Atualmente, nas discussões sobre assuntos étnico-raciais, muito fala-se sobre ancestrais e tempos míticos construídos com a ajuda do imaginário. Nem tanta atenção dá-se, porém, ao passado recente que nos influencia de forma direta; aos antepassados “de ontem”, que canalizaram energias e forças criativas para resistir aos obstáculos da vida e mudar o seu entorno. Idalice Moreira Bastos é um dos brilhos que compõem as constelações negras ofuscadas pela pressa da História.
Em um tempo em mulheres negras eram estrategicamente colocadas ao fundo dos salões de beleza para serem atendidas como “clientes de segunda classe” e tinham como única opção de serviço o alisamento capilar feito com soda cáustica, Dai inovou. A cabeleireira e trancista não só desenvolveu um método diferenciado para lidar com mulheres feridas (literalmente) pelo racismo: ela vendeu todos os seus bens para criar a ONG Afrodai e capacitar mais de mil jovens em situação de vulnerabilidade através do conhecimento e da conscientização racial.
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Da Bahia ao Rio de Janeiro
A estrela de Idalice piscou pela primeira vez na Terra em 6 de junho de 1950. Baiana de Feira de Santana radicada no Rio de Janeiro, Dai (pseudônimo como era costumeiramente chamada e que se mantém entre os que a conheceram até os dias atuais) teve a consciência de sua negritude ainda jovem, quando ostentava fartos fios crespos entre um mar de cabelos alisados em sua terra de nascença.
Mulher negra de origem pobre, começou a trabalhar pela autoestima e valorização identitária de pessoas como ela aos 12 anos quando era ajudante de um salão, onde logo se tornou manicure ao chegar à idade dos 14. Porém, a paixão pelos cabelos era latente e, ainda na adolescência, em sua cidade natal, começou a trabalhar com fios crespos utilizando ferro quente e alisamento com pasta — o que nunca gostou muito de fazer; Dai preferia trançar e cuidar de cabelos crespos naturais.
Idalice chegou ao Rio de Janeiro em 1972. Nos primeiros anos na cidade, a baiana passou por sérias dificuldades de ordem financeira, mas determinada e extremamente sagaz, percebeu uma lacuna entre os cuidados dirigidos à beleza negra, na época. Os poucos profissionais que lidavam com fios crespos, tinham como princípio a harmonia visual e, por isso, cediam às pressões externas de padrões brancos de beleza oferecendo aos seus clientes apenas produtos químicos que alisavam texturas crespas.
Boca a boca: o início da fama
Na época em que chegou ao Rio, as tranças de inspiração africana eram ítem de desejo entre os adeptos do Movimento Negro Brasileiro, que lutava contra o racismo, exigindo melhores condições de vida e inserção do negro na sociedade. A militância do país enxergava a estética como comunicação do orgulho racial e autoproclamação da própria beleza, influenciados diretamente pelas mobilizações afrodiaspóricas que ocorriam em todo o mundo.
“Através da estética afro, do estudo, da cultura, da saúde, da cabeça boa, você busca a sua cultura, a traz de volta. Se não, não tem caminho. Porque pra viver num país como esse e pensar essas coisas todas que eu penso, tem que ter um pouco de arte.” 1998 *
Enquanto mexia com inúmeras cabeças, Dai teve a própria mente transformada a partir da troca de histórias, vivências e narrativas que ocorrem durante o processo de trançar. Sua já latente consciência racial desabrochou e permaneceu vívida até seu último suspiro. Cada cabelo que a baiana trançava agia como uma tela viva móvel. Em uma espécie de “boca a boca”, o nome de Dai foi ficando cada vez mais conhecido e a trancista atraía um público engajado que, na época, não tinha muitas opções de onde encontrar profissionais especialistas no penteado.
Afonjá e o pioneirismo na valorização da beleza negra
A história de Dai mexendo em cabeças cariocas começou antes de qualquer salão. Ao mesmo tempo em que juntava suas economias, Idalice nunca deixou de ajudar os que não podiam pagar seus serviços. O que ela realmente gostava era de ver o semblante feliz e orgulhoso de pessoas que descobriram uma beleza muitas vezes escondida em falhas máscaras brancas. Assim, a cabeleireira fez muitos penteados gratuitos e, trabalhando com diversos artistas, acabou conhecendo muitas pessoas influentes. Porém, o primeiro passo de seu reconhecimento artístico, fruto de muito esforço, chegou em meados de 1979, quando, ao lado do amigo João Pedro Pereira, Dai inaugurou o espaço Afonjá, primeiro salão de beleza étnico do estado fluminense. O acontecimento tornou-se um marco na história das mobilizações negras da região e obteve alcance nacional por seu pioneirismo na valorização da beleza negra.
