Em 2018, foi publicado no Brasil o livro “A Liberdade é uma Luta Constante”, de Angela Davis. Pensei muito sobre ele e, em um dos seus trechos, Angela fala sobre o título, enquanto uma frase de uma canção do Movimento dos Direitos Civis americanos no século XX:
“Dizem que a liberdade é uma luta constante
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“Oh, Senhor, lutamos há tanto tempo
Devemos ser livres, devemos ser livres”
Pensar sobre antirracismo é também refletir sobre a luta pela liberdade e os processos de mudança dessas opressões ao decorrer dos anos, décadas, séculos…
Nina Simone, durante uma entrevista, reflete sobre o que é a liberdade e chega à conclusão que liberdade, para ela, é não ter nenhum medo. “Esse é o jeito mais próximo que eu posso descrever. Não é tudo, mas é algo realmente que se sente…Nenhum medo”
Rosana Albuquerque em um artigo na Universidade de Porto em Portugal afirma que o racismo é um fenómeno mutável, historicamente contingente, que se transmuta consoante as condições que se desenvolvem e intersectam em contextos particulares, e considerando que a persistência do racismo enquanto fenômeno político-social de múltiplas faces exige-nos o compromisso da reflexividade sobre o legado da nossa história, procurando compreender o que deste passado perdura no mundo de hoje.
Se o racismo nos séculos XV a XVIII, advindo da escravatura e do colonialismo, se desenvolveu previamente à emergência dos conceitos de “raça” e “racismo” (no século XIX), hoje manifesta-se de formas diversificadas.
O racismo enquanto projeto ideológico, fruto de um círculo virtuoso entre ciência e política, que se reforçou cumulativamente ao longo de séculos, viria a ser desconstruído cientificamente e deslegitimado politicamente em meados do século XX, após a tomada de consciência dos horrores do holocausto, como eu já falei aqui no post sobre Eugenia.
Como marcos significativos desse “fim” podemos apontar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) – que confirma, à época, a rejeição de projetos políticos assentes na discriminação ou perseguição racial e étnica – e as declarações da UNESCO (1950, 1951, 1964 e 1967) – onde acadêmicos de diferentes áreas científicas desenvolveram reflexões críticas sobre a história, o conceito de raça e a diversidade cultural da humanidade.
Todavia, ”o fim do racismo científico não significou o fim do racismo na sociedade. Este transformou-se e diversificou-se, o que levou alguns autores a falar de ‘racismos’ e não de ‘racismo’ para salientar a multiplicidade de manifestações”.
O contexto científico-político-social de meados do século XX explica a mutação de um “velho racismo” – com uma clara dimensão ideológica e ênfase na hierarquização racial – para “novos racismos” – que produzem processos de distinção, discriminação e desigualdade com base na cultura, apropriando-se de conceitos como o de grupo étnico ou etnia em substituição do conceito de “raça” por este já não colher apoio científico nem político.
Assim, nos “novos racismos” o processo de racialização ou de categorização por via da “raça” é substituído por um processo de “etnização”, ocorrendo de forma mais sutil.
No Brasil uma pesquisa dos psicólogos sociais Marcus Eugênio Oliveira Lima e Jorge Vala revela que, ao contrário do esperado, após o surgimento das leis antirracistas, o racismo não cessou, mas tomou outras formas menos abertas e flagrantes o que corrobora para o pensamento de uma multiplicidade de racismos existentes.
Winnie Bueno em um texto para sua coluna na revista Gama reflete sobre a dificuldade do brasileiro em identificar o racismo.
“A compreensão que a sociedade tem sobre o que é racismo ainda é muito rasa. As pessoas compreendem o racismo apenas quando ele se apresenta na esfera das relações sociais de forma nua. Nós ainda temos dificuldade em entender que o racismo é um sistema de dominação, que tem múltiplas camadas e que opera em variadas dimensões. Patrícia Hill Collins nos alerta que o racismo pode apresentar formas específicas conforme gênero, sexualidade, status de cidadania, capacidade física e classe social […] A sociedade não enxerga pessoas negras como seres humanos plenos de subjetividade. Elas são tolhidas das possibilidades de exercício da sua multiplicidade e, no geral, são todas interpeladas a partir de uma visão única. A forma com que o racismo nega a subjetividade opera em uma lógica que faz as próprias pessoas negras pensarem que somos todos iguais e que temos que agir de forma unificada, sem divergências, sem uma pluralidade de ideias.”
O que seria isso senão uma forma de nos tirar liberdade e nos fazer sentir medo o tempo todo?
Em 25 de Maio de 2021 se completa 1 ano do assassinato de George Floyd por um policial nos Estados Unidos. Um Homem negro que foi asfixiado até a morte por um policial branco que, durante sua defesa, alegou que Floyd consumia drogas, na clássica tentativa racista de imputar crime e consumo de drogas a pessoas negras, como se isso justificasse o assassinato.
