Por Neomisia Silvestre*
Na semana passada uma amiga compartilhou empolgada no grupo do WhatsApp que, sozinha, havia terminado o processo de dredar os próprios fios crespos a partir de uma técnica ensinada por uma blogueira no YouTube. Muito rapidamente, dread é a forma abreviada e em inglês de dreadlocks e lock-dread para caracterizar cabelos em tranças naturais, emaranhados e popularizados pelo movimento judaico-cristão surgido na Jamaica, na década de 1930, entre negros descendentes de africanos escravizados.
Aqui, não falaremos sobre as motivações religiosas e/ou estéticas que envolvem a dedicação, a paciência e o autocuidado dessa amiga mas, sim, de instigar reflexões acerca de como, em pleno século XXI, paradoxalmente, sua própria aparência pode provocar um impacto negativo na vida social e profissional.
No Estado do Alabama, nos Estados Unidos, em 15 de setembro de 2016, uma lei foi aprovada com o propósito de recusar a contratação de pessoas pelo uso de dreadlocks. Uma lei que viola não só os Direitos Civis de 1964 – que punham fim aos diversos sistemas estaduais de segregação racial -, mas que também se baseia em estereótipos inerentemente discriminatórios e que trata, de antemão, afro-americanos como sendo impróprios e profissionais menos capacitados e eficientes a partir de um penteado fisiológica e culturalmente associado a esta parcela significativa da população americana.
Tal fato motivou a criação do World Afro Day (Dia Mundial do Afro), em Londres, idealizado pela produtora de TV Michelle De Leon a fim de criar uma plataforma para celebrar e educar sobre cabelos afro por meio de uma consciência positiva, expressa em eventos anuais e por uma rede educacional mundial com foco na juventude e na infância.
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Diante da aprovação da lei, Michelle relata que queria justamente ressignificar a data e, por isso, escolheu o 15 de setembro de 2017 como marco inicial do World Afro Day, sendo ele um dia de celebração dos cabelos, da cultura e da identidade negra. “Eu sabia que isso [a existência da lei] poderia ser símbolo das atitudes negativas da sociedade em relação aos nossos cabelos e, por isso, a necessidade de mudança”, diz ela.
Em seu primeiro ano, a iniciativa foi endossada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos, recebeu cobertura internacional e apoio de celebridades, como a Miss USA 2016 Deshauna Barber, o rapper Jidenna e parte do elenco da série Black-ish, criada pelo produtor Kenya Barris. “Tivemos uma resposta global incrível, mas a cada ano há um desafio para continuar recebendo cobertura. O problema não desapareceu, por isso precisamos manter o foco no nosso trabalho para fazer coisas novas a cada ano. Entendo a mídia e posso usar de minhas habilidades para contribuir, mas é preciso continuar porque sabemos o quanto é importante para a próxima geração”.
Em 2018, o World Afro Day realizou a campanha “Mude os fatos, não o afro”, em que apresentou uma série de cartazes com mulheres negras e estatísticas como: “1 em cada 5 mulheres negras se sente pressionada a alisar os cabelos no âmbito profissional”; e “Apenas 27% se sente confortável em usar dreads para um evento profissional”. A iniciativa alcançou cerca de 6,6 milhões de pessoas e inúmeras menções positivas nas mídias sociais.
A educação é um dos pilares fundamentais do projeto, que desenvolveu um plano de aula para conscientizar alunos e professores e o qual, segundo Michelle, pode ser aplicado em qualquer escola. No ano passado, a ação The Big Hair Assembly recebeu quase 12 mil alunos inscritos em 100 escolas de oito países. Uma de suas embaixadoras é a modelo mirim americana Celai West. Para 2020, diante do contexto da pandemia, o WAD prevê a realização de um evento online que dialogue com iniciativas da Europa, da África e do Brasil, que possivelmente terá a participação da Marcha do Orgulho Crespo e do Encrespa Geral UK.
No que diz respeito às reivindicações dos cabelos naturais como parte da identidade e da beleza negra, Michelle acredita que há um significativo progresso em todo o mundo. E é importante lembrar que o mesmo país que aprova a lei proibindo o uso de dread no local de trabalho, tem em contrapartida Estados como Califórnia, Nova York e Nova Jersey que aprovaram no ano passado a lei Crown – Create a Respectful and Open Workplace for Natural Hair (“Crie um lugar de trabalho respeitoso e aberto ao cabelo natural”), redigida pela senadora Holly Mitchell, que proíbe, também nas instituições de ensino, a discriminação com base no estilo e na textura do cabelo. Colorado e Virgínia fizeram o mesmo em março e outros 20 Estados apresentaram, em seus respectivos Legislativos, projetos de lei para punir a discriminação contra o cabelo afro.