“É difícil trabalhar porque nós não temos produtos para o nosso cabelo, pra nossa pele e o capitalista não tem nenhum interesse em fabricar. Os produtos químicos pro nosso cabelo são feitos com soda cáustica. É uma agressão. Esses produtos tiram a nossa característica e nós não queremos fugir da nossa realidade. Nós só queremos tratar o nosso cabelo.” – 1988.
A valentia e inovação em trabalhar a estética afro valorizando-a por si só e ignorando os padrões embranquecedores ditados pela moda — em uma época em que a beleza negra era ainda mais estigmatizada que hoje — atraía cada vez mais clientes que, em vários casos, tornavam-se amigos pessoais de Dai. Mas um desentendimento com o amigo João foi o pontapé para que a baiana alçasse voo solo e recomeçasse sozinha o seu grande sonho.
O início do Afrodai e seu método terapêutico
Em 1982, com a ajuda de alguns amigos, Idalice inaugurou seu salão Afrodai, em Copacabana. Referência entre os profissionais de estética afro, ela foi vanguardista ao instituir uma abordagem reflexiva ao tocar qualquer fio que chegasse às suas mãos. Devido aos anos de estudo como cabeleireira no Senac, aos cursos que fez fora do país e às experiências pessoais, a baiana “carioquizada” tinha o domínio da técnica de neutralizar danos químicos e até fazia testes de mechas para evitar a quebra da fibra capilar em uma época em que o procedimento não era tão comum. Mas foi através de sua conduta ousada e do olhar amoroso para com seu povo que a cabeleireira especializada em tranças afro destacou-se. Com muito papo e muito jeito, Idalice criou uma espécie de psicologia capilar que ia além do cabelo: chegava às raízes da alma.
“É uma coisa natural minha, de ficar falando ao mesmo tempo em que eu estou trabalhando e isso tem uma importância para as clientes. A gente começa não fazendo cabeça, mas sim cuidando do cabelo, do visual, da autoestima… e automaticamente vem essa coisa de se penetrar no interior da pessoa” – 1998.
Não eram poucas as mulheres tristes, com falhas graves na cabeça e couros cabeludos corroídos pelos produtos usados à época para alisar fios, que chegavam às suas mãos. Para esses casos, em que as pessoas envergonhavam-se de tirar os lenços que cobriam suas cabeças, Dai tinha um espaço reservado no salão, que as deixava livre de qualquer possível olhar julgador. Nesse ambiente separado, além do tratamento capilar, suas conversas terapêuticas auxiliavam o processo de auto aceitação de suas clientes. O resultado vinha não só em forma de sorrisos e alegria com a imagem vista no espelho: as frequentadoras do salão tornavam-se suas amigas e eram muito fiéis. Quem quer que passasse pelas mãos de Idalice, sempre voltava.
Musa inspiradora do Movimento Black Rio
Zezé Motta, Sandra de Sá, Lélia Gonzalez, Leci Brandão, Antônio Pitanga, Benedita da Silva, Léa Garcia, Djavan, Veluma, Isaura de Assis, Cléa Simões e até mesmo Caetano Veloso são alguns dos artistas e intelectuais que frequentavam o Afrodai. Desse modo, a influência de Idalice sobre a moda afro carioca — que obtinha proporções nacionais —foi se tornando cada vez maior. Mas é válido ressaltar, que, além de motivar a estética afro fazendo cabeças, Dai, por si só, era uma inspiração para o público negro da cidade. Confiante, consciente de sua identidade e muito bonita, a baiana chamava atenção por onde passava. Extremamente vaidosa, Idalice estava sempre de cabelo feito (grande parte das vezes, trançado) e adornava-se com roupas e acessórios africanos — acumulando admiradores onde quer que passasse.
Para ter-se uma ideia, um dos discos do Movimento Black Rio (mobilização de jovens negros cariocas em torno do cenário musical, político, cultural e intelectual em plena Ditadura Militar), o LP Soul Grand Prix (1976), teve como capa uma arte feita pelo ilustrador Demetrios inspirada em seus traços e estilo. Já o LP Funk Fantasy, trouxe uma foto de Dai na capa da coletânea de canções de artistas como Chaka Khan, Harvey Mason, Merry Clayton, o grupo Ohio Players, entre outros.
