Por Shenia Karlsson, Psicóloga clínica, Co-Fundadora do Papo Preta.
Nos últimos anos, as mudanças sociais vieram com tanta força que ser negro deixou de ser um adjetivo e passou a ser uma condição, uma existência, uma autodeterminação. Nos Estados Unidos por exemplo, NEGRO é escrito com letras maiúsculas, ressaltando o respeito por aqueles que nos antecederam nas lutas contra o racismo. É comum ver pessoas negras baterem a mão no peito com orgulho, com sentimento de pertença e afirmando tal identidade. SOU NEGRO/A/E.
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Diante destes fenômenos, é possível observar algumas mudanças nos mais variados processos de construção de identidade(s), principalmente a construção das identidades negras, sim, no plural porque são múltiplas. Como o processo de construção de identidade é dinâmico e fluido, discutir identidade negra e como ela foi forjada historicamente requer considerar a reconstrução desta identidade tão importante para o povo negro em diáspora, especialmente no Brasil.
A identidade negra diz respeito a localizar-se socialmente como sujeito e tem um caráter político, como salienta Stuart Hall e Paul Gilroy em suas obras. No entanto, num mundo Ocidental onde somos induzidos a validar a identidade branca como ponto de partida, como explicita Neusa Santos Souza, tornar-se negro é uma tarefa que ultrapassa a esfera do discurso. Então, como podemos nos certificar que os nossos processos de construção de identidade(s) negra esteja realmente livre das amarras do mito negro?
Este artigo propõe discorrer sobre como a clínica psicológica voltada para negros pode auxiliar na reflexão de alguns caminhos possíveis na re-construção da identidade negra como condição do ser e garantia mínima de saúde mental. A autora Neusa Santos Souza e Fanon aponta em suas obras que na verdade não somos negros, pelo menos internamente, e sim devemos nos tornar negros a partir de uma disponibilidade interna que surge de uma necessidade existencial e um diálogo crítico com nosso contexto social. Dito isto, tornar-se negro é tornar-se sujeito negro numa sociedade em que negros já nascem assujeitados.
Especialmente nos últimos anos, a Psicologia movimentou-se no sentido de preencher uma enorme lacuna ética: a exclusão da discussão do sujeito negro na clínica psicológica e nas práticas de cuidado. No que diz respeito aos estudos de raça e racismo, foi necessário uma corrida contra o tempo para repensar as práticas e, minimamente garantir que o racismo e a discriminação racial fossem finalmente reconhecidos como fatores de adoecimento.
As críticas tornaram-se severas – especialmente sobre profissionais de saúde que perpetuavam as mesmas violências no setting terapêutico – e a população negra passou a cobrar um atendimento de qualidade e focado em suas peculiaridades. Entretanto, ainda não estabelecemos um fazer psicológico modelo, o que possuímos são caminhos possíveis onde as premissas seriam o compromisso ético-político nos espaços de cuidado, estudos e pesquisas sobre essa temática em específico e a disseminação das informações a fim de implementar as mudanças necessárias nas lógicas do mercado do cuidado. Mas, como a Psicologia pode auxiliar no processo da construção da identidade negra na clínica psicológica? Como criar espaços para que surja o sujeito negro em sua plenitude? Grada Kilomba cita Bell Hooks em sua obra ‘Memórias da Plantação’ para discorrer sobre o conceito de sujeito e diz que “só eles têm o direito de definir a sua própria realidade, de estabelecer suas próprias identidades, de nomear a sua história”. O sujeito negro surge a partir do protagonismo de sua própria trajetória.
Contudo, como é possível esse devir negro partindo do princípio que em sociedades racistas o negro é sequestrado pelo desejo do sujeito universal e se perde em seu real desejo e essência? Mais uma vez Grada destaca que diante da conscientização emerge um “duplo desejo: o de nos nos opormos a esse lugar de alteridade e o de nos reinventarmos”. Nesse sentido, penso a clínica psicológica como um espaço de segurança em que o sujeito negro tenha legitimidade de surgir visto que o meu compromisso como terapeuta seria fornecer um lugar de plena segurança, sem interdições ou retaliações, onde emoções antes interditas possam circular e ser acolhidas com humanidade. É bem verdade que essa tarefa não é fácil, entretanto, a cada dia pessoas negras procuram profissionais de psicologia treinados para uma escuta ativa, profissionais com os quais possam não só se identificar mas sensíveis às suas vivências.
Como eu tenho conduzido minha prática? Como psicóloga clínica percebo que o processo da (re)construção da identidade negra ultrapassa o quesito melanina e aprofunda questões existenciais em que num dado momento o sujeito possa vir questionar todo o seu histórico, alianças, pactos coletivos, afetos, parcerias e induz o sujeito negro a uma espécie de luto do sujeito branco. Durante esse processo, é comum perpassar por fases de alienação, negação, suspeição, raiva, rejeição ao mundo branco até alcançar um estado ideal de consciência negra após uma etapa que eu nomeio como descolonização afetos.
Vale ressaltar que é inevitável o emergir de um sujeito negro político – uma identidade negra política – devido às transformações que ocorrem durante esse desvendar do ser. Como é um caminho doloroso e sem volta, geralmente é possível finalmente entrar em contato com o real desejo e viver de forma que faça mais sentido. Embora a clínica tende a tratar o individual, esse fazer clínico sempre pensa o devir negro no sentido coletivo pois a revolução é coletiva e se faz em todos os espaços. Deixo uma frase minha: “Se o corpo é político, a saúde mental também é”.
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