O documentário “Forbidden Games: The Justin Fashanu Story” disponível na Netflix desde 2017 conta a história de Justin Fashanu, um ícone que quebrou grandes tabus nos anos 80 e 90 na Inglaterra, tornando-se o primeiro jogador britânico negro a ser transferido de um time para outro por 1 milhão de libras (na época, era uma fortuna) e o primeiro jogador da história a falar abertamente sobre a sua homossexualidade, em um contexto social marcado por um conservadorismo inglês altamente rigoroso.
Poucas pessoas o conhecem e essa sua invisibilidade, obviamente, deve-se a um sistema que ofusca a importância simbólica de figuras pretas LGBT’s na história. Um homem preto gay, jogador de futebol, décadas atrás, vítima do racismo e da homofobia, escancarou a sua sexualidade em um país onde o racismo não era crime e a homossexualidade era condenada. Você tem noção do quanto isso é encorajador e representativo para a comunidade preta LGBT+ no mundo todo?
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O que o documentário fala sobre Justin Fashanu?
Justin, filho de um nigeriano com uma guianense, foi abandonado pelo seu pai antes do nascimento e, depois de nascido, foi deixado pela sua mãe no orfanato com seu irmão John. Ambos foram adotados por uma família branca, mas a ausência de seus pais biológicos e a dificuldade de crescer e pertencer a essa família não foi uma situação fácil e esses episódios influenciaram muito na personalidade e no temperamento dos irmãos. Justin tinha muitos conflitos internos, oscilações de humor e seus amigos afirmam no documentário que ele era multifacetado e indecifrável — cada dia estava de uma forma e nem ele mesmo se compreendia. Justin jogava futebol muito bem na sua escola e ganhou grande destaque no esporte, entrando aos 17 anos no Norwich City e passando depois por diversos times como o Nottingham Forest e o Manchester City.
A sua carreira como jogador não foi nada fácil. Em campo era chamado de macaco e atingido por bananas. O racismo, nessa época, era mais ainda escancarado, pois o parlamento inglês posicionava-se contrário à criminalização do racismo e, uma vez que esse ato perverso era legalizado, Justin não tinha como recorrer a denúncias, tendo que ser obrigado a lidar e conciliar a paixão pelo futebol com a discriminação racial que sofria nos jogos. No entanto, o seu destaque como atacante e suas habilidades em campo o fizeram ganhar visibilidade no esporte, tornando-se o primeiro jogador negro a custar 1 milhão de libras e sendo capa de manchetes de jornais com grande reconhecimento mundial. A sua carreira, no entanto, estava ameaçada quando em 1990 resolveu falar abertamente sobre a sua homossexualidade no The Sun, após surgirem boatos de que ele frequentava festas LGBT’s. Seu irmão, John, que na época também estava ganhando espaço no futebol, chegou a oferecer-lhe dinheiro para que ele não falasse sobre isso com receio de que a carreira dele (de John) fosse comprometida por causa da liberdade do irmão de querer falar sobre a sua orientação sexual. Mesmo assim, Justin não aceitou o dinheiro e disse que falaria abertamente sobre sua sexualidade: “na minha carreira, quando acontecia algo, eu ia para o The Sun. Quando virei um jogador de 1 milhão, saiu no The Sun. Virar cristão renascido, saiu lá. Então pensei que, se for para fazer direito e ser franco, vou usar o mesmo meio que usei nas vezes anteriores”.
Infelizmente, apesar da atitude corajosa do jogador de bater de frente com um tabu em um meio de comunicação de grande audiência, a sociedade não reagiu bem a isso, como já era esperado. Falava-se, a partir de então, muito mais sobre a sua sexualidade do que sobre seu talento no futebol. A maioria dos companheiros de time passaram a rejeitá-lo e diziam que era inaceitável ter um gay em uma equipe no futebol inglês. Assim, Justin perdeu diversos contratos, não conseguia se firmar mais em nenhum time e para acabar de completar, foi acusado de abusar sexualmente de um garoto de 17 anos. Não teve a possibilidade, todavia, de se retratar, pois o fato de ser gay já o colocava como culpado. Justin afirmou que o sexo com o garoto foi consensual e que se tratava de uma armação, pois não havia provas, mas ainda sim continuava como criminoso perante à justiça. Resolveu então, temendo ser preso de forma injusta, cometer suicídio. Seu amigo no documentário fala que esse fim trágico já era esperado, pois ir à prisão seria como retroceder a uma instituição semelhante ao orfanato onde ele já vivia preso e marginalizado quando era criança.
O que podemos aprender com a história de Justin e como podemos nos inspirar nele?