“Botaram na nossa cabeça que o negro é feio. E ficou isso, eles não dão oportunidade pra mostrar a nossa beleza. Porque nós somos belos. Nós temos uma energia incrível! Além da beleza física, a nossa energia é maravilhosa apesar de ser uma energia sofrida dos antepassados da gente.” – 1988.
A maestria na arte de trançar
Apesar de trabalhar com escovas, tinturas, permanentes, relaxantes e até implantes com cabelo humano — devido aos pedidos da clientela — as tranças sempre foram a técnica predileta de Dai. Conforme ela mesma disse em diversas entrevistas, o penteado trançado africano é o trabalho artesanal mais artístico dentro do leque de penteados afro; aquele que mais valoriza a beleza de pessoas negras e que a deixava livre para usar toda a sua criatividade.
“O penteado trançado africano é uma arte, é um trabalho artesanal e através dele você cria mil coisas na cabeça. Você não cria fazendo escova, você não cria pintando o cabelo. Você cria trançando, desenhando, modelando. É um trabalho artístico em que você viaja, é uma espécie de terapia.” – 1998
O salão passou por alguns endereços em Copacabana e, além de disputar como o principal ponto de beleza étnica carioca, o Afrodai também promovia festas e encontros onde mulheres negras poderiam se divertir sem preocupações e conversar sobre a vida. Desfiles de moda com peças trazidas pela cabeleireira diretamente da África também fizeram sucesso a ponto de estampar manchetes de jornal e fechar ruas do bairro.
Do Harlem à Lapa: o início da ONG
Mas, para a grande dama da estética afro carioca, isso ainda não era suficiente. O comodismo, aliás, nunca fez parte de seu vocabulário. Após uma temporada de estudos nos Estados Unidos, onde teve contato com a efervescência do icônico bairro Harlem, Dai aprendeu novas técnicas capilares, percebeu a exuberância e confiança das negras norte-americanas e pensou que poderia fazer mais pelas mulheres brasileiras com quem compartilhava a cor.
Ao contrário do que se pode parecer, o grande sonho de Idalice não era apenas ter seu próprio salão. Ela queria transmitir seu conhecimento para outras mulheres e, assim, ampliar o “empoderamento” de jovens negras (antes mesmo que esse termo existisse). Pois, mais do que cabelos, Dai fazia cabeças. E é com essa filosofia que ela saiu de Copacabana, um bairro nobre do Rio de Janeiro, rumo à Lapa — bairro que, na época, tinha fama por ser um local decadente e perigoso.
Após conquistar dois apartamentos, carros e linhas telefônicas graças ao seu trabalho, Idalice decidiu vender todos os bens e comprar um sobrado deteriorado no Centro do Rio de Janeiro. Enquanto os amigos não entendiam a mudança e viam a casa antiga como uma ruína amontoada de poeira, Dai visualizava seu sonho acontecendo em cada cômodo do local.
“Logo quando eu cheguei aqui no Rio, já comecei a ver a dificuldade das pessoas negras jovens em não terem como se defender, como continuar a estudar e até se alimentar. Ali eu já comecei a pensar que o caminho era ensinar uma profissão para elas” – 1998
Após uma boa reforma, em 1993 Idalice reinstalou seu salão de beleza acrescentando uma área para venda de roupas, maquiagens e acessórios. Um ano depois, já estabelecida, ela fundou na mesma casa a ONG Espaço de Estética e Cultura Afro Dai após perceber que as pessoas que chegavam até o salão em busca de trabalho não tinham experiência alguma e passavam por dificuldades de todos os tipos. Com a ONG, o principal intuito de Dai era passar seus saberes adiante, treinando pessoas carentes para exercer a profissão de cabeleireiros, trancistas e maquiadores especializados em penteados e maquiagens para negros.
Resgatando jovens das ruas
Na organização não-governamental, jovens entre 14 e 21 anos (em geral mulheres pobres, moradoras de favelas e já com filhos) podiam fazer cursos de maquiagem e penteados afro gratuitamente, tinham aulas introdutórias de teatro e dança, além de noções de etiqueta e postura. Palestras sobre cidadania, movimento negro e saúde também faziam parte da grade de atividades da casa. O foco era ensinar um ofício às moças, ajudando-as a recuperar a autoestima perdida nas ruas violentas do Rio de Janeiro e apresentando um horizonte diferente em que elas pudessem alcançar a independência financeira.
