Texto: Shenia Karlsson
Essa semana viralizou um vídeo do ensaio da escola de samba Acadêmicos da Grande Rio em que a rainha de bateria, a atriz Paolla Oliveira aparece em uma de suas presenças usuais no período que antecede o carnaval. Sempre aclamada por sua beleza e carisma, desta vez Paolla foi alvo de críticas por parte do público, teve seu corpo questionado e recebeu várias sugestões de que deveria emagrecer além de ter sua idade enfatizada. Após a polêmica, a atriz usou as redes sociais através de vídeos para discutir o quão doloroso é para muitas mulheres enfrentar a ditadura da beleza e o padrão perfeito numa sociedade machista.
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Num vídeo repostado pela Universa UOL, gravado em fevereiro deste ano numa série chamada Sem Filtro, Paolla coincidentemente fala sobre as críticas que já recebeu sobre seu corpo, de como as mulheres sustentam a estrutura patriarcal e opressora ao criticar outras mulheres e sobre a identificação que o tema gera quando é colocado em pauta. Daí, eu, negra, mulher e brasileira, após sentir muito desconforto ao assistir o vídeo com frases prontas e com a costumaz superficialidade branca, deixei o seguinte comentário: “Pois é, imagine para nós mulheres negras que fomos colocadas em lugares muito piores com o aval de todas vocês, né?! Sorte sua não ser animalizada”.
Ahhh meus amigues, choveu de comentários de mulheres, a maioria brancas, questionando meu posicionamento. Como psicóloga que sou, a linguagem é um campo que muito me interessa, visto que as respostas revelam como é inviável excluir raça de qualquer discussão. Mas por que mulheres brancas insistem em negar o fator raça quando o tema é a opressão feminina? Qual o real interesse dessas mulheres criticarem o patriarcado, fonte ao qual beberam por décadas por pura conveniência?
Este artigo é sobre um pseudo feminismo fomentado por mulheres brancas que têm se beneficiado dos privilégios materiais e simbólicos que o patriarcado as entregou e que enriqueceram às custas da opressão de outras mulheres. Essas “guerreiras” não só enquadraram-se por muito tempo no modelo de estética perfeita como enriqueceram afirmando toda essa lógica. Os comentários são muito interessantes, eles revelam como mulheres brancas têm uma extrema dificuldade em se rever e se reconhecer como parte do problema, isentando-se de responsabilidades. As falas partem de um inconsciente coletivo branco em que é perceptível a inabilidade de se implementar discussões sérias e profundas. Vamos analisar alguns?
O primeiro comentário me chamou a atenção pois se propõe a ser politicamente correto e professoral, só que não:
“Toda luta é válida. Porém uma coisa não diminui a outra. Sua dor é legítima e precisa sim ter espaço, mas aí então a dela não existe? Ela é uma peça de porcelana indolor? Não acho que seja a melhor forma de lutar”.
Então vamos lá, em que momento se tornou uma luta uma mulher branca sambar seminua em frente de uma bateria de escola de samba? Se fosse uma mulher negra teria um significado importante, visto que foram mulheres negras que realmente lutaram para a preservação do samba neste país, mas esse não é o caso.
Classificar de luta um vídeo de uma mulher branca que dedicou boa parte de sua carreira em se estabelecer enquanto modelo de beleza perfeita e ganhou muito dinheiro com isso é no mínimo uma ofensa para as mulheres que lutam por políticas públicas neste país. Aliás, falando em dor, quão doloroso é ser Paolla Oliveira no Brasil? Em termos sócio-político-histórico só pode ser uma piada.
Robin Diangelo em sua obra White Fragility discorre o porque mulheres brancas tornam-se tão defensivas quando a raça é colocada na mesa de discussão, a autora enfatiza alguns pontos tais como o protagonismo imposto através do choro e/ou lamentação, culpa por saber exatamente do que se trata e apenas não admitir e, seu profundo investimento no sistema que lhe traz benefícios (tradução livre).
Outro comentário bem típico de mulheres brancas ou negras descoladas de sua realidade:
“O que uma coisa tem a ver com a outra? Aqui está sendo comentado sobre padrão de beleza e não cor”.
