Ser mulher preta, não ter sócios, ter 57 anos, não ter parceiros fixos e escolher acreditar é um desafio e uma coragem diária. Aqui, minhas trocas com pessoas pretas são frequentes: trocar ideias, ouvir, mostrar que é possível realizar e viver sonhos. Esse é o território Casa Milagre, onde pessoas pretas como eu sonham, adquirem, acreditam nas conquistas e possibilidades com coragem diária de não desistir. É se permitir ocupar lugares novos, expandir-se com coragem, presença, verdade e calma. Aqui é lugar de expansão e, ao mesmo tempo, recolhimento. Daí vem nosso diferencial, que rompe e ressignifica.”
Experiência de Hospedagem
Quando você olha cada detalhe da casa — texturas, objetos, cheiros — o que espera que as pessoas negras sintam ao se hospedar aqui?
“É uma casa comunitária, principalmente! Uma comunidade onde dividimos proximidade, pão e amor. Conversamos sobre nossas dores e unimos nossos sonhos. Fácil não é, mas acredito que é possível. Li esses dias que resgatar a aldeia é resgatar valores: comunidade é família estendida, irmãos, amigos próximos, pessoas que dividem o pão e também os mesmos valores. É essa a minha construção na Casa Milagre: proximidade.”
Milagre e Cotidiano
O que é milagre para você hoje como mulher preta, empreendedora, guardiã de espaços de beleza, memória e resistência?
“São as sutilezas de cada dia: o encontro entre mar e montanha, água doce e salgada. Luxo aqui é se sentir à vontade, é transformar uma construção grandona em lar de puro aconchego. Milagre mora aqui porque está dentro de tudo que habita esta casa, dentro de cada um de nós. Casa Milagre é um convite para mergulhar no calor e efervescência carioca com a certeza de que há um cantinho fresco e sereno à sua espera sempre que quiser voltar para casa.”
A Casa Milagre, sob o olhar sensível de Cidoca Nogueira, é mais do que um espaço físico: é um refúgio de afeto, ancestralidade e comunidade. Cada detalhe, cada textura e cada cor refletem a história de quem cria e acolhe, oferecendo um lugar onde pessoas negras podem sonhar, trocar experiências e se sentir pertencentes. Ao visitar a Casa Milagre, percebe-se que o verdadeiro luxo está na simplicidade, na proximidade e na capacidade de transformar um lar em um espaço de memórias, coragem e milagre cotidiano.
Neste 23 de agosto,Kobe Bryantcompletaria 47 anos de vida. Além de ser lembrado como um dos maiores jogadores da história do basquete, o atleta também conquistou o cinema. Em 2018, dois anos após sua aposentadoria das quadras, o astro da NBA venceu o Oscar de Melhor Curta-Metragem de Animação com ‘Dear Basketball’.
O filme, inspirado em um poema que o próprio Kobe escreveu para anunciar sua despedida do basquete, foi narrado pelo próprio atleta, dirigido pelo animador Glen Keane e contou com trilha sonora do John Williams. A obra traduz a relação do astro com o esporte que marcou sua vida, mostrando sua paixão, dedicação e o impacto transformador do basquete em sua trajetória.
Dear Basketball (Crédito: The Everett Collection)
A conquista, que fez de Bryant o primeiro ex-atleta profissional a ganhar um Oscar e o primeiro afro-americano a vencer na categoria, foi apenas mais uma das tantas do ex-ala-armador, que faleceu em 2020 aos 41 anos. “Eu me sinto melhor do que vencendo campeonatos. Isto é uma loucura, cara, loucura”, disse nos bastidores da premiação na época.
Para além das quadras, o seu triunfo no Oscar se soma a um legado que vai muito além do esporte: um símbolo de disciplina, superação e inspiração global.
Gabi Oliveira, uma influenciadora que se destaca por sua “maturidade, inteligência e consciência do papel” de comunicadora, compartilhou com Fátima Bernardes suas profundas reflexões sobre a estética da mulher negra, o poder da internet, a maternidade solo e a importância de uma rede de apoio. Com mais de 600 mil seguidores em uma única rede social, Gabi, de 33 anos, aborda suas vivências “com muita naturalidade” e “muita verdade”, características que Fátima Bernardes admira.
