Marte Um é fruto das primeiras ações afirmativas no cinema brasileiro

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Marte Um é fruto das primeiras ações afirmativas no cinema brasileiro
Foto: Reprodução.

Texto por Anthony Rodrigues*

Demorou, mas aconteceu. A recente indicação de Marte Um para representar o Brasil no Oscar parece banal para alguns, afinal todos os anos um filme é selecionado pela comissão da Academia Brasileira de Cinema. Para outros, que acompanham a nova cena do cinema brasileiro mais de perto, não surpreende tanto, pelo já conhecido talento de Gabriel Martins, diretor e roteirista do filme. Mas para cineastas negros(as) e pesquisadores(as) do cinema negro, é uma grande vitória.

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Marte Um é fruto de uma conquista histórica pouco mencionada para o público em geral: trata-se de um filme gestado pelo primeiro edital público de longa-metragem destinado para cineastas negros(as) na história do cinema brasileiro. Essa história começa lá atrás, ainda na década de 70. Primeiro com a atuação artística e política de Zózimo Bulbul, considerado o pai do cinema negro brasileiro. Bulbul, que atuou
em filmes do chamado Cinema Novo, resolveu dirigir suas próprias películas por acreditar que havia uma representação caricata de pessoas negras no cinema brasileiro. Assim, abriu as portas no país para uma produção cinematográfica que vem se expandindo sob o termo de
“cinema negro”.

Utilizando este termo, uma outra geração de cineastas, em 2000, formulou um manifesto com a intenção de transformar a representação racial no cinema brasileiro. Conhecido como “Dogma Feijoada”, o movimento pregava por uma produção que subvertesse os estereótipos de pessoas negras nos filmes, séries, novelas e propagandas.

Já em 2001, uma outra articulação de atores/atrizes e profissionais negros(as) do audiovisual se mobilizou no V Festival de Cinema do Recife para reivindicar a contratação de mais pessoas negras nas principais funções criativas do audiovisual, o que ficou conhecido como
“Manifesto do Recife”. Mas como transformar essa realidade, diante da histórica desigualdade racial brasileira? A primeira resposta mais incisiva veio com políticas públicas por igualdade racial, sobretudo a Lei de Cotas de 2012. Fruto de lutas históricas dos movimentos negros, desde pelo menos os anos 70, as ações afirmativas na educação e na cultura começaram a dar resultados concretos nos últimos anos.

Primeiro, a expansão das universidades públicas e a adoção do critério socioeconômico e racial de seleção fez com que mais estudantes negros(as) cursassem o ensino superior. Com isso, houve a fundação de inúmeros coletivos universitários negros, entre eles os coletivos de cinema negro, oriundos dos cursos de cinema e audiovisual.

Esses coletivos, muitas vezes, foram responsáveis por iniciar as primeiras redes de produção e de exibição – como cineclubes e mostras – exclusivos para filmes de autoria negra em cada região do país. Até então, apenas cidades como Rio de Janeiro e São Paulo tinham registros
desse tipo de evento, com destaque para o Encontro de Cinema Negro criado por Zózimo Bulbul no Rio de Janeiro em 2007.

Com o afloramento gradativo da produção negra e a expansão dos circuitos de exibição pelo país, em 2016 foi lançado o primeiro edital de longa-metragem exclusivo para cineastas negros(as) na história do país: o Longa Afirmativo. Ele foi concebido após o sucesso
do Curta Afirmativo, edital de curtas-metragens lançado pelo MinC e também destinado para cineastas negros(as) em 2012, mesmo ano da Lei de Cotas. O Longa Afirmativo tinha como objetivo financiar a produção de três longas de autoria negra, sendo dois deles já conhecidos
pelo público nos últimos anos: Um dia com Jerusa, de Viviane Ferreira, e Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso.

Marte Um é o terceiro filme contemplado pelo edital, lançado em diversas salas de cinema do país em agosto de 2022 e esta semana em Natal. Sua indicação para representar o Brasil no Oscar é fruto do enorme talento de Gabriel Martins, mas também – e diria que principalmente – de lutas históricas dos movimentos negros e de cineastas negros(as) no Brasil, começando por Bulbul e passando por outros nomes como Adélia Sampaio, Joel Zito Araújo, Jeferson De e Viviane Ferreira, pra citar alguns. Hoje, nós temos a Associação de
Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), que segue crescendo institucionalmente e insistindo na democratização racial e de gênero do audiovisual brasileiro, seja através de ações afirmativas em editais públicos ou da maior diversidade no mercado como um todo.

A APAN, os coletivos, mostras, cineclubes, fóruns e demais articulações de cinema negro em cada local do país existem e resistem para que exemplos como Marte Um se tornem mais regra do que exceção.

* Sociólogo e antropólogo. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduando em Audiovisual na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pesquiso e escrevo sobre os cinemas negros e a representação racial no cinema brasileiro.

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