O acesso ao mercado de vinhos ainda parece algo distante da realidade popular. O consumo elitista que parece rondar esse universo pode afastar pessoas negras, impossibilitando que estas estejam não só servindo a bebida, mas se especializando e sendo referência no assunto.
Nascido na favela de Maguinhos, subúrbio do Rio de Janeiro, Renato Neves, foi eleito o Melhor Sommelier do Brasil. O título que ele carrega se tornou algo ainda mais representativo porque Neves é um homem negro de origem pobre que ganhou destaque em sua área de atuação até ser eleito o melhor, sendo o representante brasileiro no mundial que acontece no ano de 2023, em Paris.
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A história de Renato ao mesmo tempo que inspira também nos faz refletir sobre a importância de acesso a oportunidades que nos permitam escolher o que fazer da vida. Ainda na pré-adolescência vendia frutas no farol e bebidas em um isopor para os banhistas na praia de Copacabana. Para conseguir ingressar na Escola de Hotelaria da FAETEC, aos 17 anos, ele teve que dormir no ponto de ônibus que ficava em frente ao prédio da instituição, assim não correria o risco de perder o horário de início da distribuição de fichas, que começava às 7h. “Alguns anos se passaram e eu continuei por aí encarando filas em portas de escolas, dormindo em bancos de rodoviárias e tentando a qualquer custo concluir a formação que havia almejado”, contou ele, que afirma que a gastronomia transformou sua vida. “A gastronomia mudou a minha vida. O vinho mudou a minha vida”, disse.
Em entrevista para o Mundo Negro, Renato Neves, que é diretor de operações do restaurante carioca Casa Camolese, conhecido como um dos melhores do Rio de Janeiro, falou sobre a importância do universo da gastronomia e do vinho em sua vida.
O mercado de vinhos ainda é muito embranquecido. O que faz uma pessoa negra se interessar pelo assunto e, principalmente, ingressar em uma carreira na área?
Meu grande interesse, na verdade, sempre foi pelo mundo da gastronomia. Sou filho de uma cozinheira e cresci acompanhando as jornadas da minha mãe. O universo dos restaurantes me fascinava imensamente, pois era inclusivo e oferecia muitas oportunidades para jovens de periferia como eu. Uma vez dentro da gastronomia, enxerguei no vinho uma grande chance de crescimento e me agarrei. Mesmo enfrentando muitas dificuldades e preconceitos, decidi fazer o melhor e crescer na carreira. Hoje trabalho arduamente para que mais jovens negros e periféricos tenham equidade para lutar.
O ramo da gastronomia é realmente inclusivo, mas as pessoas enxergam você como profissional bem sucedido desde que você esteja servindo vinho. Um negro ou um nordestino servindo vinho é maravilhoso, mas elas não te aceitam tão bem se você estiver no palco dando uma palestra, por exemplo, falando sobre mercado. Você é o mesmo profissional, você tem a mesma competência, mas em posições diferentes as reações são diferentes.
Eu sinto isso nos restaurantes. As pessoas adoram, falam para os amigos: “Olha, esse é o Renato, melhor sommelier do Brasil”, mas vejo em outras posições, quando eu tenho que dar uma palestra e falar para um público mais elitizado, os olhares não são os mesmos, não existe o mesmo afeto. Eu tive que passar por cima disso, continuo passando e vou continuar.
Você acredita que o consumo de vinho seja uma prática elitizada? Ou acredita que é para todos? Como mostrar isso para o público em geral?
O vinho, em todos os cantos do mundo é um produto feito por gente simples e para gente simples, mas aqui no Brasil, infelizmente, o elitizamos por muito tempo e restringimos o acesso da maioria das pessoas. Felizmente isso vem mudando. Hoje o vinho está na lista de prioridades de compras de bebidas para 34% dos moradores de comunidades, e além disso, a grande força trabalhadora do setor da gastronomia (garçons, cozinheiros, maîtres, bartenders) consomem e propagam sua cultura por todos os cantos. São profissionais com grande conhecimento no assunto. O vinho não enxerga fronteira e não há quem possa pará-lo. O produto que antes era oferecido apenas em lojas especializadas e restaurantes de elite, hoje ocupa as prateleiras de supermercados, é vendido na internet e tem grande visibilidade nas mídias de massa. O vinho “engravatado” ficou no passado e as empresas do setor que ainda insistem em elitizá-lo se tornarão obsoletas em breve.
Quais seus vinhos favoritos?
Estou vivendo em uma grande lua de mel com os vinhos do Alentejo (importante região localizada no centro sul de Portugal) e também com os excelentes vinhos brasileiros. Depois de duas décadas de profissão e tendo provado alguns milhares de vinhos, é muito difícil dizer quais rótulos são meus favoritos… a lista teria centenas de nomes (risos).
Quais foram os prêmios que você recebeu como sommelier?
Sou um homem muito batalhador e muito abençoado por Deus, então em minha jornada tive a felicidade de disputar e vencer três concursos muito importantes como sommelier:
• Certificação Profissional pela Associação Brasileira de Sommeliers (2017)
• Melhor Sommelier do Ano (2019) • Melhor Sommelier do Brasil (2021)
Nos próximos meses disputarei mais dois concursos importantíssimos:
• Melhor Sommelier dos Vinhos do Alentejo no Brasil 2022 (Évora, Portugal)
• Melhor Sommelier do Mundo 2023 (Paris, França)
Como é para você hoje, olhando sua trajetória, sendo uma pessoa negra, conquistar esses espaços?
Não foi uma trajetória fácil e em muitos momentos o sofrimento foi imenso. Faltou grana (os cursos na área ainda são muito caros), faltou apoio, compreensão, tempo e sobrou cansaço. Nunca briguei em condições de igualdade, sempre foi muito mais difícil. Mas hoje os sentimentos que preenchem o meu coração são orgulho, felicidade, gratidão e responsabilidade. Quero poder falar para a garotada da periferia que vale a pena empunhar a espada, erguer a cabeça e lutar com bravura, pois assim como o vinho, não podemos ser parados por nada, nem por ninguém.
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