Por uma representatividade radicalizada e não individualista

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Por uma representatividade radicalizada e não individualista
Foto: Reprodução

Texto: Ricardo Correia

A crítica construtiva e a autocrítica são extremamente importantes para qualquer organização revolucionária. Sem elas, as pessoas tendem a se afogar em seus erros, e não a aprender com eles.

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          −Assata Shakur

Você não se cansa de ver sempre as mesmas pessoas negras ocupando diferentes espaços, enquanto inúmeras outras amargam a invisibilidade na luta contra o racismo? Quantas pessoas negras nós conhecemos com trabalhos incríveis nas comunidades, e redes sociais, que não conseguem a devida projeção? E nem adianta vir para o meu lado com a conversa de que há inveja, ou coisas nesse sentido, em relação ao primeiro grupo. A emoção ao sobrepor a reflexão crítica, impossibilita de enxergarmos lacunas que precisam ser resolvidas na luta antirracista.

A questão começa a ficar mais complicada quando há uma propaganda massiva sugerindo que os poucos negros são exemplo de representatividade. Esse é um tipo de discurso a serviço do racismo − insuficiente e ilusório. Insuficiente, porque numericamente são poucos que ocupam esses espaços; e ilusório, por criar a impressão de que a realidade racista está mudando, no entanto, substancialmente, continuamos a passos milimétricos. A luta do povo negro precisa ser coletiva e com mudanças estruturais. Inexiste prosperidade  se apenas uma fração pequena alcança a mobilidade social. Nós, descendentes de escravizados, continuamos pobres e miseráveis, encarcerados e assassinados. No mercado de trabalho somos os que mais ocupam o “chão de fábrica” das empresas, pois o sistema abre a porta das gerências e diretorias somente para servirmos cafezinho. Tenha a certeza que se eu fosse escrever todos os lugares marginais que nos enclausuraram, dificultando a saída do sofrimento, não haveria espaço suficiente. Por isso refaço a pergunta: do que está valendo a tal representatividade?

Mas vou ousar um pouco mais. Para que eu me sinta representado − e aqui considero os anseios de muitos outros irmãos e irmãs, que elaboram críticas nesse aspecto − não basta ser negro, é preciso compromisso político contra o racismo desde a manifestação individual e sistêmica (política, econômica e social). Carecemos de negros que utilizem a visibilidade para propor mudanças de caráter concreto, denunciar a situação do nosso povo, construir pontes para o acesso de mais pessoas negras, promover mobilizações permanentes contra o racismo, e não se ajoelharem às migalhas ofertadas pelo sistema. Não importa o que estejam produzindo profissionalmente na carreira, sempre há maneiras de estimular discussões sobre a sobrevivência do povo negro. Não queremos figurantes só para dizer “veja, agora têm negros lá também”.  É claro que ninguém conseguirá representar fielmente todas as pessoas negras, afinal, somos plurais nos pensamentos, e demandas, bem como disse a escritora Ana Maria Gonçalves “somos um grupo extremamente heterogêneo, com vontades diferentes, com necessidades diferentes, com visões ideológicas completamente diferentes”. Contudo, o racismo é a opressão que atinge a todos nós, o compromisso com essa pauta deve ser inegociável e inadiável.

Os negros que aparecem na televisão, que recebem convites para palestras e entrevistas, que estampam capas de revistas etc., comumente, carregam um discurso focado na emancipação individual. Eu acredito que isso acontece porque não estão no lócus econômico desprivilegiado que abrange a maioria da população negra, consequentemente, os interesses são bem diferentes do que necessitamos para uma transformação coletiva. Além disso, muitos se acomodaram ao “estrelato” e têm medo de perder as poucas coisas conquistadas. E, nos casos em que o sistema dá espaço para os negros da periferia, a escolha é por aqueles que sirvam a ideologia dominante, principalmente se tiverem uma história de superação “teve uma infância pobre, sofreu racismo, mas venceu”. Ou seja, nada mais do que o reforço da ideia de meritocracia.

E digo mais, o palanque está disponível apenas aos que não enfrentam o sistema radicalmente, ou pelo menos não têm potencial de causar danos quando abrem a boca. Quem você acha que no Brasil seria chamado para dar mais entrevistas, Malcolm X ou Martin Luther King Jr.? Nelson Mandela ou Steve Biko? Não quero hierarquizar o método de luta de cada um destes importantes nomes da história negra, pois isso cabe uma densa discussão, somente registro que há um filtro que ainda não demos a devida atenção. O meu debate é sobre qual a fala permitida nos espaços de maior visibilidade: a que mobiliza o povo negro ou apenas “acaricia” o status quo. E não retiro a nossa responsabilidade na não valorização dos negros que estão na “base”, nós também entramos na emoção de “meia dúzia de negros” e nos esquecemos de fortalecer o trabalho de outros que poderiam causar impacto concreto. Afinal, como estamos fortalecendo o trabalho daqueles negros com trabalhos incríveis? Essa é a reflexão necessária. Agruparmos é uma necessidade inconteste, e lutemos para que, especificamente, esta reflexão do Milton Santos (1996/1997) não continue tendo validade  “eu estou muito mal satisfeito com maior parte dos discursos dos movimentos negros porque são repetitivos esses discursos, são pobres e não são mobilizadores realmente.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GONÇALVES, A. M. MASP Palestras: uma conversa sobre representação e representatividade. São Paulo: MASP, 12 dez. 2018. 1 vídeo (2h e 16min.). Publicado por MASP Museu de Arte de São Paulo. Disponível em:< https://youtu.be/G_FTjjr9LkE>.  Acesso em: 30 jan. 2023.

SANTOS, Milton. Cidadanias mutiladas. In: LERNER, Julio (Ed.). O preconceito. São Paulo: IMESP, 1996/1997, p. 133-144.

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