A violência racial é um dos motivos que causam tanto sofrimento psíquico em pessoas negras. Mas como racializar essa discussão ao se referir à saúde mental?
Em entrevista ao Mundo Negro, o psicanalista Lucas Mendes revela o conceito originário de Banzo, que ainda acomete a população negra na diáspora africana, mas é um tema pouco abordado, mesmo durante a campanha do Setembro Amarelo.
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“Banzo é um estado emocional de tristeza, desânimo, desesperança, que o preto escravizado usava para descrever esse sentimento. Por estar longe da sua terra natal, por estar longe da África, longe da sua família e da sua tribo. Além de ser explorado, violentado, cansado fisicamente e emocionalmente”, explica o psicanalista.
Mesmo com o fim da escravidão, as marcas desse sofrimento continuam profundas. “As pessoas pretas de hoje, especialmente as do Brasil, tem um banzo introjetado. A cultura se atualizou e continua explorando a gente da mesma forma […] o banzo pega quase que um atalho no entendimento da angústia e do sofrimento do preto”, diz Lucas, um estudioso de psicanálise e relações raciais no Brasil.
Leia a entrevista completa abaixo:
Qual o conceito de Banzo? E qual a ligação do banzo com os africanos escravizados?
Banzo é um estado emocional de tristeza, desânimo, desesperança, que o preto escravizado usava para descrever esse sentimento. Por estar longe da sua terra natal, por estar longe da África, longe da sua família e da sua tribo. Porque não é só a África [em si], era da sua matriz, da sua região, das suas pessoas, de tudo, além de ser explorado, violentado, cansado fisicamente e emocionalmente. Esse estado de cansaço, tristeza, desesperança, que é a atonia. Essa falta de movimento com a própria vida, chamava de banzo.
Banzo, quando você vai ouvindo a definição, se parece muito com a definição do estado depressivo melancólico, e aí tem uma especificação que é importantíssima, pois é um estado emocional complexo que carrega muitas coisas: desesperança, culpa, falta de energia, falta de motivação, déficit de autocuidado, um olhar negativo para si e um olhar negativo para tudo que se refere a si no mundo. Eles se parecem muito.
Depressão é uma condição orgânica que carrega esses quesitos por uma falta de energia cerebral que a consequência, é um estado depressivo, que pode vir por exemplo, de um luto, de um adoecimento por violências físicas, sexuais, e outras diversas. A duração e a falta de autonomia que a pessoa tem em relação ao estado depressivo que é o problema. Quando se torna permanente, independente dele ser orgânico ou não, é um problema. Banzo se encaixa muito bem em depressão ou em um estado depressivo.
Banzo foi, na verdade, um termo originalmente criado pelos negros escravizados e que foi apropriado à linguagem coloquial brasileira e ficou ao longo do tempo. As leituras, por exemplo, de como o racismo criou o Brasil fala sobre isso, de que esse termo era usado, e os brancos que se apropriavam e os escravizadores foram ouvindo e reproduzindo ‘o negro está com Banzo’, e o termo ficou.
Ainda hoje, podemos dizer que os negros na diáspora tem uma ligação com esse mesmo sentimento?
100 % dá pra dizer que as pessoas pretas de hoje, especialmente as do Brasil, que é o que eu estudo, psicanálise e relações raciais no Brasil tem um banzo introjetado. A cultura se atualizou e continua explorando a gente da mesma forma, porque o capitalismo é essencialmente racista. Não sou eu que estou dizendo isso, o Silvio Almeida [no livro] ‘Racismo Estrutural’, e inúmeros outros autores que se debruçaram sobre isso, que o capitalismo só existe se ele tiver alguém para ser explorado, e neste caso, o Brasil, o preto, a preta. É um sistema de escravização, muito mais sofisticado, subjetivo e elaborado, mas continua sendo um sistema de escravização.
