Racismo, gênero e trauma: A Madalena em todos nós

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Racismo, gênero e trauma: A Madalena em todos nós
Imagem: divulgação/reprodução

Por Vanessa Rodrigues

Me reconheço muito em Madalena. Assim como ela, aos nove anos comecei a trabalhar em “casa de família”. Me lembro da minha “patroa” dizendo para a vizinha, que era melhor ter uma menina “novinha para fazer os trabalhos de casa, porque conseguia abaixar para ver a sujeira”.

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Em uma outra ocasião, fui defender o  garoto que eu cuidava, enfrentando o tio que queria espancá-lo. Ele me bateu com o cinto nas costas. Ainda posso sentir a marca na pele.  Nessa mesma família, ganhei uma joia da avó da minha “patroa”. Eu era muito solícita e sempre a ajudava dando banho, carinho e afeto à velhinha. A filha da dona da casa, me tomou a joia, dizendo que eu não a usaria e, me deu em troca uma tornozeleira de latão, quebrada.

Um pouco mais velha, acredito que com uns 12 anos, comecei a trabalhar na casa da professora branca do meu irmão. O marido dela era um jornalista e comentarista político de esquerda bastante conhecido na cidade. Ela me recebeu dizendo que eu seria como filha na casa. Mas com pouco tempo, começou a dizer que eu não era limpa, jogar as panelas que eu lavava no quintal e me obrigar a limpar o coco do cachorro dela e dividindo com ele também o arroz amanhecido e o resto de caldo de carne.

Uma vez, sem conseguir dormir, fui à biblioteca da casa e me servi de alguns livros. Fiquei lendo quase a noite toda, porque não conseguia descansar. Era difícil em um chão forrado apenas com um acolchoado fino. Sempre fui muito magra, sinto muito frio. Acabei perdendo a hora de chamar o garoto, filho da “patroa” pela manhã. Ela gritou comigo por ter pego os livros, perdido a hora. Disse que não me pagava para ler. Eu ganhava algo como um terço de salário por mês. 

Ah, antes que eu me esqueça, eu não fui abandonada com nenhuma dessas famílias. Não fui privada de ir à escola. Mas mesmo contando esses episódios abusivos à minha família, eles não me davam crédito. O resultado disso é que fui cada vez mais normalizando os maus tratos. Os abusos de todas as maneiras, internalizando meu lugar de subalterna. Foram mais de vinte anos de vida e quinze de terapia, para que eu entendesse o tamanho da negligência, do que sofri, simplesmente porque era garota negra, mesmo sendo excepcionalmente inteligente. 

Eu me reconheço em Grada. Assim como ela, fui convidada inúmeras vezes a fazer parte de passeios com pessoas brancas, para que eu pudesse conhecer a praia e “ajudá-las um pouco” com o cuidado da casa e das crianças. Um certo dia, quando eu estava no mestrado voltando para casa e andando pelas ruas da Unicamp, fui abordada por uma moça branca. Ela me indagou sobre uma oferta de trabalho doméstico. Primeiro, se eu conhecia alguém. Depois, se eu mesma não queria me encarregar das tarefas. Quando eu disse que não, ela não se conteve e precisou me perguntar, porque eu não queria a vaga: “Trabalho está difícil, moça”. Eu respondi que tinha bolsa de mestrado. E que neste momento estava dedicada a minha pesquisa.

Percebem? Existe um pressuposto onde todas as meninas pretas se vinculam com o lugar do servir. Madalena em Salvador, eu em Campinas e Grada na Europa. Sobre nós recai o pressuposto do “racismo genderizado” (Kilomba, 2020) onde é perversamente óbvio entender que uma garota negra, naturalmente trabalha para uma família branca. Madalena foi escravizada, eu trabalhei e sofri abusos na infância por parte de um salário e Grada recebeu uma proposta, a qual ela pode negar. O tamanho da irracionalidade dos agentes nestas ações é diretamente proporcional, tanto à intensidade da cor da pele, quanto ao grau de reparação das políticas públicas, tempo em que ocorrem e as relações étnicas. 