Acredito que, inicialmente, precisamos falar sobre interseccionalidade, uma discussão muito bem explorada por Angela Davis em “Mulher, Raça e Classe” que fala como a multiplicidade de opressões (de gênero, de cor e de classe) dentro de um sistema capitalista regido pelo privilégio do homem branco rico afeta as mulheres negras. Apesar desse termo vir à tona dentro da abordagem do feminismo negro, pode-se também falar da interseccionalidade com a história de Justin, se levarmos em consideração que o racismo e a homofobia articulam-se para invisibilizar corpos pretes LGBT’s. Justin não sofria somente por ser um homem preto. Justin não sofria somente por ser um homem gay. Ele sofria por ser um homem preto gay e isso mostra como essas lutas são indissociáveis para nós. Dentro do movimento negro, há uma cobrança para que coloquemos a pauta racial como a mais importante e nem todo mundo está interessado em saber as nossas dores enquanto LGBT’s. Da mesma forma, a comunidade LGBT+ exige de nós a discussão de questões de gênero e orientação sexual, mas quando começamos a racializar os debates, logo perdemos o nosso lugar de fala e somos taxados de chatos e, nesse momento, percebe-se uma falta de empatia profunda, em que o ego dá margem para barreiras discriminatórias que passsam a existir dentro de grupos minoritários que lutam por igualdade, mas que ao mesmo tempo segregam pessoas que são vítimas de opressões que se interseccionam. Essa falta de união e empatia entre os movimentos sociais explica o porquê conseguimos eleger um presidente (homem, branco, cis e hétero) racista, LGBTfóbico e machista que reafirma todo esse sistema opressor excludente construído há séculos mesmo sabendo que juntas as minorias formam uma maioria.
O segundo ponto abordado é como o esporte pode ser uma poderosa ferramenta de mudança social. No início da carreira, o racismo não conseguiu parar Justin, ele era uma máquina. Da mesma forma, o racismo não consegue parar diversos jogadores pretos brasileiros que conseguem ascender socialmente. No entanto, o racismo consegue seu êxito a partir do momento que aliena esses jogadores a acreditarem que vivem numa democracia racial e que o dinheiro foi conquistado somente por mérito, sem precisar de oportunidades (meritocracia) e que essa ascensão econômica os impede de serem vítimas do racismo — mal sabem eles que essa opressão não é apenas um problema de classe, mas também de raça.
Essa falta de consciências social e racial não permite que haja mais mudanças significativas no esporte e, consequentemente, não possibilita que haja mais impactos na sociedade, por conta de jogadores que não estão dispostos a saírem da sua zona de conforto e utilizar seu meio de influência para combater essas discriminações (de gênero, de cor, de classe, de orientação sexual etc…).
O terceiro ponto que o documentário mostra é que o futebol ainda é regido por um ideal de masculinidade tóxico que incita o ódio a gays e como essa cultura homofóbica dentro do esporte coloca em risco a carreira de um jogador. Acredito que ver clubes como o Bahia, em Salvador, com campanhas demonstrando repúdio à homofobia já é um bom avanço, mas é preciso mais. É preciso que a mobilização seja feita também por jogadores, que exercem grande influência nos meios de comunicação e na formação do imaginário coletivo. Esse jogadores não precisam necessariamente serem negros ou LGBT’s, mas que entendam a importância que o esporte desempenha na vida de várias pessoas e a necessidade de construir espaços mais igualitários e menos discriminatórios. É preciso também que você, leitor, que não é necessariamente um jogador(a) famoso(a), mas que ama o futebol, entenda a importância de desconstruir esses pensamentos retrógrados dentro dos pequenos espaços que vocês ocupam nos campeonatos escolares, no baba do seu bairro, etc… Não se preocupe se te chamarem de chato, se acharem que você é gay por lutar contra a homofobia. O mais importante é a sua consciência coletiva, os seus valores e a sua compreensão de mundo que não deve tolerar nenhum tipo de opressão social.
Por último, acredito que a coragem de Justin deva inspirar todos nós. É preciso de coragem e resiliência para lutarmos pelos nossos objetivos, pelos nossos sonhos profissionais e não sucumbirmos ao sistema assim como Justin não desistiu da sua paixão pelo futebol enquanto estava vivo. Além disso, acredito também que o ato de se libertar e viver a sua sexualidade da maneira que quiser também seja importante. Caso você não tenha o apoio da sua família e de seus amigos próximos, como Justin não teve, não desista. Existem redes de apoio, existem pessoas que se importam com você. Procure por elas!!! Procure por pessoas que vivem a mesma realidade que você e que possam te acompanhar nesse processo!!! Mas NÃO desista de você. O fim de Justin foi trágico e eu não o julgo, porque imagino o quão doloroso tenha sido. Mas nós não podemos nos permitir esse fim. Existir é um ato de resistência ao sistema!!! Quando você se liberta e se reafirma gay, trans, bissexual, pansexual, lésbica, o que quer que seja, você encoraja mais pessoas, você mostra que não somos exceções, que existem muitos de nós e como diz a cantora Bia Ferreira: “nascem milhares dos nossos cada vez que um nosso cai”. A gente tem demandas e precisamos usar nossas vozes para exigirmos que elas sejam atendidas. Queremos conquistar espaços que nos foram tirado durante a história. Queremos poder viver com dignidade. Queremos ser vistos como humanos (macaco e viado são palavras que nos animalizam, que nos desumanizam e ao retirarem a nossa humanidade, é como se dissessem que não temos direitos). É importante refletir sobre tudo isso!! Refletir, inclusive, que não somos todos iguais. Não somos tratados da mesma forma nesse país. Um preto trans não recebe o mesmo tratamento que um branco gay. Uma preta lésbica não recebe o mesmo tratamento que um branca lésbica. Somos diferentes, mas podemos ser mais empáticos, nos importar mais com a luta uns dos outros e unir nossas diferenças em prol de uma busca mútua de todos os movimentos: a busca pela igualdade.
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