A terapia entrou na minha vida pela primeira vez aos 20 anos, quando saí da casa dos meus pais no interior de SP para trabalhar na capital. Meu emprego era um ambiente tóxico, eu era a única negra, o que me fez sentir mais falta da minha família.
Um homem branco foi o primeiro psicólogo que consultei. Era o que meu convênio cobria na época e ele nem era ruim. Eu falava, ele ouvia, dava sua opinião, muitas acertadas, mas acaba a sessão, eu já voltada para minhas atividades sem muitas inquietações ( que faz terapia sabe do que estou falando).
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As outras terapeutas que escolhi depois foram duas mulheres brancas. Uma tinha uma insistência em falar das minhas fragilidades, mas por algum motivo isso me incomodava, talvez pelo fato de uma branca querer explorar as minhas dores, me fazia sentir como se por eu ser negra, ela achasse que minha vida tivesse sido pior do que realmente foi. Quando ela me “cutucava”, eu controlava meu choro. Saía do consultório com dores de cabeça e chorava em casa. Depois de poucas sessões, desisti.
Por conta de questões de ansiedade e distúrbios alimentares, tentei a terapia mais vez. A psicóloga era tipo uma coaching que me ajudaria a ter mais consciência da minha alimentação. Durante o tratamento, eu tive um problema grave de saúde e quase morri. Ao voltar à terapia, minha felicidade por ter sobrevivido foi tão grande que a terapeuta me deu alta. Simples assim. Ela não percebeu que minha euforia não significava que eu estava bem. O período de internação foi bem traumático, não só para mim, mas para minha família, incluindo minhas filhas, mas não cabia a mim insistir com quem achava que eu não precisava me curar. Eu provavelmente era a negra forte, com tudo sob controle na visão daquela psicóloga.
Cinco anos depois, senti novamente que precisava de ajuda. Dessa vez queria uma pessoa negra. Uma mulher de preferência. Quando eu era mais jovem eu não racializava as escolhas dos profissionais que cuidariam de mim. Bastava ser bom ou indicado por alguém.
Conheci a Camila por meio de um grupo de psicólogos negros do Facebook. O que me chamou a atenção foi o cartão dela, com várias referências africanas. Mesmo sendo antes da pandemia, escolhi o atendimento online que seria mais compatível com minha agenda corrida.
Ela poderia ser uma parente minha. Falar sobre mim para alguém parecido comigo foi algo incrível, mas também complexo. Voltando à minha versão vítima apontada por uma das psicólogas brancas que consultei, a Camila me trouxe para esse lugar novamente , mas não de uma forma que eu me sentisse desconfortável. Com ela me permiti ser frágil, abrir sobre minhas dores, medos e arrependimentos, porque as similaridades que mulheres negras têm, em suas vivências, me fez sentir nela, um terreno seguro para me despir emocionalmente.
A negritude, a ancestralidade, a feminilidade negra fazem parte das nossas sessões. As reflexões trazidas por ela me fizeram repensar a maneira que fui criada por uma mulher também negra e como quero educar minhas filhas, enquanto mulheres negras.
O nosso mental não pode fugir do contexto do que significa ser negro no mundo. Desassociar minha mente do que o meu corpo representa em uma sociedade racista, é apagar minha identidade. Um terapeuta branco, por mais esforçado que seja, não sabe o que é esse lugar. Não importa o quanto eu descreva como aquele olhar no restaurante chique me incomodou, é preciso ser negro para saber como olhares ferem a nossa humanidade, onde dói e o porquê. Um terapeuta negro sabe.
Como mãe, criando mulheres negras, a Camila me faz rever a minha infância e abre minha mente para que eu possa criá-las de maneira mais livre do que eu fui e desenvolver o potencial delas em um nível que é negado, para crianças e jovens negros, em espaços fora de casa.
Pensamentos da filosofia africana usados pela minha terapeuta, me ensinaram a rever a minha forma de racionalizar as relações. Muito do aprendo com ela sobre valores ancestrais, nunca me foi ensinado e ao mesmo tempo é o que faz mais sentido para alguém como eu.
Falar de situações racistas então, me traz muito alívio. Não preciso explicar por que foi racismo. Ela também sofre. Ela sabe.
Eu tive psicólogos brancos que não eram ruins, porém não posso fazer de conta que certos olhares deles quando eu descrevia situações relativas à minha negritude me incomodavam. Eles não sabiam fazer esse tipo de escuta. Tem sessões com a Camila que eu xingo pessoas brancas que me trataram mal. O racismo tem alto impacto da minha vida profissional. Acredito que com um terapeuta branco eu não falaria sobre isso, não por medo de ofender, mas pela sensação de que não haveria o entendimento.
Ser mulher negra no Brasil é ser muita coisa. Ter a mente livre em um ambiente que te subestima é quase enlouquecedor. Só um terapeuta negro pode lidar com a mente de quem vive nessa realidade, porque essa provavelmente é a vida dele também.
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