Para Idalice, o poder econômico era a única possibilidade de sobreviver com dignidade em uma sociedade capitalista, uma vez que o sistema e as classes dominantes exercem uma pressão muito forte em pessoas que povoam as margens sociais. “Você não pode competir com o outro se você não tiver nem o que comer”, afirmou a cabeleireira em entrevista ao Jornal da Band (emissora Bandeirantes), no final dos anos 1990. Dai defendia que a disputa por um emprego num mercado regido pelo capital e a conscientização racial só são possíveis através do conhecimento.
Os cursos duravam cinco meses e, a cada semestre, apenas 30 adolescentes entravam nas turmas. O Afrodai foi contemplado pelo Programa Comunidade Solidária (agência governamental criada em 1995 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso), que disponibilizava 40 mil reais por ano para a ONG. Com a quantia, Dai proporcionava aos alunos, além dos cursos, uma ajuda de custo de 50 reais, refeições e vales-transporte. Porém, a lista de espera por uma vaga na ONG contava, em média, com 250 pessoas por semestre — o que era motivo de imensa chateação para Idalice.
“Eu tenho muitos planos de que esses cursos se ampliem muito mais porque a demanda tá sendo muito grande, tem muita gente procurando. Assim que a gente viu a necessidade que o povo tem de um aprendizado.” – 1998.
O sonho que chegou à ONU
Três anos após o começo das atividades, a iniciativa foi reconhecida internacionalmente. O projeto deu tão certo que a ONG criada por Idalice foi selecionada em 1998 pela ONU como uma das 40 melhores práticas sociais do mundo para a melhoria do entorno humano. Naquele ano, 450 projetos de vários locais do mundo se inscreveram no prêmio bianual de excelência do Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Habitat). Mesmo assim, Dai continuou batalhando por verbas até o fim da vida para ir além com o projeto. Entre seus objetivos estavam reduzir a extensa fila de espera dos cursos fornecidos pela ONG e investir no ensino de práticas estéticas para pessoas da terceira idade.
“A vontade que eu tenho é de expandir esse projeto pra várias cidades, estados e lugares do Brasil pra que a gente possa atender essa gente toda.” – 1998
Dai tinha como filosofia a
A ideia de que não adiantava apenas dar cestas básicas, era preciso ensinar uma forma para que cada jovem tivesse sua própria fonte de renda e consciência racial. A cabeleireira e trancista costumava dizer que, para desembaraçar nós de um cabelo não era preciso “nada mais que babosa e carinho”. Foi com essa suavidade nas mãos aliada à toda a sua potência, que a maior precursora das técnicas afro de beleza no Rio de Janeiro desfez os nós da violência e do desamparo de jovens vulneráveis, fortalecendo a cultura de seu povo e mudando o destino de tantos alunos que passaram pela ONG.
Gerações transformadas por uma história ainda desconhecida
Em quase 10 anos, centenas de vidas foram transformadas. Mais de mil pessoas foram profissionalizadas e pelo menos 30% delas ingressaram no mercado de trabalho com os ofícios aprendidos no Afrodai. Seu espaço, designado por Nei Lopes como “núcleo de geração de rendimento, dignidade e cidadania”, alçou-a oficialmente ao posto de referência principal entre as trancistas da cidade. Em 1º de agosto de 2012, Dai faleceu devido a um câncer após cinco anos de tratamentos intensos. Na comunidade afro carioca, o sentimento de luto pela perda de quem foi luz em tantas jornadas ainda não passou. Dificilmente passará. Mas há a certeza de que a estrela que formou galáxias ainda em vida continua guiando os passos dos herdeiros de matrizes africanas a cada vez que um cabelo é tocado com carinho; sempre que uma mecha é entrelaçada.
Hoje em dia, existem produtos para cabelos crespos nas prateleiras de qualquer farmácia, diversos salões de beleza especializados em beleza negra (alguns deles, inclusive, criados por suas ex-alunas), incontáveis trancistas espalhando a arte do trançar pela cidade. Porém, a história de Idalice permanece desconhecida para a grande maioria das pessoas que não conviveram com ela, mas que seguem, instintivamente, o pensamento de Dai, sem sequer saber seu nome.
De volta à ativa: o Afrodai de hoje
Quase uma década após a partida de Dai e cerca de 14 anos depois do encerramento dos projetos da ONG, o espaço Afrodai voltou. No mesmo número 123 da rua Joaquim Silva, na Lapa. Colorida com as mesmas cores, mas em versões mais vibrantes. Nada em tons pastel. O roxo agora é mais forte e o amarelo também. A coloração comunica o inconsciente de qualquer visitante que, ali, as raízes, outrora adormecidas, permanecem intactas, mas sustentam os novos tempos trazidos pelo presente — embebidos, é claro, de um passado glorioso.