Brasil é crespo
Para a pedagoga mineira Nilma Lino Gomes, importante referência na luta contra o racismo no Brasil nos campos da educação e da antropologia, nos últimos anos o debate, as práticas e a visibilidade sobre o cabelo crespo passaram a ocupar outro lugar na cena política e estética brasileira. “Quanto mais se acirra o racismo, mais vemos pessoas negras assumirem a diversidade das formas de usar e lidar com a textura crespa dos seus cabelos como uma nova forma recriada de estética: a estética da resistência negra do século XXI. Isso tem possibilitado a muitas mulheres (e homens) se identificarem como negras e com as lutas negras no Brasil e no mundo, reconectando-se consigo mesmas, sua corporeidade e sua ancestralidade”.
Nesse contexto, a Marcha do Orgulho Crespo, movimento nacional criado em São Paulo, em julho de 2015, pelo Blog das Cabeludas e pela Hot Pente, se soma ao debate fomentado e trazido pelo movimento negro brasileiro no final dos anos 1970 ao incentivar a livre expressão do cabelo natural, a representatividade, a autoestima e o empoderamento de negras e negros na sociedade, especialmente por parte de mulheres.
No Brasil, diante de diversas manifestações de racismo no âmbito social, institucional e virtual – e a fim de instigar a visibilização de pautas acerca da estética negra a partir dos cabelos crespos/cacheados -, a Marcha do Orgulho Crespo passou a celebrar o 26 de julho como o Dia do Orgulho Crespo no Estado de São Paulo por meio da Lei 16.682/2018, em parceria com a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB). A iniciativa também inspirou o Mato Grosso do Sul, que considera o 7 de novembro como o #DiaDoOrgulhoCrespo pela lei 5.206/2018, sancionada pelo deputado Amarildo Cruz (PT). A data escolhida homenageia Karina Saifer de Oliveira, do município de Nova Andradina, que se suicidou aos 15 anos em decorrência de bullying motivado pelo uso dos cabelos alisados.
“O Brasil é um país que se alimenta do racismo presente na sua estrutura. Desde os tempos da escravidão, o cabelo da negra e do negro é tomado como um símbolo identitário com sentidos que tensionam entre si. De um lado, foi (e ainda é) visto como fealdade e animalidade. Do outro, esse mesmo cabelo foi (e ainda é) visto como afirmação e recriação de elementos culturais africanos no Brasil – característica de resistência construída pelas africanas e africanos escravizados e seus descendentes”, diz Nilma, atualmente professora titular emérita da Faculdade de Educação da UFMG.
Ela é autora de “Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, publicação de 2006 e relançada em 2019 pela editora Autêntica como resultado de sua tese de doutorado. No livro, a pesquisadora percorre salões étnicos de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e registra depoimentos de cabeleireiros e cabeleireiras acerca das percepções sobre o cabelo como expressão e símbolo de resistência cultural, com base nos penteados de origem étnica africana, recriados e re-interpretados como formas de expressão estética e identitária. A análise se debruça e desperta reflexões sobre autoestima, memórias da infância e como a aceitação/rejeição atua no psicológico das mulheres negras.
“Ressignificar o lugar, a visão e as interpretações negativas que recaem sobre o cabelo crespo, transformando-as em leituras e narrativas afirmativas, identitárias e de luta é retomar a humanidade roubada das pessoas negras, no contexto do racismo ambíguo brasileiro. Nesse sentido, o Dia do Orgulho Crespo é mais do que uma data. Ele é símbolo de reconhecimento e de luta”, completa ela.
Desde sua criação, a Marcha do Orgulho Crespo Brasil é realizada de forma independente, com mobilização online e redes de apoio em nove Estados que envolvem ativistas, pesquisadores, artistas, oficineiras, blogueiras, influenciadoras, afroempreendedoras e público interessado, com o intuito de inspirar mulheres, homens, jovens e crianças de todas as idades a repensarem e a se reconectarem com suas identidades a partir dos cabelos crespos/cacheados que, para além do estético, pode se tornar também uma ferramenta de posicionamento diante do racismo estrutural.
