Há dois dias, veio a público o desejo/tesão de algumas mulheres e homens brancos em um dos supremacistas que invadiram o Capitólio nos Estados Unidos.
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FOTO 3X4: Rudson Martins – Produtor de Elenco
O homem eleito era branco, dos olhos azuis e barba loira. Usava peles de animais, chifres na cabeça e possuía tatuagens com símbolos fascistas. Apesar de ser declaradamente supremacista, estar cometendo um crime, debochar das forças policiais, nada disso impediu que fosse alvo de desejo de feministas brancas.
Nós, mulheres negras e indígenas, apontamos o grande escárnio sobre nossa dor, mediante o ato simbólico de avanço da supremacia branca, e rapidamente fomos lançadas aos estereótipos racistas de briguentas e ignorantes.
Como não sabíamos que se tratava apenas de uma brincadeira?
Não sabemos usar as redes sociais?
Não sabemos o que é feminismo?
As mesmas pessoas brancas que há poucos dias apoiavam as “vidas negras importam” nos rotularam de “castradoras de tesão alheio” em defesa do seu direito de desejar um supremacista.
Ora, que tipo de pessoa sente tesão em um racista, senão outro?
O desejo é fruto das relações sociais, que por sua vez, são desiguais em termos de poder-raça. Nesse sentido, mulheres brancas apresentaram seu tesão reprimido em pureza racial.
Enquanto o branco supremacista tem espaço para a dita “brincadeira” pela sua estética lida socialmente como bela, homens negros INOCENTES são assassinados apenas pelo fenótipo, ou seja, pela sua estética.
Enquanto homens brancos racistas deixam clara sua intenção sádica, mulheres brancas racistas costumam fazer recurso da fragilidade e pureza feminina branca, criação ocidental novecentista, para se blindar das acusações de racismo e se colocarem no lugar de vítima.
“Nunca fique sozinho com uma mulher branca”. De onde vem esse jargão? Medo.
Na raiz está a episteme ocidental, que como dita seu modelo ideal, tem pai e mãe. Mulheres brancas podem ser e frequentemente são nocivas.
A polícia e o Estado, instituições de opressão por excelência, são fruto da mesma episteme ocidental antinegra e anti-indígena. Apesar do lugar de subalternidade se comparadas ao homem branco, mulheres brancas, sempre tiveram um lugar nessas instituições.
Outrora, durante o processo de escravização, mulheres brancas sustentavam a posição de vítima mediante o sexismo do senhor do engenho e castigavam mulheres negras, tidas como jezebéis. No século XIX, ocorreu uma inflexão no pensamento cristão sobre as mulheres brancas que deixaram de serem lidas enquanto sedutoras sexuais para serem musas inspiradoras, naturalmente boas, inocentes, virtuosas, não sexuais e mundanas. Para hooks (2014, p. 24) este processo foi uma espécie de exorcismo ao livrar as mulheres brancas “da maldição da sexualidade” tornando-as um espelho da virgem Maria.
O mesmo processo não ocorreu com mulheres negras, que tiveram sua imagem atrelada à luxúria e à maldade. Enquanto os brancos adotavam uma postura moralista, desde o tráfico de pessoas africanas até o pós-abolição, o homem e a mulher negra eram vistos como “selvagens sexuais”. Assim, as mulheres brancas acreditavam que a “pureza espiritual” do homem branco estava sendo seduzida pela mulher negra, a “Jezebel” que o levava ao pecado (hooks, 2014). Neste sentido, a mulher branca compartilhava o racismo do homem branco. Há relatos de mulheres brancas que perseguiam e torturavam mulheres negras, enciumadas por estas fazerem dos homens brancos “suas vítimas”.
Atualmente, podemos apontar as ações de algumas pfems que se autointulam contra a agressão de mulheres, ao mesmo tempo, que falam que “mulher de bandido tem que apanhar”. Além dos projetos de leis supostamente feministas e eminentemente racistas como a Lei Antibaixaria, que visam a perseguir apenas estilos musicais negros.
Durante as críticas ao desejo de feministas brancas, mulheres negras e indígenas tiveram seus perfis no Twitter denunciados e foram ameaçadas de processo. Esta tática costumeira sublinha o poder de mulheres brancas dentro da supremacia, ao mesmo tempo que utiliza do imaginário novecentista de inocência de brancas, ao se colocarem no lugar de vítima e criminalizarem pessoas negras e indígenas apenas por falarem.
Se houve algum tipo de castração neste cenário, nitidamente foi do direito de crítica negra-indígena. Brancas acadêmicas também fizeram uso de seus estudos em relações étnico-raciais para legitimar suas ações em defesa de seu desejo. Quando homens negros e indígenas se juntaram à nossa crítica fomos rotulados como um todo de milicianos.
Vejam bem, estamos caminhando aos 3 anos da morte de Marielle, sem saber quem mandou matá-la. Esse tipo de comentário que coloca os movimentos negros-indígenas no mesmo lugar da milícia que brutalmente assassinou uma mulher negra, é no mínimo sádico.
O caso de Madalena Gordiano foi outro dia.
Lá estava encenada a base da família cristã onde a mulher branca exerceu um papel fundamental, o de sinhá.
A filha, médica, que teve seu curso custeado pela pensão de Madalena, ao ser denunciada nas redes sociais, fez o uso da mesma estratégia de inocência e fragilidade de brancas se declarando “vítima de um linchamento público de maneira covarde”. Percebam como essa estratégia antiga e secular, retira a perversão da escravidão em nome da pureza e sacralidade da mulher branca.
O colonialismo está presente em todos os âmbitos de nossa vida, conseguimos senti-lo. O trauma do passado se torna vivo no presente, fazendo com que qualquer espaço de tensão racial se torne uma colônia metafórica. “De repente, “patrões” se tornam sinhás/senhores simbólicas/os e negras/os através do insulto e da humilhação tornam-se escravizadas/os figurativas/os” (KILOMBA, 2019, p. 157).
Rever privilégios é uma invenção liberal risível pois branquitude é um espaço de poder. Este necessita ser o alvo.
Feminismo branco é uma face da supremacia branca desde seu nascimento. O frágil elo entre mulheres brancas e não brancas sempre foi conturbado. Desde o movimento sufragista, feministas brancas apelaram ao homem branco pela solidariedade racial mostrando sua face racista.
No cenário atual de sofisticação das dinâmicas raciais em meio ao capitalismo racializado, a nossa saída precisa ser cada vez mais de união entre os movimentos negros e indígenas. Nossos mais velhos e mais velhas já ensinaram que o quilombo só teve sucesso pois primeiramente pediu licença aos donos da terra, os povos indígenas.
Que 2021 seja um ano de avanço de todas nossas lutas.
Referências:
hooks, bell. Não sou eu uma mulher: mulheres negras e feminismo. Plataforma Gueto, 2014.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. São Paulo: Ed. Cobogó. Tradução: Jess Oliveira, 2019.
Este texto foi escrito por Jade Alcântara Lôbo
Editora e Coordenadora da Revista Odù: Contracolonialidade e Oralitura. Doutoranda em Antropologia Social na UFSC. Autora do livro “Para Além da Imigração Haitiana: Racismo e Patriarcado como Sistema Internacional”. Autora da dissertação: “Defeito de Fabricação”: Maternidades Negras. Trabalha com Maternidade Negra, Afroperspectivismo, Contracolonialidade e Cosmopolíticas Afroindígenas.
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