O humor (do) negro

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O humor (do) negro

Por Fernando Sagatiba*

Você percebe a postura do artista de acordo com o público que ele aborda. Depende também de como você encara o humor e o que você faz com essa responsabilidade. É por dinheiro? É por talento? Que mensagem é essa? E, independente da resposta, você vai, assim como tudo no seu comportamento (consciente ou inconscientemente), refletir o seu caráter, mente e coração. A situação do negro nesse país é delicada, há o histórico de escravidão que data de mais de 300 anos, há mais de 125 que uma lei foi assinada – literalmente – pra inglês ver, mas de fato esse direito só se alastrou a todo povo pobre do Brasil, o que, pasme, é composto por uma maioria negra. Negra sim, somos mestiços, miscigenados e tal, mas a raiz é (predominantemente) negra para a maioria.

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Ocorre que, na prática, a Lei Áurea só tirou o negro da senzala por uma questão econômica, por conveniência da Era Industrial que estava eclodindo e já não comportava a antiquada mão-de-obra escrava. Só que os navios negreiros se transmutaram em camburões (já dizia O Rappa), feitores se tornaram policiais, boa parte da população (tá, não tão boa no sentido de adjetivo) e no Estado como um todo. As mídias se incluem, ou você vai me dizer que a ausência de negros na TV ou revistas de moda, entretenimento e essas coisas é só uma coincidência? Não, é da mesma elite dominante que afirma que não somos racistas e que existe uma (lendária) democracia racial no Brasil. Tudo um papinho condescendente pra manter o racismo velado e com viés de ‘mal entendido’ (por isso tanta gente insiste em dizer que o negro é que vê racismo em tudo). Já que falei em mídias, vamos tecer considerações sobre a questão do negro no humor em três situações distintas: Érico Brás, Marcelo Marrom e Rodrigo Santana.

Vamos começar por Marcelo Marrom (que não é o único nessa situação, mas, talvez, o mais proeminente no momento). Ele é um ator que se vale de pautas-clichês para fazer rir. Clichê, na verdade, é um eufemismo meu (desculpaê) para caricatura auto-depreciativa. Frequentemente ele faz “piadas” como “estou aqui pra cumprir cotas para negros” (banalizando o intuito do resgate histórico que elas representam), se põe na alça de mira para ser comparado – por ele mesmo – a um macaco ou a um personagem com um nome humilhante para alguém “da cor”. Mas, tudo bem, afinal, ele é negro e isso não é racismo… Não é? Tem certeza? Se não, vejamos, ele se auto-deprecia para que a plateia vá ao delírio (aliviada, porque não precisaram falar nada pra rir de um negro em papel humilhante e ridículo) e isso não é racismo? É sim, e olha que, geralmente, eu digo que o negro não é racista, mas tem o racismo ‘introjetado’. No caso dele não, ele sabe das condições pra um negro ser “aceito” na mídia e o faz. Ele tira o chicote da mão do feitor e se auto-flagela para a satisfação da turba inflamada.

httpv://www.youtube.com/watch?v=uvr9BUtfIn4

Se uma pessoa faz piada auto-depreciativa para posar de ‘olha, eu sou legal, mas tão legal que eu mesmo me humilho pra você rir de mim por minha causa antes que você mesmo fale’, é a mesma ilusão de alívio de uma pessoa que salta do prédio em chamas. Vai morrer mesmo assim, sua saída não é legal e não vai te salvar (o que me faz concluir que é desespero da mesma maneira). Não é assim que se combate o racismo, muito menos se conscientiza a população. E se você acha que essa não é sua responsabilidade, a arte na sua vida é mero negócio e suprimento de carência de atenção, que se respeite quem tem um trabalho social sendo feito e já não é fácil sem esse tipo de (des)serviço. É o famoso ‘muito ajuda quem não atrapalha’. Você não acaba com o racismo simplesmente abolindo a palavra do seu vocabulário enquanto continua associando uma pessoa negra a um animal que emula trejeitos humanos, te diverte, mas não é gente de verdade. Qualquer adolescente faz isso, mas tem a “desculpa” da imaturidade e necessidade desesperada de aceitação no seu grupo. Inferiorização da parte oprimida em troca de risos e trocados, enquanto os ‘senhores’ estão se desmanchando em risos com sua grana (grana e não trocados).

httpv://www.youtube.com/watch?v=-x_Tr46VNig

 Também tem o Rodrigo Santana, famoso por Valéria (a ‘bandida’), que não é exatamente negro (digo pelo tom de pele, um ‘moreninho’, como aceita a condescendência racista do país), com seu personagem Adelaide. Uma mulher negra, desdentada, pedindo esmola, mas que anda com um tablet pra falar com o marido. Se a cara da riqueza não é um puro deboche com o negro (e a classe C, por tabela) nada mais é. Diga-me, se fosse pra ser um personagem aleatório, porque sempre é o negro nessas situações (claro, muitas vezes, dividindo o espaço com o nordestino, por exemplo)? E pior, um legítimo ‘blackfaced’ (ator não-negro que se pinta pra representar um). Estigmatizando a mulher negra e pobre, esses caras vão fazendo sua fama e muitos vão na onda porque não param pra contestar suas intenções. Preferem achar que o universo já nasceu desse jeito e que reclamar é coisa de gente chata, que não vê graça em nada, nem numa mulher negra e pobre pedindo esmola importunando passageiros brancos.

Aí, vem Érico Brás com uma iniciativa simples, porém muitíssimo eficaz. Ele, sua esposa, Kênia Dias e seus enteados, Gabriela e Mateus bolaram – a partir de questionamentos de menina Gabriela sobre a situação do negro na TV e os motivos de as discussões sócio-raciais caseiras nunca serem promovidas na escola – um canal no Youtube, o Tá Bom pra Você?. O canal publica vídeos com sátiras de situações corriqueiras vividas por negros, como pessoas querendo tocar em nossos cabelos afro como objetos exóticos, a visão da sociedade sobre negros freqüentando restaurantes e até comerciais de margarina.

httpv://www.youtube.com/watch?v=-xNJhVDF0PM&list=TLBCUeXP2PYu6o6SBqhc-gXedxLar-at5H

 

 

Segundo Érico, margarina é um produto de uso freqüente e barato, ou seja, negro também come, mas a maioria do país é preterida em benefício de uma exclusividade para famílias caucasianas com aquela alegria desmedida logo pela manhã. Talvez por ser cria do Bando de Teatro do Olodum (o mesmo de Lázaro Ramos), isso tenha aflorado a consciência social do ator (que vive o Jurandir, de Tapas e Beijos, da Globo), mas, como eu disse lá no começo do artigo, seu trabalho, sua arte, apenas vão refletir quem você é, seu caráter e suas intenções com aquilo.

 

Tá bom pra você?

*é jornalista e responsável pelo blog http://garciarama.blogspot.com.br/ 

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