Texto: Hédio Silva Jr. e Ana Luiza Teixeira Nazário
A Lei nº 14.532, aprovada logo após a posse do Presidente Lula em 2023, trouxe mudanças importantes na chamada “Lei Caó” (Lei nº 7.716/89), que trata dos crimes raciais. Embora tenham ocorrido alguns avanços, essas mudanças também mostram que a lei foi aprovada às pressas e sem muita preocupação com as vítimas.
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Primeiro, vale referir um ponto positivo dessa nova lei: ela agora garante assistência jurídica especial para vítimas de racismo. Isso significa que, em qualquer processo, seja ele civil (como uma indenização, por exemplo) ou criminal, a vítima deverá estar acompanhada por um advogado ou defensor público.
Esse direito está baseado na garantia constitucional de acesso à Justiça e no que diz à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, que estabelece que todos têm direito a um tratamento justo e igual, especialmente em casos de discriminação racial.
Porém, nem todas as mudanças devem ser tão bem recebidas. A nova lei criou uma situação, no mínimo, curiosa: a possibilidade de aumentar a pena para crimes raciais quando eles ocorrem em “contextos de descontração, diversão ou recreação”. Ou seja, se alguém cometer racismo em uma brincadeira ou momento de lazer, a pena pode ser mais severa. Isso criou uma espécie de “racismo recreativo”, em que a pessoa, mesmo sem intenção de discriminar, acaba sendo responsabilizada por causar ofensa.
Esse ponto deveria chamar a atenção não só de juristas, mas de toda a sociedade, já que a punição para quem comete racismo de forma intencional (dolosa) acabou sendo inferior do que para quem faz isso sem intenção (culposa). Isso revela o verdadeiro desleixo na forma como o Congresso lidou com um tema tão sério como o racismo.
Outro problema é que a nova lei também mexe com questões religiosas, mas deforma que parece-nos proposital para não ser efetiva. A Lei nº 14.532/2023 dispõe sobre crime racial em contexto religioso ou com o objetivo de obstar, impedir ou atacar manifestação ou prática religiosa, com pena de 2 a 5 anos de reclusão e de 1a 3 anos, respectivamente. Entretanto, no Código Penal há a figura do art. 208, que trata do impedimento ou perturbação de culto cuja pena é de detenção de um mês a 1 ano.
E qual o problema aqui? A Constituição Federal prevê que o réu deverá se favorecer da norma mais benéfica, logo, de nada valem as inovações trazidas pela lei em relação ao contexto religioso enquanto o ilícito previsto no Código Penal não for revogado.
Por fim, uma das novidades mais controversas da lei é que, na interpretação de atos discriminatórios, os juízes devem considerar como discriminatória qualquer atitude que cause vergonha, humilhação ou constrangimento a grupos minoritários. No entanto, definir quem são essas “pessoas minoritárias” parece-nos bastante complexo. Desde 2020 o IBGE já mostra que a população negra é maioria no Brasil, o que pode gerar complicações na hora de aplicar a lei. Nada nos leva a desacreditar que não demorará muito para algum juiz “cidadão de bem” tratar os brancos como minoria envergonhada pelos negros algozes.
A verdade é que a Lei nº 14.532 trouxe mais retrocessos do que avanços, resultado da falta de comprometimento e empatia com que “assunto de preto” é tratado no Brasil.
Hédio Silva Jr.
Advogado. Mestre em Direito Processual Penal e Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Coordenador-executivo do Instituto de Defesa dos Direitos da Religiões Afro-brasileiras (IDAFRO) e Fundador do JusRacial.
Ana Luiza Teixeira Nazário
Advogada. Mestre em Direitos Fundamentais e Justiça (UFBa). Especialista em Ciências Penais (PUCRS). Coordenadora de Projetos Acadêmicos do JusRacial.
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