O teatro e a readaptação dos estereótipos do negro na contemporaneidade

0
O teatro e a readaptação dos estereótipos do negro na contemporaneidade

Por Leonardo Alan*

O teatro precisa se permitir a readaptar os estereótipos que não representam o negro na sua contemporaneidade. Afirmo isso, pois o rótulo de rapaz diferente do padrão ainda me me persegue. Minha narrativa é de um filho único, de pais separados, que sempre chamava atenção com seu jeito performático por onde passava. Eu era o que dançava nas festinhas, imitava personagens e vestia roupa de mulher. Sim, eu era “aquele” menino. O rotulado “negrinho”, ‘pretinho” e “bichinha”, que veio da periferia de São Paulo, e que mesmo sob toda hostilização, hoje a “bichinha pretinha” fala cinco línguas é ator, cantor, compositor, dançarino, apresentador e empresário. 

Notícias Relacionadas


Minha adolescência foi muito silenciada, pois não se tocava nas pautas de bullying ou de racismo. E apesar da falta de entendimento social sobre as agressões que sofria, eu nunca perdi a percepção do que me permitia sobreviver mentalmente a tantos ataques: a liberdade da qual a expressão artística me possibilitava e que me fez seguir o caminho para o teatro.

Esse Dia Mundial do Teatro, me leva a lembrar de como iniciei minha trajetória nesta arte, presenciando aos oito anos de idade a minha primeira peça teatral, quando morava no bairro de Pirituba, Zona Oeste de São Paulo. Me lembro que, na escola pública, onde estudava houve a apresentação de um espetáculo musical. Como não havia mais espaço na plateia, acabei ficando próximo da coxia – local onde os atores se preparam. Lembro até hoje da minha fascinação ao assistir a transformação dos atores, de como aquilo transformou a realidade daquelas crianças e viria também a mudar a minha.

De um lado, não me sinto valorizado quanto pessoa negra nas representações de personagens que o teatro me propõe. Mas de outro, a perspectiva de estudos e aprofundamento nas personagens me proporcionou conhecer diferentes tipos de narrativas que até então estavam foram do meu alcance. Esse engrandecimento intelectual, me fez crescer quanto indivíduo e hoje posso dizer que fui além do que a sociedade previu para mim. Graças ao teatro, pude me apresentar em lugares que nunca havia imaginado, como Amsterdam, Bruxelas e Nova York. Adquiri bagagem artística que me possibilitou atuar em um curta metragem premiado em Cannes, interpretar papel do renomado dramaturgo Nelson Rodrigues e trabalhar na televisão belga como apresentador residente. Mas como nem tudo são flores, uma vez que os textos e produções, em sua maioria, ainda não refletem e representam as evoluções sociais, mas sim repetem e reafirmam estereótipos ultrapassados.

Em 1944, quando Abdias do Nascimento fundou o Teatro Experimental do Negro, iniciou-se um movimento em prol da importância da abordagem das temáticas sociais, até então invisibilizadas, mas fundamentais para a valorização da cultura e imagem social do negro. Este movimento teve início a partir de um grave acontecimento em um espetáculo no teatro Municipal de Lima no Peru, “O Imperador Jones”, de Eugène O’Neill, em que um ator branco pintava o rosto de preto para interpretar um personagem negro. Tal prática atualmente conhecida como “Black Face”, acaba por nos ridicularizar, desumanizar e coloca em cheque o protagonismo negro. Vemos isso por meio da ínfima quantidade de textos e espetáculos que contam nossas histórias de resistência, sobretudo por estamos no ano de 2021, e ainda parecer distante o reconhecimento do negro em posições de poder como uma prioridade nas produções teatrais. Um exemplo que denuncia essa necessidade de mudança, é a performance ‘’A Babá quer Passear” da atriz global Ana Paula Cavalcanti em que retrata a inversão do papel da babá negra que cuida, para a babá negra que quer ser cuidada. Assim como também é importante ressaltar coletivos brasileiros fundados por atores e outros profissionais da dramaturgia negros, que também buscam fazer este contraponto no cenário teatral, como a Cia Os Crespos e o Coletivo Preto. 

Mesmo nesse contexto de quase ausência de valorização negra no teatro, me orgulho da trajetória que venho construindo, que se iniciou no Brasil e que me levou à Europa, onde resido atualmente, e que também me traz diversos desafios culturais como brasileiro. Com o teatro aprendi a me questionar, a reavaliar e a transmutar a realidade social que a sociedade nos coloca. Eu sobrevivi momentos desesperadores em que pensei que mais nada valeria a pena, mas ao parar para decorar um texto e estudar um personagem, eu conseguia recarregar as baterias. Quando estou no palco, eu sou. E é essa mágica e o poder que o teatro tem, e que me impulsionou a construir um novo eu na música. Hoje, posso dizer que essa multipotencialidade artística tem me permitido contar novas histórias, de ser o protagonista negro e não estereotipado que sinto falta nesse cenário, e de agregar teatro e música em produções artísticas e culturais que farão parte dessa nova narrativa de pessoas negras críticas e cientes de seu papel na arte. 

*Leonardo Alan é ator, cantor, compositor, dançarino, apresentador e empresário brasileiro radicado na Bélgica.

Notícias Recentes

Participe de nosso grupo no Telegram

Receba notícias quentinhas do site pelo nosso Telegram, clique no
botão abaixo para acessar as novidades.

Comments

No posts to display