A Jornada de “Gabi de Pretas”: Despertar para a Estética e Identidade Negra
A entrada de Gabi Oliveira no universo digital, em 2015, foi motivada por uma questão pessoal e uma percepção de injustiça. O nome “Gabi de Pretas” surgiu de forma “básica” por não ser “muito criativa” na época, mas logo se tornou um marco em seu propósito. Sua transição capilar durante a universidade foi o ponto de partida para aprofundar a discussão sobre a estética da mulher negra, percebendo que “a conversa não terminava no cabelo”. As mulheres questionavam-se: “Ah, mas por que a gente fala tão mal do nosso próprio cabelo, da nossa própria estética? Por que a gente rejeitou tanto isso desde a infância? Porque foi ensinado que isso era feio?”. Essa indagação a impulsionou a usar a internet para promover um debate mais amplo e acessível sobre as raízes do racismo estrutural no Brasil, que impacta diretamente a autoimagem da população negra.
Influência e Internet: Compromisso com a Mudança Social
Formada em Relações Públicas, Gabi sentiu a “injustiça” de ver os importantes debates raciais ficarem restritos ao ambiente universitário, especialmente porque “a maior parte da população negra não vai acessar a universidade, infelizmente”. Apesar de se descrever como “muito tímida”, sentiu que “nasceu para isso”, e essa convicção a levou a “comprar uma câmera e ligar essa câmera”. A responsabilidade sempre foi um pilar em seu trabalho, ciente de que “cara, isso vai ficar na internet para sempre, para sempre; enquanto isso durar, enquanto essa plataforma durar, a responsabilidade eu sempre tive”. Sua atuação online se traduziu em um ativismo direto para pressionar a indústria da beleza. Gabi recorda a invisibilidade do mercado da mulher negra, onde as bases de maquiagem nacionais, por exemplo, “iam só até o tom da Tais Araujo até pouco tempo atrás”. Sua argumentação com as marcas era estratégica e incisiva: “Gente, vocês querem lucro? Tem um público aqui que vocês não estão atendendo, que está sedento para ser atendido, e vocês estão ignorando simplesmente por conta do racismo, basicamente”. Ela também enfatizou a necessidade de capacitar as equipes de atendimento nas lojas, pois “não adianta ter o produto e a pessoa se sentir intimidada na hora de entrar na loja, se sentir desrespeitada, não ter um bom atendimento; então precisa também ter esse treinamento para quem está na loja atendendo, não?”. A alegria de Gabi é ver o impacto dessas mudanças, como crianças negras hoje exibindo seus cabelos naturais “cacheados e crespos” nas praças, algo inimaginável no passado. Para ela, “sim, valeu muito a pena produzir conteúdo pra internet e produzir e gerar uma certa pressão na sociedade também para que as coisas mudassem”.
