Texto: Shenia Karlsson
A famosa pergunta frontal que Frantz Fanon faz em sua obra Pele Negra e Máscaras Brancas, continua a ser uma pergunta que vale milhões, apesar do autor fornecer elementos consistentes para repensarmos nossa negritude. Nos últimos anos recebemos uma enorme onda de produções afrocentradas ao alcance de muitos de nós, ou seja, o conhecimento está aí, circulante, embora as dificuldades perdurem principalmente no que tange nossas relações afetivas.
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FOTO 3X4: Rudson Martins – Produtor de Elenco
Devo confessar que passo o dia olhando e escutando mulheres negras incríveis, com toda a amorosidade do mundo, entretanto, com um extremo pesar, com aquela tristeza vivida no coletivo. Então, eu ativo a Dororidade de Vilma Piedade para dar conta das injustiças materiais e simbólicas direcionadas a nós. Não posso negar que meu lugar de técnica e profissional da saúde requer o máximo de neutralidade, contudo, enquanto negra e mulher, também sou atravessada por este sócio-histórico-cultural. E tá ok, do contrário, não teria mínimas condições para garantir um atendimento de qualidade ao meu público.
Este artigo tem o intuito de insistir na urgente necessidade de homens negros descolonizar seus afetos, assumir responsabilidade afetiva e repensar em sua contribuição ativa no sofrimento psíquico e emocional de mulheres negras. Reconheço que falo de um lugar pontual, mas, será que é NORMAL ouvir diariamente histórias de mulheres negras que são constantemente escondidas, invisibilizadas, reduzidas a lanche da madrugada e tratadas como um objeto qualquer? Quem está mentindo? A conta não fecha. Não se trata de uma história somente, são relatos sistemáticos e recorrentes, alguns até assumem a esfera pública expondo a inconssistência de homens negros ao transformar seus discursos em práticas responsáveis.
Decerto que a descolonização dos afetos é uma tarefa coletiva, mas devemos levar em consideração a existência de uma dificuldade maior por parte dos homens negros diante desta tarefa. As mulheres avançaram mais, é visível. Seja pelo machismo, seja pela herança patriarcal, os homens negros parecem ser mais acometidos quando o assunto é aprofundar relações com mulheres negras e entregar valores adequados à elas.
Uma vez, há muito tempo atrás, eu ouvi de um afrocolombiano radicado no Brasil a seguinte fala: “mulheres negras não aceitam um fato concreto, que elas preferem homens negros e ficam com brancos por falta de opção. Já os homens negros gostam de mulheres brancas e negras, e na verdade, nós preferimos as mulheres brancas porque são menos problemáticas, são mais funcionais e por isto vocês têm inveja das mulheres brancas”. Foi uma fala dolorosa de ouvir mas pareceu o desvendar verdadeiro sobre o que a maioria dos homens negros pensam sobre nós e ocultam. Pela primeira vez na vida, estava diante de um homem negro honesto, e de alguma forma agradeci, foi pedagógico.
A construção da subjetividade negra é um percurso extremamente difuso e repleto de disfuncionalidades, visto que na medida em que o sujeito negro é moldado, ele introjeta a lógica de seu opressor assumindo valores dissonantes com sua realidade enquanto sujeito e negro. O resultado é uma realidade psíquica em que o inconsciente é degradado pela devastação que o racismo causa. Uma vez ouvi de uma psicanalista negra ao qual tenho como referência, que apesar de nossos esforços, nosso inconsciente é bem branco, pois é isso que o Ocidente produz.
Essa fala parece estar alinhada com Frantz Franon quando ele diz que “por mais dolorosa que possa ser para nós essa constatação, somos obrigados a fazê-la: para o negro há apenas um caminho. E ele é branco”. Todos esses fatores afetam algo que é fundamental para a sobrevivência de todo sujeito, o desejo. O sujeito da psicanálise é aquele que deseja, isso que faz a vida acontecer, o sujeito transitar, se mover. O que acontece no processo da construção do sujeito que tem seu desejo deslocado? Afinal, o que o homem negro deseja realmente?
A autora Oyèrónké Oyêwumi em seu livro “A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero“, destaca esse deslocamento do desejo do homem negro como um dos resultados da colonização das mentes e dos corpos negros. A autora diz: “O olhar que os nativos direcionam para a cidade dos colonos é um olhar de luxúria, um olhar de inveja, expressa o sonho de posse dele: sentar à mesa do colono, dormir na cama do colono, com a esposa dele, se possível”. O tempo passou e o que mudou? Muito pouco.
A introjeção desse ideal de feminino branco faz com que homens negros mesmo em relações com mulheres negras reproduzam em alguma medida a desumanização, a objetificação e a negação do status de feminilidade à nós negras. É um valor social constantemente subtraído, como se fosse um lugar incomum a ser ocupado, e a mensagem subliminar é: meu desejo não está em você, tu não vale o investimento afetivo. E aqui é crucial diferenciar desejo e objetificação. O resultado é homens negros interagindo com mulheres negras de forma superficial, utilitária, desrespeitosa e animalizante, desconsiderando a dor e adoecimento que causa às mulheres negras.
Novamente nos deparamos com uma realidade dura, ser jogada naquele lugar comum por aqueles que esperamos o mínimo de humanidade. A autora Grada Kilomba em seu livro “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano“, diz que mulheres negras são pessoas desaparecidas: “Quem tem pouco ou nenhum poder é assim categorizada não apenas porque não tem nada,mas porque não é nada”. Sendo assim, não é de surpreender que mulheres negras lindas, inteligentes, potentes, bem sucedidas, carinhosas e disponíveis para viver uma relação saudável, encontram-se solteiras e batendo cabeça por aí. Todas essas qualidades muitas vezes são motivos de retaliação, de castigo. Parece uma mensagem, como ousa ser mulher e plena? Sem perceber, ou até intencionalmente, o homem negro tende a repetir lógicas opressoras machistas e permeadas pelo pensamento colonial.
E o que deseja a mulher negra? Pode a subalterna desejar? O autor Renato Noguera em sua obra “Por que amamos”, ao ressaltar a Filosofia Dagara no livro “O Espírito da Intimidade” da autora Sobonfu Somé, destaca a intimidade como um caminho fundamental para a saúde dos relacionamentos e da vivência do amor. A intimidade requer reciprocidade, respeito pelo outro e principalmente abertura para uma entrega afetiva. A superficialidade e as múltiplas violências que os homens negros impõem às mulheres negras, seja por atitudes questionáveis, seja por subtração de possibilidades, está totalmente contrário com a proposta de experiências propositivas tanto do individual quanto no coletivo. Quando uma de nós denuncia a negligência e a incongruência de um homem negro, revivemos coletivamente todo um histórico de dor e invisibilidde. É triste. Será que é possível um dia a mulher negra estar no desejo do homem negro? De verdade?
Faço votos que sim.
Shenia Karlsson é Psicóloga Clínica, Especialista em Diversidade, Escritora, Colunista, Consultora de Diversidade e Inclusão e Diretora no Instituto da Mulher Negra de Portugal.
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