Estamos falando de 2020, mas tudo isso foi um processo histórico que, mesmo após o fim da escravidão, a branquitude utilizando de seu poder estruturou e institucionalizou formas de criminalizar a existência negra. Podemos voltar ao Brasil de 1890, apenas dois anos após o fim da escravidão no país, onde tivemos a lei dos vadios e capoeiras que basicamente era uma justificativa para se prender pessoas negras, agora “livres”. E foi assim com diversas tentativas de criminalização da existência preta, capoeira, samba, hip hop, rap, funk… E não podemos deixar de mencionar a famigerada “Guerra às Drogas” que funciona basicamente como uma justificativa estatal para chacinas nas comunidades de maioria negra no nosso país, vide o recente acontecido em Jacarezinho.
No Brasil, a gestão de segurança pública segue sob comando de mãos violentas e racistas e, como consequência, temos o descaso total com vidas negras nas periferias. Essa péssima administração da segurança pública, que deveria cuidar da vida dessas populações, através de ideais racistas define quem e como essa população deve morrer. Essa é a realidade Necropolítica brasileira, sob o disfarce de uma guerra de combate às drogas nas comunidades periféricas, estados brasileiros promovem o genocídio sem pudor algum. Ainda que digam não direcionar suas políticas dessa forma, os números mostram o contrário.
No Fear...Sem medo… Pensem um pouco sobre esse conceito de liberdade e analisem se viver em um país como o Brasil, onde as chances de ser assassinado mais do que dobram se você for negro.
A sociedade brasileira possui uma sensibilidade muito baixa a injustiças direcionadas a populações negras. Como herança da escravidão nossa sociedade construiu uma “empatia seletiva” e com isso o Estado mantém a política de morte direcionada ao povo preto e periférico, já que as chances de reação popular são menores.
Sem medo…
2020 marcou a internet devido ao insurgente onda de pensamento dito antirracista, mas será mesmo que algo mudou? Uma sociedade antirracista deveria no mínimo manter sob alerta e medo todos aqueles que expressarem racismo, mas não vejo isso acontecer. Isso sem aprofundarmos na dimensão estrutural dessa discussão que é fundamental para que consigamos frear o avanço e as expressões do racismo. Mas, o que temos visto é um conforto dos brancos com relação a essas pautas. Basta uma atitude em apoio a comunidade e uma gentileza direcionada a negros e pronto.
Ao invés de esperar conforto na luta antirracista brancos deveriam esperar o enfrentamento ao status quo, reconhecimento de privilégios, confronto a comportamentos nocivos e um olhar atento ao sistema que faz deles o privilegiado dessa situação toda a ponto.
Mesmo em 2021 ainda somos apontados como raivosos ao questionarmos o racismo na nossa sociedade ou classificados como professores que devem ensinar aos brancos sobre como nos respeitar.
Ainda precisamos explicar que antirracismo não tem a ver com a evolução espiritual e moral de pessoas brancas.
Quando brancos compreenderem que não são o centro dessa discussão, talvez aí, nesse momento, eles entenderão que se indignar com um negro apontando suas contradições é apenas mais uma forma de se alinhar ao pensamento hegemônico da branquitude. sendo assim a luta ainda tem sido a mesma…Uma luta constante, histórica…
As expressões do racismo contemporâneo revelam a persistência e a reprodução da hierarquização social com base numa classificação de quem ocupa que lugar em sociedades que defendem a igualdade de direitos.
Refletir sobre o racismo, olhar para o passado para compreender os processos que marcaram a construção do nosso mundo e os seus efeitos nas relações entre povos e entre saberes e analisar o legado de séculos de relações marcadas pela escravidão de seres humanos e por projetos políticos coloniais de desumanização e subalternização nos permite estar mais atentas/os às mutações e expressões do racismo e da discriminação nos dias de hoje.
O caminho antirracista implica olhar com responsabilidade coletiva para o passado e compreender os processos que marcaram a construção do mundo que hoje habitamos.
Eu ainda não consigo respirar, eu ainda tenho medo – logo não sou livre -, eu ainda preciso lutar contra o sistema todos os dias.
Fontes e referências:
Angela Davis, A Liberdade É Uma Luta Constante – Boitempo 2018
Rosana Albuquerque, Mostra Internacional de Cinema Antiracista – Micar 2020
Rosana Albuquerque, Uma Reflexão Sobre o Racismo – Repositório Aberto – Universidade Aberta – 2016
Winnie Bueno, O RACISMO E SUAS COISAS A PARTIR DO BBB – Revista Gama 2020
Jorge Vala, Novos racismos: perspectivas comparativas – 1999
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