Debora Simões
“Existe uma história do negro sem o Brasil. O que não existe é uma história do Brasil sem o negro”, está frase pertence ao fotografo e ativista Januário Garcia, que faleceu em 2021. Ela foi retratada no podcast “projeto Querino”, na voz do jornalista Tiago Rogero. O primeiro episódio do podcast apresentado por Tiago é o fio condutor deste artigo, assim como os versos do samba enredo da escola de samba carioca Mangueira, campeã do carnaval de 2019.
No bicentenário do sete de setembro, da independência do Brasil, do marco da criação de um país, velho conhecido nosso, o Brasil, voltamos nosso olhar para ela. Aprendemos na aula de história que a independência do Brasil teria sido um processo pacífico, que se deu sem guerras ou conflitos. Movimento protagonizado pelo príncipe regente Pedro (conhecido depois por Dom Pedro I), que com bravura teria anunciado as margens do rio Ipiranga, “Independência ou morte”. Mas o que pouco se fala é que houve independência e morte. Do norte ao sul do país, forças contra a emancipação e a favor lutaram por suas ideias. Sangue do povo negro, dos povos indígenas foram derramados em diversas batalhas, a agitação política começou nos fins de 1821 e só cessou mesmo em 1823, como indicou o historiador Hélio Franchini Neto em sua tese de doutorado.
A imagem que construímos enquanto sociedade independente não se assemelha a essa bravura do povo brasileiro. Conhecemos esse processo, mas como um ato heróico do príncipe. A cena foi eternizada pelo artista Pedro Américo, encomendada pelo filho de Pedro I, Pedro II, em 1888. Na pintura o protagonista no meio ergue a espada montado em um cavalo. O que o quadro não mostra são alguns fatos. Muito provavelmente, era uma mula e não um cavalo. A independência já havia sido programada, por Leopoldina, esposa do príncipe, que por causa da viagem do esposo havia ficado na função de regente, governando a nação. No Dia do Fico o príncipe estava voltando para a corte, Rio de Janeiro, de uma campanha política em Minas Gerais. Por causa da viagem possivelmente aquele glamour de monarquia europeia foi inventado.
Como todo processo histórico, precisamos analisar com cautela. Não temos dúvida de que o sete de setembro é um marco na separação entre Portugal e Brasil. Outra coisa é que não começou em 1822, podemos voltar ao menos a 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, fugida de Napoleão Bonaparte e escoltada pela marinha inglesa nessa viagem transcontinental. O ponto central do projeto do Brasil, o pacto da elite política e econômica para a nação que nascia foi a manutenção da escravidão, conforme destacou a historiadora Ynaê Lopes dos Santos em entrevista para o podcast “projeto Querino”, do qual ela também é consultora de pesquisa. O projeto comum da elite dona de terra foi a independência e a manutenção do sistema escravista, contrariando, inclusive, as pressões inglesas.
Por mais que a história oficial tente encobrir e apagar, a independência teve heróis e heroínas negros, brancos e povos indígenas que foram às ruas e lutaram por suas ideias. Uma das guerras mais importantes aconteceu na Bahia, onde as tropas portuguesas não aceitaram a emancipação do Brasil.
A exemplo, da marisqueira quitandeira e capoeirista Maria Felipa. Mulher negra que, na ilha de Itaparica, na Bahia, teria liderado um grupo de mulheres que enganaram uma tropa de portugueses. Elas teriam armado uma emboscada e dado uma surra de cansanção (uma planta que causa queimadura) e após isso elas teriam incendiado os navios portugueses. O pouco que sabemos sobre Maria Felipa ainda é incerto, mas a existência é forte e é símbolo de resistência negra feminina em toda Bahia. Lembrada no desfile cívico do 2 de julho, marco da independência do Brasil na Bahia.
Aos poucos, revendo, reescrevendo, recontando, a gente vai descobrindo que na história desse país: “desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento, tem sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado. Mulheres, tamoios, mulatos, eu quero um país que não está no retrato”, contamos em verde, amarelo e rosa.
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