É sobre isso também que se trata. Mesmo com todo o contato com o mundo externo, com os livros, televisão e alguns professores salvadores, minha vida até bem pouco tempo beirava a ideia de inferno. Minha auto-estima foi estraçalhada e aceitei parceiros abusivos por toda a minha adolescência. Tinha vergonha de sair na rua e imaginava que o mundo era mais bonito quando eu ficava em casa, porque na minha fantasia, eu destoava de tudo que era belo. Desta maneira, era um grande favor quando eu me mantinha trancada em casa. Minha sorte foram os livros, minha amiga Dedé, e depois a terapia.

Acredito que eu entenda verdadeiramente o que sentiu e sente Madalena. O racismo nos faz sentir indignos. Menos humanos, deslegitimados e invisíveis. Diminui nossa potência, racha com a nossa inteligência e te faz sentir menor o tempo todo. Abrão Slavutzky, na apresentação do livro de Isildinha B. Nogueira – “ A Cor do Inconsciente” – consegue resumir bravamente como a branquitude nos vê:

“Ser negro não é uma condição genérica, é uma condição específica, é um elemento marcado, não neutro. O ‘ser negro’ corresponde a uma categoria incluída no código social que expressa dentro de um campo étnico-semântico onde o significante ‘cor negra’ encerra vários significados. O signo ‘negro’ remete não só a posições sociais inferiores mas também a características biológicas supostamente aquém do valor daquelas propriedades atribuídas aos brancos.” (Slavutzky, 2021)

O racismo é uma espécie de trauma, que abala a pessoa em seu equilíbrio narcísico. E é certo dizer que, quando tratamos de narcisismo, estamos dizendo do individual. Mas como uma espécie de paradoxo, essa ruptura é parte de um efeito patológico geral, instaurado no inconsciente coletivo da sociedade, impedindo uma integração das pessoas negras e brancas em um mesmo humano enquanto sujeito universal.  Por isso que dizer que ser negro é estar mais longe do que é humano, se conecta com um pressuposto de que a universalidade e pureza é vinculado a bancura, e consequentemente à branquitude.

Grada Kilomba se torna uma artista, psicanalista reconhecida depois dos abusos que viveu. Eu, provavelmente, se tivesse nascido na mesma época de Madalena, teria o mesmo fim. Como ela, existem muitas. O mito da Democracia Racial, nos obriga a lidar com os racismos cotidianos no âmbito individual, ao mesmo tempo que somos silenciados no coletivo, rotulados como vitimistas ou vitimizados.

A aparente equidade nas relações raciais acabam por criar uma ruptura psíquica que sobrepõe a nossa capacidade de abstração e simbolização no mundo. Isso ocorre porque não existe tal equidade, sobretudo nas camadas sociais vinculadas a um poder. Em sendo o racismo uma maneira de violência, quando uma pessoa negra é atravessada por essa energia, nem sempre é possível elaborar abstrata e simbolicamente essa violência. Toda a vez que a ação racista é repetida,  o conceito toma cada vez mais contornos traumáticos, de maneira cumulativa, agindo em nível de emergência traumática de raça. 

Me recordo ao terminar “Memórias da Plantação” e conhecer todos os relatos de Grada na escola, na universidade, com os amigos e na rua, o sentimento de identificação. Do outro lado do mundo uma menina sofreu racismos parecidos com os meus. Estou aqui escrevendo. Luto contra este fato. Madalena não pode. Ela está inserida com maior profundidade nesse fenômeno  desencadeado pela desumanização, o descaso e o sofrimento psíquico fomentado pela escravização, privação, maus-tratos e o racismo. 

Madalena sofre uma angústia que é da ordem do medo, da aniquilação.  Essa angústia tem a ver com os ataques que nós, enquanto pessoas negras, sofremos repetidas vezes, de maneiras cada vez mais sofisticadas e atualizadas. Esses ataques se referem, no limite, à destruição da nossa existência. Para ela, materializou-se no terror de tocar as pessoas brancas. Ao mesmo tempo, ela não quer  “contaminá-las”, com sua negritude,  tem medo de ser aniquilada pela brancura . É uma ideia introjetada pelo sofrimento de que existe nela uma suposta inferioridade negra  e uma superioridade branca.  Nesse lugar são os brancos é que dizem que são os negros e não os negros que dizem quem são os brancos. O poder está centralizado na brancura. Essa montagem é perversa e está ancorada em uma aversão ao próprio ser humano pela racialização como um lugar de inferioridade.