Tudo a ver. Qualquer discussão séria sobre padrão de beleza só é válida se levarmos em consideração que no Brasil somente um grupo social feminino tornou-se representante deste tal padrão de beleza. No livro Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre discorre sobre como o feminino e a feminilidade foram construídos através de narrativas que objetificam e animalizam mulheres indígenas e negras em detrimento da construção do modelo de mulher perfeita na figura da mulher branca e que se mantém até hoje. Aliás, por este mesmo motivo mulheres negras foram arrancadas da frente das baterias de escolas de samba dando lugar a mulheres brancas, e estas últimas nunca pensaram sobre isso de forma responsável. Ainda cobram sororidade como se pudessem cobrar alguma coisa.
Nesta última semana, tivemos a ex-apresentadora Xuxa em companhia de outras ex-apresentadoras discutindo padrão de beleza e etarismo no programa do Fantástico, na TV Globo. Durante o programa, a eterna rainha dos baixinhos fez questão de enfatizar o quão sente-se orgulhosa de suas rugas e mostrou-se contra a ditadura dos procedimentos estéticos. Este é mais um exemplo de mulheres brancas que construíram verdadeiros impérios com o mercado da beleza padrão sem a menor preocupação sobre o efeito que causavam em outras mulheres. Entretanto, quando este mesmo mercado as exclui ou as critica, tornam-se convenientemente lutadoras da causa feminina e contra a opressão que elas mesmas sustentaram.
Quem são os donos das clínicas de estética? Quem dominou o mercado da beleza por décadas? E o mercado da moda? Quem é o público que consome e transita nesses espaços? Para nós negres,tudo isso é novo.
Falar de opressão do topo de seu privilégio é típico da branquitude. Imagina uma mulher criticar padrão de beleza no auge do narcisismo branco, mulher esta que produziu cópias humanas de si mesma? É cada coisa viu. A autora Diangelo em sua obra ainda reitera como a indignação, a dor e a emoção são políticas e seletivas, sendo enquadradas por crenças e preconceitos. O efeito de certos posicionamentos em estruturas racistas tendem a hipervalorizar certos corpos ao passo que invisibilizam ou até ridicularizam outros corpos, e entre as mulheres a lógica segue a mesma. Vale ressaltar que não são as mulheres brancas as mais atacadas no mundo virtual e sim as mulheres negras, e sabemos o motivo.
Os comentários abaixo são ótimos exemplos disso:
“lá vem, aff”, “se poupe”, “a pauta é outra”, “é sobre racismo? E o porquê da comparação?”, “ih, começou, às mulheres negras”, “sempre tem uma militante que não descansa”, “e ela tem qual culpa disso?afe”, “vai procurar o que fazer”, “uma dor não invalida a outra, melhore, evolua”.
Outro aspecto sobre racializar qualquer discussão sobre questões do feminino é lidar com a fragilidade branca, o que é muito cansativo. A autora Robin Diangelo explica a inabilidade de pessoas brancas em sustentar discussões sem se individualizar direcionando a conversa sempre para o âmbito pessoal, forma esta de manipular a situação. A projeção é um mecanismo de defesa muito presente no comportamento das mulheres brancas e o comentário abaixo define bem isso:
“Bora atacar as brancas! Se você se sente melhor e superior, ataca mesmo, linda. É assim que você vai melhorar as coisas!”
É geralmente assim que mulheres negras são entendidas quando abordam questões raciais dentro do pseudo feminismo, pois feminismo responsável está distante do campo de entendimento da maioria. Diangelo ressalta regras que a branquitude nos impõe ao abordar assuntos sensíveis e a forma de falar é uma das regras. Pelos comentários dá para perceber o nível de crueldade e violência das mulheres brancas quando sentem-se questionadas em sua branquitude e não poupam palavras, contudo, esse protocolo da comunicação não violenta aplica-se para os corpos não brancos, apenas.
É de uma tamanha desfaçatez uma mulher branca acusar uma mulher negra de ter algum poder de ataque. Conhecimentos básicos sobre a sociedade em que vivem e a responsabilidade de obter tais conhecimentos, revelam que mulheres negras não são capazes de oprimir nenhuma mulher branca e em nenhum aspecto. Mulheres negras não possuem poder político, econômico e nem poder de narrativa que possa atacar a existência de uma mulher branca em qualquer nível que seja. É preciso fazer o dever de casa!
Este artigo e as falas reais incorporadas neste texto revelam mais do mesmo. Novidade? Nenhuma. Falta muito repertório para que possamos avançar sem hipocrisia. Audre Lorde assertiva como sempre nos alertou sobre o convite que o feminismo branco nos faz a todo momento e a sororidade cobrada mas nunca ofertada. De qualquer forma, essa luta, se é que pode ser chamada disso, não representa mulheres negras em nenhum aspecto. Nosso rolê é outro!
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