Texto: Gabrielly Ferraz
Edição: Silvia Nascimento

As barreiras a serem enfrentadas por um negro que decide se tornar comissário de bordo no Brasil, não se limitam ao investimento financeiro, se estendem a árdua resistência e se encaminham para adoecimento mental causado pelo racismo velado.

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O racismo que ocorre a bordo ainda não é motivo de pauta para as grandes companhias aéreas, ocasionando então em um ensurdecedor silêncio dos negros comissários, que infelizmente são submetidos à naturalização de tais situações.

Conversamos com Kenia Aquino, comissária com mais de 10 anos de atuação, fundadora do ‘Voo Negro’ projeto que auxilia, incentiva e contempla milhares de tripulantes negros pelo Brasil. E ao ouvir seus relatos em todos esses anos de experiência foi possível notar que o racismo no Brasil, segue sendo alimentado e cresce incessantemente.

Além desse racismo ‘sutil’ que os comissários sofrem pelos passageiros, recrutadores e até mesmo pela própria equipe, existem outras questões que tornam a profissão ainda mais desestimulante para os negros. Exigências de um comportamento superior aos demais, subestimação de sua capacidade e as limitações que só decaem aos corpos negros são uma delas.

“Eu percebo sim, que existe uma diferença de avaliação e de cobrança. Porque uma coisa está diretamente ligada a outra, a partir do momento que eu sou uma comissária de voo negra eu preciso manter as cobranças que são feitas a bordo da mesma maneira para todos os nossos clientes, mas eu não sou igual a todos os outros comissários.” Diz Kenia que ainda lembra de uma ocasião em que um passageiro recusou a água que ela estava oferecendo para logo em seguida solicitar um copo d’agua a outra comissária, que por uma inesperada coincidência, era branca.

Kenia Aquino, comissária com mais de 10 anos de atuação (Foto: Arquivo pessoal)

 

“Em geral, eu sou a única negra do rolê, raramente nós temos duas pessoas negras numa mesma tripulação. Quando eu, enquanto corpo negro chego a um passageiro e preciso que ele faça algo que ele não quer fazer, em geral ele tem uma tendência muito maior a mandar uma reclamação para empresa, porque ele se sente ofendidíssimo com o meu ‘NÃO’,” desabafa Kenia sobre uma situação de tensão entre ela e um passageiro que se recusava a respeitar as regras padrões de voo que lhe foram passadas por ela.

Assim como em muitas outras áreas de atuação, os negros seguem sendo subestimados e resumidos a “inexperientes” nas companhias de aviação.

Enquanto há um negro se esforçando para alcançar a excelência em seus postos, há um branco realizando um trabalho mediano e recebendo muito mais méritos por isso. E esse ‘não’ reconhecimento pode gerar uma frustração que consequentemente desestimula muitos comissários negros a seguir na carreira.

“Tem comissários que estão adoecendo por está vivendo cenas de racismo institucional, não é a instituição da Companhia Aérea, mas o Brasil, as pessoas, os passageiros, os colaboradores, os prestadores de serviços,  todo o sistema brasileiro é racista.”

O assunto ‘Cotidiano dos comissários de bordo negros’ não é algo que ouvimos falar constantemente, afinal, com que frequência os vemos? E o que além do fato de vivermos em um país extremamente racista justificaria a falta desses profissionais negros nas companhias aéreas? Podemos apontar alguns fatores, como: a desigualdade social, que muitas vezes impede que uma pessoa negra, pobre, periférica tenha noção do que é necessário para se tornar um comissário de bordo, ou também a dificuldade financeira, que irá o impedir muito antes de conseguir se matricular em um curso, pelo fato da ausência de idiomas, mas muitas vezes sempre irá retornar para a cor da pele que irá tirar a sua merecida vaga e colocar no lugar uma pessoa branca, loira e provavelmente de  olhos azuis.

O que foi o caso da Kenia em seu primeiro processo seletivo para comissária de bordo.

“Eu tenho consciência de que nós não somos tantas assim, mas existimos”, diz Kenia ao relembrar conosco o motivo que a impulsionou a criar o “Voo negro”:  A falta de representatividade.

“Existem várias páginas e perfis nas redes sociais que falam sobre a profissão, que incentivam os comissários os alunos comissários, exaltam a beleza das comissárias brasileiras e dos comissários do mundo. E na época, eu não identifiquei nenhum perfil que contemplasse as comissárias negras. Eles são vários perfis distintos ali que tem 200, 300, 400 postagens e alguns deles não tinha nenhuma foto de comissárias negras e alguns tinham uma ou duas fotos.”

É viável pontuar que a sutilidade com que muitos casos de racismo acontecem a bordo, pode sim influenciar diretamente na carência de medidas de repúdio contra essa prática, partindo das companhias aéreas.  Porém, seria um pouco fantasioso acreditar em tamanha ingenuidade vindo de grandes empresas de aviação. O racismo precisa virar pauta entre essas companhias, informar aos passageiros sobre as consequências dessa prática e dar suporte aos comissários negros que frequentemente são expostos a essas situações é algo que já deveria estar sendo feito.

“Não há uma política anti-racista nas companhias aéreas brasileiras, não existe. Nunca teve, nunca foi uma questão para essas companhias nem para os órgãos que permeiam as companhias aéreas,  os sindicatos, nem associações. Há um despertar coletivo, e há uma necessidade enorme de se fazer mais.”

Com a iniciativa da Kenia, na criação do ‘Voo Negro’ hoje, os aspirantes à comissário de bordo negros do Brasil, tem em quem se inspirar, tirar suas dúvidas e descobrir mais sobre o cotidiano dos tripulantes negros.

Bons resultados estão sendo comprovados desde a criação do projeto, os comissários negros, que antes se viam sozinhos em uma luta diária, hoje já conseguem contar com o apoio de outros tripulantes que entendem suas dores. É sobre conforto, compreensão, representatividade e resistência.

“Estamos em contato com as companhias e com algumas entidades afro e escola de comissários com o objetivo de conseguir que as companhias aéreas abram seleção especificamente para as pessoas negras, porque aí não existiria a ‘desculpa’ de que não existem negros na aviação porque eles não fazem o curso, existem muitas pessoas negras que fizeram o curso e estão prontas para começar, elas só não tem as mesmas oportunidades.”

O ‘Voo negro’ não se limita a apenas um perfil em uma rede social, Kenia também nos contou sobre o novo projeto que já está em vigor em parceria com a escola de comissários ‘Palegre’.

“Essa seria a segunda parte do meu projeto,  pretendemos criar bolsas de estudo 100% para pessoas negras dentro de escolas de aviação, a gente precisa quebrar essa barreira financeira, e convencer as pessoas periféricas de que é possível seguir esse caminho, atualmente já realizo um trabalho de palestras com pessoas que tem aspiração para se tornar comissário, eu trabalho com pessoas de todas as etnias, mas sempre vou partir do princípio que os negros enfrentam mais dificuldades.”

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