Série ‘Os Quatro da Candelária’ resgata humanidade e sonhos de crianças vítimas da violência

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Série ‘Os Quatro da Candelária’ resgata humanidade e sonhos de crianças vítimas da violência
Fotos: Guilherme Leporace/Netflix

“Eu acho que o espectador pensar que rua e criança não é algo que combina, e que a gente precisa rever isso. A gente teve aí um período longo, entre 2005 e 2010, que a gente tinha reduzido absurdamente o número de crianças na rua. E a gente observa que principalmente esse período pós-pandemia, isso aumentou absurdamente. A volta de utilização da cola, o crack, e isso é muito, muito ruim. Se você tem umas gerações que não têm condições de ter acesso à saúde, educação, saneamento, a uma cama, um ar, a afeto, a gente compromete o nosso futuro enquanto nação”, essa é a mensagem principal que Luís Lomenha, diretor da série “Os Quatro da Candelária” quer passar para os expectadores ao contar as histórias de quatro crianças e adolescentes vítimas da chacina que aconteceu em julho de 1993.

Tendo como referência o crime brutal que aconteceu há 30 anos e deixou 8 mortos, seis deles menores de idade e mais dois jovens, que todas as noites dormiam juntos a outras dezenas de crianças nas escadas da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, e que foram violentamente assassinadas por 3 policiais e um ex-PM, a série de ficção acompanha a história dos personagens Douglas (Samuel Silva), Sete (Patrick Congo), Jesus (Andrei Marques) e Pipoca (Wendy Queiroz), mostrando a rotina dos quatro amigos até o momento da chacina.

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OS QUATRO DA CANDELARIA. Samuel da Silva Martins as Douglas in Os Quatro da Candelária. Cr. Guilherme Leporace/Netflix © 2024

Para o diretor, contar a história sob o ponto de vista dessas crianças, mostrar seus desejos e suas necessidades, para além do crime que as vitimou ou que traumatizou outros tantos sobreviventes é “devolver essas crianças à infância, ressignificar essas histórias, devolver a humanidade para elas”, afirmou. “Tem uma frase de um samba da Porto da Pedra, “Eu venho do Carnaval”, que diz ‘liberto permanece o pensamento, ele foi o meu alento quando o corpo foi prisão’. É um samba sobre Nelson Mandela. Então, começar a construir essas narrativas pelo sonho foi um dos objetivos para a gente poder devolver essa humanidade e infância para essas crianças. Sonho é algo que é inerente, eu acho que é todo ser humano, e essas crianças também sonhavam, mas até o sonho delas foi interrompido. Foi isso que a gente tentou fazer”, destacou Lomenha em entrevista para o site Mundo Negro.

Para dar ainda mais veracidade à história, os diretores contaram com o apoio de sobreviventes da chacina, como a articuladora social Erica Madrinha e José Luiz, conhecido como Snoop. Ele acompanhou as gravações, auxiliando os atores nas performances em cena, contou o diretor Luís Lomenha: “Eles partilharam com a gente como era a vida, de fato, em frente à Candelária. Tinham mais de 70 crianças, cada um tinha uma idade diferente, então eles contaram a partir do ponto de vista deles o que eles viveram e essas histórias misturadas com outras histórias deram origem aos quatro personagens. A gente sempre que precisou foi muito mais que a ficção, mas tudo aquilo ali estava muito no universo de sonho e de desejo deles, como o chocolate, como a ideia do trem, enfim, a noção de família, muito diferente da noção de família que a gente entende, as condições que os levaram à rua, que é muito próxima um do outro, e é muito próxima de todas as crianças em situação de rua do Brasil. Tentamos dialogar com todas essas questões e criar uma história que, de fato tivesse uma potência, que ela não operasse no universo da carência, mas sim na potência”.

Marcia Faria, que dirige a série ao lado de Luís Lomenha destacou que a história dessas crianças ainda precisa ser contada: “Quando o Luiz me convidou para dirigir, eu li os roteiros, eu entendi imediatamente que eu precisava fazer parte dessa série, que essa história precisava ser contada”, destacou Faria. “A série fala sobre isso, sobre o ponto de vista, isso foi fundamental, de a gente trazer humanidade, de a gente tirar da estatística, de a gente falar sobre os desejos, falar sobre os sonhos dessas crianças que tiveram sua vida brutalmente interrompida ali”, ressaltou.

Três policiais e um ex-PM foram acusados pelo crime que matou oito crianças e adolescentes. Dois dos policiais acusados e o ex-policial foram condenados a prisão com penas que somadas superam 200 anos de prisão. Apesar disso, a pena foi extinta e os acusados encontram-se em liberdade. Informações do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJSP), afirmam que o PM Nelson Oliveira dos Santos ficou preso até a extinção da pena, em 2008. Enquanto o PM Marco Aurélio Dias de Alcântara e o ex-PM Marcus Vinícius Emmanuel Borges receberam indultos e foram liberados em 2011 e 2012. Maurício da Conceição Filho morreu em 1994, antes de ir à julgamento.

Durante a entrevista, Lomenha pontuou a necessidade de olhar para as crianças e para as violências que elas ainda sofrem, sobretudo aquelas que vivem nas ruas. O diretor afirmou ainda que a escolha de usar o lúdico e a fantasia para falar sobre essas crianças e jovens também foi uma forma de acessar mais pessoas: “Acho que a série passa essa mensagem num trânsito do realismo com a fantasia, com a ação, com a aventura, com uma linguagem que não é uma linguagem militante, didática, que afasta um espectador que tenha um pensamento mais conservador. Acho que ainda o conservador vai olhar e vai entender a mensagem ali. Acho que não entende o desumano, mas o conservador vai conseguir compreender. Nosso objetivo é chegar ao maior número de pessoas possível, não é pregar para convertido. De fato, a série não acredito que vá contribuir para uma revolução social, mas se ela revolucionar o próprio audiovisual em termos de linguagem, acho que já fizemos grandes coisas”.

Dados do Panorama da Violência Letal e Sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, apresentados durante o Fórum Brasileiro de Segurança Pública deste ano mostram que jovens negros somam 83,6% das vítimas letais, sendo a maioria deles do sexo masculino. Cauê Martins, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que “crianças de até 9 anos frequentemente sofrem violência dentro de suas casas, perpetrada por pessoas conhecidas, muitas vezes familiares. Quando analisamos, por outro lado, as mortes de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos, o palco se desloca para a violência urbana, a arma de fogo passa a ser o principal instrumento utilizado nos crimes e o local das ocorrências de violência letal muda significativamente, saindo do ambiente doméstico em direção à via pública”.

Falar sobre o tema ainda é algo urgente e mais do que necessário, considerando a situação atual de violência a que estão submetidas as crianças e os adolescentes, em especial os negros, no Brasil. Pode ser doloroso acompanhar o sofrimento desses quatro personagens da ficção, mas é ainda mais intenso e avassalador pensar que as experiências de Douglas, Sete, Jesus e Pipoca são mais reais e estão mais próximas de nós do que podemos imaginar.

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