Sob direção do ator Paulo Lessa, filho único de Idalice, o agora “Espaço Cultural Afrodai”, inaugurado no início de julho, renasceu em um momento especial para Paulo: após o nascimento de sua primeira filha. O ator conta ter sempre alugado a casa para terceiros, mas, após ter se tornado pai, a confiança para revitalizar o local despontou. Agora, além das atividades culturais, que devem ser retomadas em breve, a ideia é reunir artistas, rodas de conversa, aulas e oficinas. Mas há um diferencial: Paulo quer reunir empreendedores no local. “A casa tem que ser pensada pela parte social, devido ao seu histórico, mas deve
também ter o pensamento do business para que possa se sustentar”, afirma — o que combina perfeitamente com o pensamento de emancipação financeira que Dai defendia.
O primeiro andar do local antes sediava o salão de beleza, um pequeno bazar com acessórios, maquiagens e roupas de tecidos africanos feitas sob medida, tendo, aos fins de semana, encontros regados à música e comida baiana. Hoje o térreo da casa conta com o Boteco & Gafieira Seu França, dos irmãos Fábio e Rodrigo França — ambos artistas e produtores culturais. Já na parte de cima, onde ocorriam os cursos e ações sociais da ONG, há uma loja com diversos empresários negros e vários espaços prontos para receber artistas plásticos, aulas e oficinas, rodas de conversa, e outras atividades culturais voltadas ao fortalecimento da cultura negra.
O “novo Afrodai” liderado por Paulo, um homem negro, é aberto ao diálogo direto com o público afro feminino. Segundo o ator, apesar de imerso nas questões raciais, é mais do que necessário ter conversas que o ajudem a revitalizar o espaço sem ignorar o pano de fundo no qual nasceu a casa. “Eu quero muito conversar com mulheres para entender suas propostas sobre o que a gente pode fazer ali que vá agregar não só para o local, mas para todo mundo que está nele, já que a casa, historicamente, é de uma mulher preta fortíssima”, afirma.
O resgate da estrela
Há alguns anos tem sido pensada a ideia de transformar a história de Dai em um filme documental. Quem lidera o projeto é Asfilófio Filho, amigo de longa data de Idalice e também líder do Movimento Black Rio, que estremeceu a Ditadura Militar brasileira nos anos 70 — dentro do exército havia um grande medo de que essa união em torno da música negra se tornasse uma versão nacional do partido estadunidense dos Panteras Negras. Dom Filó, como é conhecido, é proprietário da Cultne, que, além de produtora audiovisual há 40 anos, é também o maior acervo digital de cultura negra da América
Latina.
O objetivo do documentário é retirar a trajetória de Dai do esquecimento mostrando às novas gerações sua importância enquanto mulher, negra, empresária, cabeleireira, trancista, feminista e ativista pelos direitos da população negra brasileira. Idalice permanece viva em cada cabeça trançada; está presente quando uma mulher negra dedica carinho à si mesma. Grande responsável pela popularização das tranças africanas no Rio de Janeiro, Dai deixou enorme legado em diversas áreas, principalmente ao motivar a conscientização racial incentivando amigas, clientes e alunas sobre a grandeza do amor próprio. E, mesmo morando no céu — determinada, como sempre foi — há a certeza de que ela continua abrindo portas, despedaçando preconceitos e aparecendo, sempre que chega a noite, no infinito em que vivem todos os ancestrais.
* As aspas de falas de Idalice aqui apresentadas foram retiradas das seguintes fontes: entrevista no programa Radial Filó, na extinta TV Rio no ano de 1988; falas documentadas pela produtora Cor da Pele, de Don Filó em 1998; entrevista para o trabalho monográfico de Cássia Marinho, em 2004. A utilização das citações foi autorizada não só por Don Filó (criador da Cultne, o maior acervo digital de cultura negra da América Latina), como também por Cássia Marinho (cabeleireira e autora da monografia“Marcas da Exclusão na Imagem Pessoal da Mulher Negra”) e Paulo Lessa, filho de Idalice Bastos.
Para saber mais sobre a história de Dai, vale uma visita ao Acervo Digital de Cultura Negra (Cultne) – criado em 2010 pelo produtor Don Filó, um dos mentores do Movimento Black Rio na década de 70:Entrevista de Dai no programa Radial Filó, em 1988, na extinta TV Rio:
Parte 1 ; Parte 2.
Registro de Dai feito por Don Filó na produtora Cor da Pele, em 1998.
Texto de Gabriela Isaias.
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