O jardim que não é de flores

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O jardim que não é de flores
Foto: Camilla Prado

Sou uma mulher negra, de 34 anos e comunicadora. Filha de pai baiano e mãe paulistana. Irmã mais velha. Estudei a vida toda em escola pública e sempre tive sonhos grandiosos. Fui 300% na escola, nos trabalhos e assim tem sido sempre. Minha doação é completa, e quando não acredito em algo ou em alguém, dificilmente vou seguir adiante. Carrego comigo o desafio de seguir meu coração. É fácil? Não, não é. Mas me acalma quando tenho tomo decisões a partir das minhas intuições, porque acredito na frase perfeita de Ryane Leão (@ondejazzmeucoracao) “intuição são suas ancestrais soprando em seus ouvidos segredos de sobrevivência”.   

Meu cabelo, desde criança, era o motivo de muito bullying na escola. Lembro que eu virava a “atração” da sala quando um colega da turma do fundão, chegava e puxava o elástico que segurava aquele cabelo black. E todo mundo ria. Ganhei apelidos como “Beakman” referência ao personagem do programa da Cultura “O Mundo de Beakman”, “Bom Bril” e “Assolan” porque o meu cabelo sempre ficava “pra cima” e era “crespo com uma palha de aço”. 

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Minha mãe, tendo duas filhas, uma com um cabelo crespo e a outra com um cabelo encaracolado. Não sabia como cuidar do meu cabelo. Não existia essa gama de produtos que temos hoje. Então, resolveu alisá-lo. Isso não parou as gozações que eu sofria, mas diminuiu. Porém, meninas brancas da escola, sempre me davam “apavoros”, porque eu era uma menina preta que não tinha uma turma. Foi assim até o dia que uma menina preta se juntou a mim, e foi tirar satisfação e dar um “apavoro” nessas meninas brancas. Tive paz. Minha infância foi bem traumática.

A vida seguiu. Os sonhos de sair do bairro e morar sozinha, de fazer uma faculdade, de ir pra Europa, continuaram guardados comigo, de produzir um evento grande como o carnaval de Salvador. Com 15 anos meu pai faleceu e com 16 comecei a trabalhar, fazendo estágio na parte da tarde. Alguns anos depois, fiz um curso de maquiagem, trabalhei com editoriais de moda e desfiles. Decidi que a hora da faculdade tinha chegado. Fui cursar justamente Comércio Exterior, e na metade da faculdade, sem dinheiro pra estudar inglês antes, me dei conta que seria difícil ingressar na área. Então, depois de cursar a disciplina de Marketing, encontrei o meu lugar. Tentei uma bolsa e consegui, fui cursar Marketing em outra faculdade, de mais renome. A partir daí, o meu caminho como comunicadora começou a ser trilhado, mas eu ainda era a comunicadora de cabelo alisado, que não se via como mulher negra e sim como “morena”. Meu TCC teve um tema ousado, foi sobre Marketing de Luxo. Sempre tive sonhos grandiosos, como eu disse! Chanel, Dior, Balenciaga, Tiffany, Jimmy Choo. E como os encontros não são acasos, na faculdade minha dupla, que também compartilhava desses sonhos, era um homem negro, gay e ousado como eu. 

Adentrei espaços e cheguei nas agências de publicidade de São Paulo. Comecei a trocar com pessoas que me inspiravam, que se tornaram minhas amigas. Mulheres que também vivenciaram uma vida como a minha, que saíram de bairros periféricos, de escolas públicas e que carregavam os sonhos dentro do peito. Foi nesse momento que comecei a ter ideias e propósitos que me formaram. Fui entendendo que gostava de Jorge Ben, de Gilberto Gil, de Caetano Veloso. Que eu era da Tropicália e não das baladas da. Vila Olímpia, onde eu passava por situações bizarras de rejeição, principalmente por parte dos homens. Foi nesse momento também que comecei a realizar os sonhos guardados no coração, lembra? Estudei inglês e francês, fui pra Europa e chorei quando me dei conta que consegui realizar uma viagem sozinha, que estava num ambiente com um cheiro diferente, uma cultura diferente. Era mais do que uma viagem, era o meu sonho se realizando.

Logo, o segundo sonho estava pra se realizar, morar sozinha no Centro de São Paulo. O studio que demorou mais de 6 meses pra ser completamente mobiliado, porém com muito orgulho dessa sofrência. E com a contribuição de muitos amigos especiais que, em forma de copos, pratos, jogos de lençol, cama, microondas.. colocaram um pouco de si dentro daquele cantinho. 

