Como colunista do Mundo Negro quero dar o primeiro spoiler do livro Gastronomia Preta, que será lançado em novembro, e apresento a vocês a trajetória desta mulher que de tornou inspiração para muitas outras mulheres negras que trabalham com gastronomia no Brasil e que buscam entender e valorizar a história do povo preto.
Benê Ricardo é sinônimo de resistência, resiliência, sucesso e inspiração para muitos(as) chefs pretos(as) no Brasil. Com a ajuda de Fernando Ueda, amigo pessoal de Benê e quem guarda parte de seu acervo, a história dessa grande chef (que muitas vezes foi invisibilizada) é contada com muito orgulho neste texto que estará no livro. E por representar tantas pessoas e a história de uma gastronomia genuinamente brasileira é que temos essa grande chef na capa do primeiro volume da coleção.
Em 1981, aos 38 anos, Benê Ricardo foi a primeira mulher brasileira a receber um diploma de chef de cozinha no país. E nesse contexto de um momento da ditadura e do sexismo, Benê Ricardo fez história na gastronomia – foi e sempre será parte da história de muitas mulheres cozinheiras e chefs no Brasil.
Mineira de Ouro Fino, ficou órfã aos 12 anos e virou empregada doméstica nessa idade. Trabalhando na casa de uma família de descendentes de europeus, recebeu o convite para acompanhá-los e partiu rumo à Europa, voltando de lá (anos depois) especialista em culinária alemã. Ganhou um concurso de receitas da Revista Cláudia e seu prêmio foi trabalhar na cozinha experimental do periódico. E continuou a voar e a inspirar muitas futuras cozinheiras e chefs pretas.
Defensora da biodiversidade e dos insumos tipicamente brasileiros, Benê Ricardo sempre esteve na vanguarda. Como aponta Fernando Ueda, “(…) a chef morreu atualizada e também na vanguarda. Levou a taioba (verdura tipicamente presente na culinária popular mineira) para São Paulo, usava diferentes castanhas no preparo de biscoitos e era assertiva com seus pares nas cozinhas”. Se com os amigos a chef Benê era um doce, na cozinha sempre tinha alguém com medo de errar perto dela em função dela sempre querer a perfeição. E, quando a chamavam para fazer avaliações de restaurantes, sempre dizia a verdade – e isso não agradava outros chefs de cozinha e donos de restaurantes quando o preparo não estava dentro do padrão de qualidade da chef.
Como especialista em cozinha alemã, o racismo se fazia presente de maneira explícita de diferentes formas. Em um jantar feito para alemães, um deles chegou e comentou na sua língua para outro compatriota: “Onde já se viu negro fazer comida alemã!”. Benê, fluente em alemão, respondeu: “Eu faço. E faço muito bem!” Não deveria existir à época a gíria, mas a gente atualiza: Benê sambou na cara do gringo alemão com essa resposta!
Uma vez por mês, em Santana (bairro da zona norte paulistana), a chef preparava um almoço para amigos que trabalhavam perto de sua casa – a definição de VIP também foi atualizada neste momento. Em 2018, nos deixou órfãos – mas o seu legado permanecerá. E até hoje esses amigos VIPs se encontram e o grupo de WhatsApp se chama “Chef Benê”. Seus amigos conversam todos os dias neste grupo e Benê se faz viva para eles e para todos profissionais de gastronomia pretos(as) do Brasil.
Olhar para nossa ancestralidade é muito importante; e, reconhecer os que vieram antes da gente, também. Por isso, a capa do livro é uma homenagem à chef Benê Ricardo: a primeira mulher a se formar em um curso profissional em Gastronomia no Brasil. Não seria possível pensar no primeiro volume da coleção Gastronomia Preta sem evidenciar logo na capa a importância dessa profissional. Espero que agora, com essa homenagem, muitos e muitas de nós possamos reconhecer a importância da mulher preta na gastronomia brasileira.
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