Entendam: brancura não é uma categoria neutra. Negritude não é uma categoria menos humana. A diferença entre as duas se dá na dialética social do poder. Enquanto a branquitude ocupa lugares de controle e opressão, a negritude, em virtude da perversidade do racismo, precisa ainda se consolidar socialmente enquanto identidade do humano. Desta maneira, o racismo é patológico no branco, pois se configura como uma situação neurótica que contém um enigma perverso de uma situação pulsional. Percebem?

Quando o primeiro europeu nomeia de “negro” uma pessoa africana em condição de escravizado, ele delimita uma hierarquia que o marca como menos humano, menos evoluido. Essa categorização perversa se mantém até hoje, sobretudo no Brasil, escondido sob o véu da democracia racial um ideal de igualdade que na verdade serve apenas para silenciar abusos cometidos. Madalena se via inferior. Não porque deseja, mas sim, porque não pode desejar. Impossibilitada de gritar sua dor. Impedida de se expressar em toda a sua humanidade. Espero que assim como eu pude me reestruturar e entender que sou como sou: Mulher Negra, humana e capaz, Madalena possa se libertar como resistência de corpo, alma e espírito para o mundo que a feriu, introjetando-o como potência que ela certamente é! Somos juntas, somos força em nossas histórias. Somos Madalena. Somos Grada. Sou Vanessa.

Toda criança espera ser acolhida em suas necessidades, amada e integrada na sua familia como objeto de amor e cuidado. Quando isso não ocorre, acontece uma ruptura traumática que transforma o Ego – como projeção do Eu no mundo – em algo fragmentado, desumanizado, desmoronando o equilibrio narcísico

Costumo dizer, que quando um bebê nasce,esperamos que  ele seja  pura potência psíquica. Que ele possa ser vontade em direção a realidade, onde consiga realizar suas melhores fantasias e desejos. E é para isso que tentamos trabalhar: a plena realização das características especiais de cada um dentro dos contornos sociais que nos limitam. A psicanálise trata disso. Vou propor aqui um exercícios de entendimento para o conceito psicanalitico de ego.

Grosso modo, ele é como o Eu se representa na realidade/ materialidade. Então, quando nascemos, esse eu que ainda não sabemos que existe como parte, se comporta como um todo para se proteger. Isso significa que tudo se trata de mim: comer, dormir e ser acolhido são as grandes necessidades do bebê, esse pequeno narcísisico que só se interessa por si e pelo o que pode saciá-lo.  Aos poucos, esse narcisismo vai se dissipando, no contato amoroso com os cuidadores e nas descobertas empíricas que vão sendo realizadas a partir da generosidade e do afeto dos que amam o bebê. Esse seria um processo normativo de desenvolvimento infantil. Mas nem sempre isso ocorre desta maneira.  

Em algums casos, o equilíbrio narcísico pode se romper a partir de um sentimento de desemparo ou angústia de aniquilação. Esse trauma abala a concepção do Ego, isto é, a maneira como o indivíduo se coloca no mundo é fragmentado, desconectado com o seu Eu e sem representação para si mesmo. O caso de Madalena da  Silva ilustra esse fenomeno traumático  desencadeado pela desumanização, o descaso e o sofrimento psiquico criado pela escravização e o racismo. Madalena não se entendia como humana e igual à repórter branca que a entrevistou. O racismo produz uma espécie de trauma que abala a pessoa em seu narcisismo.

Há de se considerar que essa subalternização da existência da pessoa negra pode causar como sintoma traumático uma espécie de recuo dos espaço públicos, um desejo de anonimato, uma vontade se desaparecer, por se sentir como uma emergência de diferença não aceita, menos humana e distante do ideário branco.

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