Maternidade Solo e Adoção: Planejamento, Flexibilidade e Autonomia
O desejo de ser mãe sempre acompanhou Gabi, que “sempre pensou desde novinha” em ter filhos. A escolha pela adoção solo de dois irmãos biológicos mais velhos, um deles com deficiência intelectual, foi um processo consciente que começou de forma prática: “Literalmente joguei no Google como iniciar um processo de adoção”. Gabi compreendeu que a prioridade é sempre o bem-estar da criança, afirmando que “a nossa prioridade é a criança encontrar uma família que consiga suprir as demandas dela”, e não se deve tentar ser “super-herói” para evitar mais rompimentos de vínculo. Ela também ressalta a realidade das crianças em abrigos, onde “a criança basicamente é criada ali no carrinho; necessidades básicas: alimentar, dar banho e botar para dormir”. A chegada dos filhos trouxe uma intensidade inesperada, com “privação de sono” e a sensação de estar “igual um zumbi” nos primeiros meses. Contudo, Gabi construiu uma “rede bem grande” de apoio, diferenciando sua maternidade solo planejada de situações de abandono: “eu não sei exatamente esse lugar, porque foi planejado ser solo; é muito diferente da mulher que planeja compartilhar a maternidade e depois se ver abandonada”. A experiência da maternidade ensinou-lhe a lidar com o inesperado: “o imprevisível tá ali pra gente lidar com ele”. Para Gabi, “um dos grandes ensinamentos, para mim, foi mais ainda a flexibilidade, porque eu comecei a perceber ainda mais que não era tudo 8 ou 80; nem tudo sai como planejado ou como você quer”. Ela preza pela autonomia dos filhos, inclusive do que tem deficiência intelectual: “Mário, eu não estou criando filhos para ficarem na minha dependência para sempre; independente de ele ter deficiência intelectual, a gente preza pela autonomia dele”. Sobre o uso de telas, Gabi demonstra que é possível reverter hábitos, mesmo que já estabelecidos. Aos pais e mães “agoniados”, ela afirma: “Dá para limitar depois; eu fui e a primeira coisa que eu fiz foi tirar o tablet”. Sua postura é de firmeza e coerência: “a gente tem que ser firme, né? A gente tem que ser o adulto da relação; nós somos os adultos da relação, então se é não, é não”. Ela também aborda a história de origem dos filhos com naturalidade, afirmando que “a gente trata com muita naturalidade a história deles; eu falo passo a passo, toda vez que eles perguntam, falo o nome dos pais biológicos”, sem anular suas raízes. A maternidade, apesar dos desafios, trouxe-lhe uma “liberdade muito profunda”, mudando sua perspectiva e fazendo com que “muito pouca coisa me abala” hoje em dia.
Pilares e Valores: Família, Educação e Confiança
A base de quem Gabi Oliveira é hoje, segundo ela, é “definitivamente a minha família, principalmente a minha mãe; com certeza, ela sempre foi uma referência para mim”. Ela se sente “muito amada e muito protegida”, com uma “proteção de saber que eu tenho para onde voltar”. A sabedoria de sua avó analfabeta também foi fundamental: “A gente aprende estudando, mas a gente também aprende ouvindo”. Seu pai, um homem negro que sempre defendeu a ocupação de espaços, incutiu nela a convicção de que “a gente pode entrar em qualquer lugar”. Seus pais, segundo Gabi, “sempre confiaram muito, assim: não, a gente confia que vai dar certo, a gente confia que você vai conseguir, a gente confia”, uma confiança que ela busca replicar na educação de seus filhos. Gabi compartilha que a maternidade também a abriu para novas experiências, inclusive em relacionamentos. Ela tem saído bastante e está aberta a conhecer novas pessoas, com uma nova perspectiva: “não deu certo, no dia seguinte eu tenho que acordar, botar as crianças pra escola, entendeu? Não dá mais para ficar”. Essa tranquilidade e “liberdade muito grande” são frutos da experiência de ser mãe, que a fez perceber que “o relacionamento vai no momento que é bom para você, é para somar e tal”.
Emagrecer após a maternidade não é só disciplina. Mesmo para atletas de elite, a combinação entre mudanças hormonais, privação de sono, rotina de cuidados e ajustes metabólicos pode tornar a perda de peso um processo lento e frustrante. Foi esse o cenário descrito por Serena Williams ao relatar, em vídeo, que decidiu usar a chamada caneta emagrecedora, medicamento da classe GLP-1, para manejar o peso depois das gestações.
Serena conta que tenta perder peso desde o nascimento da primeira filha, em 2017, sem atingir o resultado desejado apesar do alto volume de treino. “Eu treinei, corri, nadei, eu fiz de tudo. Joguei Wimbledon, joguei Grand Slams”, diz. Após a segunda filha, o padrão se repetiu, ela perdia rapidamente os primeiros quilos do pós-parto e estagnava em seguida. A fala sintetiza um dilema comum para muitas mulheres no puerpério, quando a rotina volta a incluir trabalho, treino e vida doméstica, mas o corpo demora a responder.