E, aqui, reforço: passar pelo processo de transição capilar – procedimento em que se deixa o cabelo natural crescer até que atinja um comprimento ideal para o chamado big chop e retirar as partes ainda alisadas – pode, sim, ser ferramenta de posicionamento diante do racismo estrutural, já que o que aparentemente é considerado apenas uma mudança de visual, no fim das contas, revela-se uma mudança de postura. O racismo nos paralisa de muitas formas e ele também perpassa esse aprisionamento estético-capilar: do black power coloridão ao jovem negro e periférico.
No Orgulho Crespo, ao inspirar esta passagem, tentamos justamente criar um espaço de fortalecimento e coragem para se existir como desejar. Existir como corpo negro, como corpo social, como carta ancestral em qualquer lugar do mundo; é existir na exigência e na demanda cotidiana de coragens. Por isso, enquanto movimento, tentamos ajudar a entender que uma coisa é optar por alisar seu cabelo e outra é entender quais os motivos reais e alienados de se submeter a um processo de mutilação física absolutamente nocivo.
Diante de uma sociedade que está o tempo todo nos impondo padrões, diante de um contexto de pandemia que nos impede de ir às ruas, ao encontro, deixo meu desejo de que este Dia do Orgulho Crespo seja o seu domingo de repouso e skincare, sim, mas que ele também seja banhado de pensamentos que proporcionem um encontro positivo e afetivo com sua autoestima. Celebrar é preciso.
Aqui, partilho e indico algumas das iniciativas que pautam o cabelo crespo no Brasil e mundo afora.
Livros
“Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, de Nilma Lino Gomes
Autêntica, 2006
Sinopse: Na obra, o cabelo é analisado não apenas como parte integrante do corpo individual e biológico, mas, sobretudo, como corpo social e linguagem, como veículo de expressão e símbolo de resistência cultural.
“História da beleza negra no Brasil”, de Amanda Braga
EdUFSCar, 2015
Sinopse: O livro rastreia a emergência de pistas que refletem um conceito estético atribuído ao corpo negro, bem como o modo como tais pistas vão assumindo novas verdades na dispersão do tempo histórico. Trata-se, portanto, do desejo de revelar mais sobre a forma como historicamente se leu os signos da beleza negra, fazendo vir à tona um enredo que envolve memórias, exclusões e retomadas.
“Esse cabelo: A tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras”, de Djaimilia Pereira de Almeida
Leya, 2017
Sinopse: Neste romance, a escritora portuguesa nascida em Angola mistura memória, imaginação e crítica social com humor e leveza para discutir temas atuais e fundamentais na atualidade, como racismo, feminismo, identidade e pertencimento.
“Meu crespo é de rainha”, de Bell Hooks
Boitatá, 2018
Sinopse: Publicado originalmente em 1999 em forma de poema rimado e ilustrado, a obra da escritora, teórica feminista, artista e ativista social estadunidense Bell Hooks enaltece a beleza dos fenótipos negros, exalta penteados e texturas afro.
Audiovisual
“Good Hair”, 2009
Documentário criado e apresentado pelo ator e comediante Chris Rock sobre a cultura do cabelo afro-americano e seu faturamento na indústria de cosméticos.
Trailer: www.youtube.com/watch?v=1m-4qxz08So
“Kbela”, 2015
Olhar da carioca Yasmin Thayná acerca das histórias de transição capilar, resistência e luta de mulheres pelo direito de terem sua beleza natural, sem intervenção da indústria e da opinião da sociedade.
Disponível em kbela.org
“Das Raízes às Pontas” (2015)
Dirigido por Flora Egéria e com roteiro de Débora Morais, o curta-metragem retrata Luiza, de 12 anos, que compartilha seu amor e orgulho pelo cabelo crespo.
Disponível no Vimeo
“Fios da Resistência” (2018)
O documentário produzido por alunos de Midialogia da Unicamp (SP) aborda a formação de novas redes de apoio da negritude na internet; como grupos do Facebook, canais do YouTube e influenciadores se tornaram uma ferramenta fundamental no processo de ressignificação identitária e estética de pessoas negras.
Disponível no YouTube
“Felicidade por um fio” (2018)
Baseada no livro “Nappily Ever After”, de Trisha Thomas, o filme mostra o percurso de uma bem-sucedida executiva que muda sua concepção de mundo ao decidir raspar os cabelos.
Disponível na Netflix
“Enraizadas” (2019)
Dirigido por Juliana Nascimento e Gabriele Roza, o filme investiga a tecedura dos fios capilares em tranças nagôs como um processo não restrito à beleza estética, mas também de renovação dos afetos, de resistência e reafirmação da identidade negra.
