Nova pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) mapeia a vivência de familiares de desaparecidos durante a investigação e o seu desgastante percurso pelas instituições das quais esperam obter respostas, apoios e soluções. O estudo “Teia de ausências: o percurso institucional dos familiares de pessoas desaparecidas no Estado do Rio de Janeiro”, divulgado nesta quinta-feira (26) mostra que o descaso já começa na hora do registro de ocorrência. Para a legislação brasileira, até que se prove o contrário, um desaparecimento não constitui crime. O que acaba fazendo com que não seja prioridade nas investigações da Polícia Cívil. Quem mais sofre são familiares negros e pobres.
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Apesar dos números apontarem para a urgência do tema, casos de desaparecimento ainda são um universo invisibilizado. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, o Estado do Rio de Janeiro ocupava o sexto lugar em números absolutos de registros de casos de pessoas desaparecidas. E mesmo com mais de 16 milhões de habitantes, possui apenas uma delegacia especializada, a Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA), localizada na Zona Norte da cidade. A unidade especializada abrange apenas o município do Rio, deixando de investigar mais de 55% das ocorrências do Estado. Mesmo que, juntas, a Baixada Fluminense e as cidades de São Gonçalo e Niterói, tenham registrado nos últimos dez anos 38% dos desaparecimentos do Estado e 46% dos da Região Metropolitana. Em uma década, o Brasil registrou um milhão de casos de pessoas desaparecidas, sendo 50 mil apenas no Rio de Janeiro.
O levantamento mostra que o descaso começa com o registro de ocorrência. Um primeiro passo que a princípio se mostra simples, é o começo de uma série de violações de direitos de uma cansativa caminhada. Agentes de segurança que deveriam acolher, deslegitimam os familiares e suas histórias e desconsideram a definição legal do fenômeno, de que pessoa desaparecida é “todo ser humano cujo paradeiro é desconhecido, não importando a causa de seu desaparecimento, até que sua recuperação e identificação tenham sido confirmadas por vias físicas ou científicas”. Muitas mães entrevistadas relatam casos de negligência, desprezo e despreparo, quando não a brutalidade de muitos agentes.
“A lei da busca imediata não é cumprida até hoje, talvez por falta de interesse da polícia que existe ainda, que encara o desaparecimento de jovens e adolescentes com maus olhos, tem um prejulgamento, achando que estão em boca de fumo”, relatou Luciene Pimenta, presidente da ONG Mães Virtuosas.
Para mostrar como a ausência de políticas integradas afeta negativamente nas buscas, o estudo relata entrevistas com profissionais de diversos órgãos públicos atuantes na área e mães de pessoas desaparecidas que dirigem Organizações Não Governamentais. O levantamento abrange: Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA);
Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí (DHNSG); Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF); Ministério Público; Defensoria Pública; Fundação para Infância e Adolescência (FIA); Superintendência de Prevenção e Enfrentamento ao Desaparecimento de Pessoas (SPEDP); Disque-Denúncia; organizações Mães Braços Fortes, Mães Virtuosas, Portal Kids e Mães da Sé. Esta última, apesar de não ser do Rio de Janeiro, se destaca pela relevância do trabalho oferecido.
Apenas nos últimos três anos, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), contabilizou 32 projetos de lei, aprovados ou não, sobre o tema dos desaparecidos.
A falta de articulações integradas, tanto entre o poder público, quanto dos diversos bancos de dados existentes, criam uma barreira na implementação de políticas públicas coordenadas, capazes de solucionar, prevenir e reduzir os números de casos de pessoas desaparecidas no país. Em junho de 2021, a ALERJ realizou a primeira audiência da CPI de crianças desaparecidas. Durante seis meses foram ouvidos representantes da Fundação para Infância e Adolescência (FIA), da Defensoria Pública do Estado e do Ministério Público, além dos relatos de mães que denunciaram a negligência do poder público.
“A CPI representou uma vitória de familiares de pessoas desaparecidas porque possibilitou que o tema fosse pauta no âmbito legislativo. Ao mesmo tempo, expôs a lacuna em termos de acesso e integração de políticas públicas para esse campo. É fundamental a participação das mães e familiares de pessoas desaparecidas nesses espaços de construção de política pública, só assim teremos a aproximação com as verdadeiras demandas e a elaboração de ações amplas e eficazes”, afirma a pesquisadora Giulia Castro, que esteve presente na CPI.
“Não tem corpo, não tem crime”
Um dos estereótipos mais alimentados por agentes de segurança é o “perfil padrão”, ou seja, adolescentes que fogem de casa e aparecem alguns dias depois. Como mostra a pesquisa, muitas mães relatam ouvir dos policiais, na tentativa de um registro de ocorrência, que “se é menina, foi atrás de namorado; se é menino, está na boca de fumo”. Apesar disso, nos últimos 13 anos, 60,5% dos desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro tinham 18 anos ou mais.
A tentativa de deslegitimar os casos culpabiliza as vítimas, e ao invés de um crime a ser investigado pelo Estado, torna-os um problema da família e da assistência social. Usada como forma de adiar o registro de ocorrência, a prática comum é um reflexo do racismo e da criminalização dos mais pobres. Uma vez que alegações como “se não tem corpo, não tem crime”, se naturalizam no cotidiano.
Recorrer a estereótipos que não auxiliam nas buscas e no acolhimento das famílias, também apaga as complexidades que constituem a categoria desaparecido, formada por diferentes variáveis: desde crimes como homicídio com ocultação de cadáver, rapto, sequestro e tráfico humano, ou casos de pessoas mortas (por violência ou não) e enterradas como indigentes, ou ainda dos desaparecimentos relacionados a situações de violência, sobretudo do próprio Estado.
“O fenômeno do desaparecimento é complexo e tem muitas camadas. Apesar disso, os dados sobre o tema são insuficientes sobretudo porque não há um banco unificado capaz de precisar a dimensão da questão. A ausência de dados implica diretamente na qualidade e efetividade de políticas públicas, que muitas vezes existem mas são insuficientes e não abrangem famílias pobres e majoritariamente negras!”, destaca a pesquisadora Paula Napolião.
Apesar de tantas ausências, coletivos de mães e familiares se organizam para prover suporte e encontrar acolhimento em meio a tanta dor. Através de ONGs e coletivos, lutam pela implementação de políticas públicas e para que o tema do desaparecimento de pessoas seja, enfim, encarado com a complexidade que exige.
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