A decisão de iniciar o tratamento veio depois de observar amigas e pessoas próximas usando a medicação. “Talvez eu devesse tentar. Não. Talvez eu devesse tentar. Não. Até que pensei, eu tenho que tentar, já tentei todo o resto”, afirma. Serena explica que passou a encarar o processo como uma adversária no esporte, com estratégia e leitura de jogo. “Eu não estava conseguindo vencer essa oponente, essa oponente chamada perda de peso. Então deixei eu tentar algo novo.” Segundo ela, o diferencial foi “fazer exatamente as mesmas coisas, mas finalmente ver resultados”. O marcador simbólico dessa virada veio em uma imagem simples e potente, “Eu finalmente entrei na saia jeans”, frase que traduz mais do que uma medida, traduz sensação de avanço.
As críticas, comuns quando mulheres escolhem o caminho que funciona para seus corpos, não a abalam. “Eu não ligo para haters, eu tive a vida inteira. Eles podem só entrar na fila”, diz. E completa, “Eles têm a própria opinião. Todo mundo tem direito a uma. E por que eu deveria me importar com o que pensam? Eu não me importo.” O recado central é de autonomia, especialmente em um tema cercado por julgamentos morais e equívocos sobre esforço, disciplina e resultado.
O relato recoloca no centro do debate um ponto essencial do pós-parto, atividade física é importante, mas nem sempre basta. Cada corpo responde de um jeito. Platôs de perda de peso são frequentes, e fatores como amamentação, histórico de gestação, qualidade do sono e retorno ao trabalho influenciam a resposta. Nesse contexto, a caneta emagrecedora, medicamento da classe GLP-1, entra como ferramenta clínica que deve ser prescrita e acompanhada por profissionais de saúde, não como atalho, mas como parte de um plano estruturado.
Ao narrar tentativas, frustrações e escolhas, Serena amplia a conversa sobre saúde e maternidade. Sua fala desloca a ideia de que resultado é produto exclusivo de força de vontade e lembra que, para muitas mulheres, o manejo do peso exige estratégias combinadas, com apoio técnico.
Em junho deste ano, tive a honra de participar do projeto Feira Preta Cria Gastronomia, realizado em Cachoeira, na Bahia, a convite do Instituto Feira Preta e do Instituto Assaí. Estive ali como especialista, mas sobretudo como agricultora familiar que vive na pele os desafios e as possibilidades de transformar a terra em alimento e o alimento em sustento digno. Compartilhei erros, acertos e estratégias que tenho utilizado para transformar minha produção agrícola em produtos valorizados, nutritivos e desejados — caminhos que me levaram à tão sonhada autonomia financeira por meio do trabalho no campo.
Esse percurso, no entanto, não foi linear. Como muitos pequenos produtores, comecei com mais vontade do que estrutura. Cresci entre os pés de cacau, e quando pude, investi todo meu capital na compra da terra. Tinha certeza de que seria um bom negócio. Mas a falta de planejamento e a ausência de visitas a outros produtores para entender os desafios da cadeia produtiva foram erros importantes que comprometeram o início da jornada.
Por outro lado, acertei ao manter o hábito de registrar tudo: gastos, ganhos e o lucro real das vendas. Isso me deu clareza para perceber que a venda de amêndoas de cacau e frutas frescas, sozinha, não sustentaria o sonho — sequer cobria os custos de manter um funcionário fixo. Era preciso reorganizar a produção e o modelo de negócio.
Comecei então a buscar formações gratuitas e a adaptar o ritmo da roça à minha própria força de trabalho. Passei a contratar mão de obra apenas nas épocas de colheita, pagando por diárias. O valor era mais alto, mas o custo total, menor e pontual. Ainda assim, outro desafio persistia: a perda de alimentos frescos — frutas, ervas, sementes — que estragavam no campo por falta de compradores e pela desvalorização dos ingredientes regionais.
Foi aí que encontrei um novo rumo. Resgatei meus conhecimentos prévios em produção de geleias, desidratação de frutas e fabricação de chocolates. Comecei com pequenos equipamentos que já possuía, e mais tarde, passei a alugar maquinário para aumentar a produtividade sem elevar o custo fixo com pessoal. Aos poucos, fui transformando os excedentes em produtos prontos para consumo e levando essa nova linha de produção para as feiras locais.