Ainda não disponível.
“Hair Love”, 2019
Produzido e dirigido por Matthew A. Cherry., o curta-metragem estadunidense recebeu o Oscar 2020 de melhor animação ao apresentar a relação de um pai que penteia o cabelo de sua filha pela primeira vez.
Disponível no YouTube
“Self Made: A vida e a história de Madam C.J. Walker (2020)
Interpretada por Octavia Spencer, a série de quatro episódios retrata a história da ativista social e primeira mulher a se tornar milionária nos Estados Unidos a partir de sua linha de produtos capilares e cosméticos para mulheres negras.
Disponível na Netflix
Festivais
Natural Hair Academy – Paris
Desde 2011, no primeiro final de semana de junho, o festival celebra o cabelo natural e se consolida como o maior evento europeu dedicado à beleza negra.
Vem ver: https://www.facebook.com/watch/?v=1194732853980161
https://nhaparis.com
CurlFest – Brooklyn, Nova York
Realizado pelo Curly Girl Collective, fundado em 2011, com o intuito de fazer com que mulheres de cabelos com textura natural se sintam bonitas e celebradas. São pioneiras no movimento natural dos cabelos ao conectarem mulheres em eventos que estimulam e atraem os principais influenciadores da beleza afro-americana.
Vem ver:
https://www.curlfest.com
CurlyTreats Fest – Londres
Realizado desde 2017, o maior evento natural de cabelos crespos e cacheados da Inglaterra é realizado a fim de capacitar, educar e enaltecer a beleza negra.
www.curlytreats.co.uk
Encrespa Geral – Brasil
Instituto de promoção humana de desenvolvimento social e cultural voltado à diversidade racial e cultural brasileira criado por Eliane Serafim, em 2013, prima pelo empoderamento feminino por meio da valorização e da difusão do orgulho do cabelo cacheado e crespo. Realiza eventos anuais de alcance nacional e internacional.
encrespageral.com.br
Para acompanhar:
Estados Unidos – Criada pelos afro-americanos Lindsey Day e Nkrumah Farrar, a revista Crown Mag promove um diálogo progressivo em torno do cabelo natural e das mulheres que o utilizam a partir da perspectiva de um novo padrão de beleza ao documentar de maneira impressa e tangível. Sua última edição traz a atriz, escritora, cineasta e produtora norte-americana Issa Rae, da série “Insecure”.
www.crwnmag.com
África – A artista africana @laetitiaky, da Costa do Marfim, usa a versatilidade de seu cabelo crespo para, literalmente, criar esculturas capilares e passar uma mensagem aos seus seguidores no Instagram.
França – O coletivo de mulheres SciencesCurls, presidido pela jovem Réjane Pacquit, discute o cabelo crespo e cacheado no âmbito acadêmico, dentro do Instituto de Estudos Políticos de Paris – IEP, a Sciences Po Paris, instituição pública de ensino superior especializada nas áreas de Ciências Humanas e Sociais. Adendo para refletir: na França, é comum ver salões que oferecem lissage brésilien (alisamento brasileiro).
www.facebook.com/sciencescurls
Inglaterra – O Curlture é uma plataforma online criada em 2014 pelas londrinas Trina Charles e Jay-Ann Lopez com o objetivo de capacitar mulheres negras. Inicialmente se concentrava em cuidados com os cabelos naturais, mas atualmente abrange tópicos como moda, viagens, produtos para a pele, decoração e afroempreendedorismo.
www.curlture.co.uk
Espanha – Criado pela modelo Awanda Perez, em Madrid, o Go Natural Spain promove o direito e o orgulho dos cabelos naturais a partir de dicas e inspirações para o uso do cabelo afro. Este movimento e também os dias da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, criado em julho de 1992, e o 25 de julho, Dia Nacional de Tereza de Bengela, líder quilombola que viveu no Mato Grosso durante o século XVIII, inspiraram a realização da 1ª Marcha do Orgulho Crespo Brasil.
www.awandaperez.com
* Neomisia Silvestre é jornalista, escritora e agitadora cultural. Soma atuações em projetos artísticos e socioculturais de juventude e periferia, teatro e dança, TV e produçāo de eventos. É uma das idealizadoras da Hot Pente e uma das criadoras do movimento nacional Marcha do Orgulho Crespo Brasil, desde 2015
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