Ele deturpa a identidade, tira a herança do eu, então o racismo faz isso. Existe uma segunda etapa que é o ideal preto, que também não é identidade por si só, porque também entra numa ideia de união do negro, que é horrível, que é como ‘somos todos de África, então somos todos iguais’. Não, porque lá não são todos iguais, porque são ‘N’ povos, culturas, diversidades coletivas e individuais. Esse borramento dessas individualidades, faz com que a pessoa perca a identidade. Uma vez que você perde o eu, você fica desesperançoso de si em relação ao mundo. Tem um sistema de exploração objetivo, trabalho e subjetivo do negro, que faz com que perca energia e que tenha sentimentos de culpa, pois a cultura responsabiliza o preto por tudo o que acontece, mesmo sem ter polícia à prova disso.
Então essa combinação toda, completamente, sim, está introjetada na nossa cabeça e o banzo é um sentimento comum. O banzo tira a energia vital que poderia fazer com que o negro se insurgisse contra aquele sistema escravocrata. E uma das fontes de energia que o banzo priva é a raiva, porque ela fica voltada para dentro, é tudo contra mim: ‘eu sou o problema’, ‘eu não gosto de mim’, ‘eu me odeio’, ‘eu estou causando mal’, ‘eu estou fazendo errado’. Então essa raiva toda que poderia ser fonte de energia para solução individual ou coletiva, para sair daquele problema, ele fica privado, porque a raiva está voltada para dentro.
Tem um lugar que é muito perverso, que eu vejo muito, que é o preto ou a preta que ascende e, ao ter sucesso, ele entra em banzo. Ele não estava antes, porque, na verdade, existem locais onde a identidade deste preto ou preta é preservado, mas, no sistema mais amplo, capitalista, esse lugar é periférico, ele é periferizado. Quando aquela pessoa sai daquilo, se instala o banzo, e aí, opa, que porra é essa? Pois é, é essa herança que ficou lá dentro, esse banzo ainda existe dentro da gente e, quando a gente eventualmente vai ocupar a totalidade, eu não estou nem falando só de sucesso financeiro, mas em formas de prosperar, o banzo que estava quieto, porque ele não estava entrando em confronto com a identidade parcial, ele se estabelece, porque, quando você pega tudo, ele está lá. Essa ideia psicanalítica do banzo. Frantz Fanon falou muito sobre isso.
O Banzo também é importante para se refletir durante as campanhas de Setembro Amarelo? Por quê?
Eu tenho um ranço enorme com Setembro Amarelo porque é deslocar uma discussão que é sobre algo vital, que é a vida, muito complexo e gigantesco, numa discussão muito pequena. Eu particularmente, quase que rejeito uma discussão sobre Setembro Amarelo, porque eu acho quase impossível fazer ela simplificada, assim como eu penso sobre Novembro Negro. É importantíssimo ter e usar aquele espaço, desde que a gente saiba que aquilo é reduzido pra uma discussão racial que é infinitamente maior, só que gera uma falsa satisfação de que já deu um aviso. Se a gente for ter uma discussão sobre a vida, o desejo da morte ou a desistência da vida por sofrimento psíquico, e eu não acho que é viável fazer nenhuma discussão de sofrimento psíquico sem racialização, falou do preto, não tem como não falar do banzo. Eu gosto muito da palavra ‘banzo’ e uso inclusive terapêuticamente falando. O banzo racializa automaticamente. Pega quase que um atalho no entendimento da angústia e do sofrimento do preto. O racismo é sobre a morte. Ou ela é provocada externamente, ou ela é induzida. E aí pode ser por suicídio que é a versão mais drástica, mas em outras formas.
O que é triste quando a gente está falando de saúde mental e, por exemplo, depressão, é que existe uma saída. Mas é que culturalmente se deturpa a coisa e às vezes ela é tida como se não houvesse a saída. Vários sofrimentos psíquicos de violências mais explícitas ou menos, tem saída, mas a cultura mostra como se não tivesse e aí a pessoa se vê num beco sem saída.
Eu vejo que fica um festival de frases bonitas e coisas legais a serem ditas, mas pouco responsável porque a discussão é muito complexa e ela precisa de uma responsabilização tão complexa quanto. A gente tem que discutir o Setembro Amarelo, eu só sou encrencado com a forma como discutem ela. Violência de gênero, de raça, de orientação sexual, de identidade, não discutir isso é superficializar a discussão, porque boa parte do sofrimento psíquico é decorrente dessas violências.
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