Desse esforço nasceu a Mimos da Mata, meu microempreendimento individual. Hoje, produzimos e comercializamos chocolates artesanais, doces, plantas medicinais, manteigas e óleos vegetais — todos elaborados com matéria-prima cultivada em minha terra, respeitando os ciclos naturais e os saberes da agricultura familiar.
Com o tempo, a rede de apoio também cresceu. Hoje, contamos com três colaboradoras eventuais, uma colaboradora fixa na produção dos Mimos e um colaborador responsável pelo trabalho na terra. Também contamos com o apoio do coletivo Mulheres Pretas do Chocolate, além de amigos e amigas que se somam a nós nessa caminhada. Cada pessoa que escolhe comprar nossos produtos ajuda a financiar esse projeto que é, ao mesmo tempo, pessoal, coletivo e ancestral.
O caminho da roça até a mesa passa por muitas mãos, decisões e aprendizados. Aprendi que agregar valor à produção local é mais do que uma estratégia econômica: é um ato de resistência, um resgate cultural e um compromisso com a sustentabilidade. Quando respeitamos os tempos da terra, dos frutos e da nossa própria força, conseguimos criar alimentos que nutrem de verdade — o corpo, a memória e os territórios.
Síntese: aprendizados e dicas práticas para quem quer empreender no campo
A experiência me ensinou que alguns elementos são fundamentais para transformar a produção agrícola em um negócio sustentável e próspero. Abaixo, compartilho algumas dicas que podem ajudar outras pessoas nesse caminho:
1. Identificação e gestão dos recursos disponíveis
Antes de investir, olhe ao redor: o que sua terra oferece? Que equipamentos você já tem? Que saberes você domina? Começar com o que está disponível reduz riscos e acelera resultados.
2. Criatividade é essencial
Transformar frutas que iriam se perder em doces e geleias, usar ervas para chás ou cosméticos, vender kits ou presentes temáticos… tudo isso é forma de dar valor à produção. Criar, experimentar e inovar é parte do processo.
3. Planejamento de negócios
Registrar todos os custos, lucros e formas de venda permite entender onde o negócio realmente dá retorno. Um plano simples, com metas e estratégias, já faz grande diferença.
4. Avaliação constante dos resultados
Mensalmente, compare o que foi previsto com o que foi alcançado. Essa prática ajuda a tomar decisões melhores, corrigir rotas e enxergar oportunidades.
5. Corte de gastos com inteligência
Nem sempre contratar mais gente é a solução. Às vezes, terceirizar tarefas pontuais ou alugar equipamentos pode reduzir custos e aumentar a produtividade.
6. Propaganda boca a boca funciona — e muito!
Clientes satisfeitos são os melhores divulgadores. Incentive feedbacks, conte sua história, esteja presente nas feiras, nas redes sociais e onde seu público está. Quem conhece sua trajetória passa a valorizar muito mais seus produtos.
Seja no campo ou na cidade, produzir com consciência e propósito é uma forma poderosa de transformar vidas. A terra ensina, e quem escuta com o coração aprende a cultivar não só alimentos, mas também autonomia, dignidade e futuro.
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Texto: Nara Rodrigues[@mimosdamata]. Filha de agricultores, produtora de cacau, chocolateira criadora do chocolate Roxo e empreendedora do ramo da gastronomia em Ilhéus (BA). Farmacêutica especializada em planta medicinal, mulher preta, mãe, Livre, apaixonada por natureza. É fundadora da Mimos da Mata, negócio que produz chocolate sem leite ou aditivos e com alta concentração de cacau, geleias artesanais ricas em fibras, frutas e plantas medicinais desidratadas, óleos e manteigas prensadas a frio, cosméticos e produtos de limpeza naturais e biodegradáveis que vem ganhando cada vez mais espaço no mercado e fortalecendo a sua comunidade. Na Mimos da Mata, Nara é protagonista em todos os processos do negócio, do manejo dos pés de cacau à embalagem dos produtos, passando pela gestão.
Esse conteúdo é fruto de uma parceria entre Mundo Negro e Feira Preta.