E então, chegou o momento mais importante da minha vida, esse que foi uma transformação, um renascimento: a transição capilar. O entendimento como mulher negra e as situações de racismos que me acompanhavam. Impressionante como antes eu simplesmente não observava essas situações. Quando o cacho, sim, aquele enrolar na raiz começou a aparecer, minha vida passou a mudar. Usava muitos turbantes. E eles eram acompanhados de piadas de “macumbeira”, “mãe de santo”. E, eis que neste momento, eu também estava desenvolvendo a minha mediunidade no candomblé. Foi tudo junto e muito intenso. Racismos daqui e dali, até um dia que eu explodi e a agência teve que resolver. Eu não apareci para trabalhar até que resolvessem os casos que eu estava passando, principalmente com uma das chefes que tinha feito comentários racistas. E fui pra Salvador passar as férias – eu achava. Mas na verdade, eu fui me reencontrar, fui sentir o axé dos meus ancestrais, fui me reconhecer em cada pessoa que eu cruzava na rua, fui ouvir o chamado. Um ano depois, eu estava morando em Salvador, com uma proposta de trabalho dos sonhos, com cultura e turismo de Salvador. Nesse momento, eu me transbordei. As ancestrais que sopravam aos meus ouvidos, agora dançavam. De alegria, de felicidade. Eu estava aonde precisava estar. Sonhos se realizaram em Salvador: produção de dois carnavais, encontros com Caetano e Gil, choros na saída do Olodum ali no Farol da Barra. Ali  fotografei e senti o axé das festas populares, vivenciei padre falando “Eparrey, Oyá”na festa de Santa Bárbara, a mistura do sagrado com o profano e a certeza que de o baiano é carnaval e que alegria é um estado que se chama Bahia. Me enchi de poesia e uma luz brotou dentro de mim. As conexões que Salvador trouxe pra mim, são lindas e pra vida toda. Pessoas fortes, inspiradoras, talentosas, lindas por dentro e mais ainda por fora. Com elas aprendi muito, mas principalmente, que eu devo honrar e aceitar quem eu sou e como sou, que meu cabelo é a minha potência e a minha coroa. Se você já foi no Curuzu, no barracão do Ilê Aiyê, vai entender sobre o que estou falando. É engraçado como o universo nos responde aos movimentos que fazemos, em novembro de 2020 dois projetos lindos entraram na minha vida profissional, o Mundo Negro depois de um e-mail ousado que mandei pra Silvia. E a ONU Mulheres, com o estudo TODXS, conduzido por uma amiga que eu admiro demais. Que movimento lindo e ancestral adentrou a minha vida.

eio a pandemia, minha família toda em São Paulo, assim como a maioria dos meus amigos. E mais do que isso, eles precisavam de mim e eu deles, pois estavam passando por situações que eu precisava estar perto. Quando perdi meu pai, meus amigos foram essenciais pra mim. E com eles não seria diferente. Resolvi voltar pra cidade que me ensinou que tenho que me posicionar o tempo inteiro. E resolvi voltar pra provocar mudanças, pra ser agente transformador. A principal delas foi morar num bairro marjoritariamente branco, o Jardins. Sabia que não ia ser fácil. Os preços na Santa Cecília, meu ex bairro, estavam exorbitantes. Fui para o Jardins, morar em um predinho baixo, daqueles de vó. Segui o conselho de uma amiga deusa – “normalize o luxo na sua vida, e vá”. Todos os dias – todos os dias, repito – é uma batalha. As pessoas me encaram nas ruas e nos lugares que entro, se perguntam quem sou eu, como moro neste bairro, trabalho com o quê? É visível no rosto delas essas e outras indagações. Quando eu vou na padaria, todos me olham. Quando eu vou na feira com meu chinelo de dedo, minha bolsa de palha da Feirão de São Joaquim e meu cabelo black, vejo as pessoas se olhando, cutucando e comentando. A branquitude inconformada. Beira uma comédia a forma como eles querem ser atendidos na minha frente, ignoram que estou na fila, ou escolhendo uma planta na feira. E quando entro em lojas…ahhh, essa é a melhor parte: ninguém me atende! E o ponto alto foi numa loja de vinho, a Grand Cru. Entrei com uma amiga, branca. O segurança mediu nossa temperatura. Mas perguntou pra mim se eu era empregada, pois a entrada era só ir adiante. Mas, óbvio, que ele não perguntou pra a minha amiga se ela era empregada. Mesmo assim, sendo provocativas, entramos na loja, queria continuar o filme, pra ver até onde ia. Ninguém nos atendeu. Minha amiga estava inconformada, porque nunca tinha vivenciado comigo uma situação de racismo. Ela chamou um atendente falou, questionou e um choro de inconformação tomou conta dela. O atendente, tentando justificar um comportamento que não há como argumentar. Eu simplesmente olhei pra ele e disse que não ia dar uma aula sobre isso, porque estava exausta. Eu já sabia o que ia fazer, eu ia escrever, pois essa é a minha arma contra isso. Isso aconteceu em junho, estamos em setembro. Demorei 2 meses pra digerir e transformar o sentimento em palavras.

Quando compartilhei o caso com uma amiga, que não é branca, ela disse – em tom protetor, que era incoerente eu morar nesse bairro. Porque eu vou passar por isso todo dia. Mas, desde então fico pensando, é incoerente eu morar aqui ou a sociedade julga como incoerente que eu, como mulher negra, more num bairro como esse? É incoerente eu ter um cargo de liderança numa agência de destaque e o cliente questionar como cheguei até esse cargo? Deve ser muito para branquitude ter que lidar: uma mulher, negra e candomblecista adentrando espaços, lugares e posições, né? No livro “Racismo Estrutural”, de Silvio Almeida, cita que “mulheres negras são consideradas poucos capazes porque existe todo um sistema econômico, político e jurídico que perpetua essa condição de subalternidade, mantendo-as com baixos salários, fora dos espaços de decisão, expostas a todo tipo de violência. Caso a representação das mulheres negras não resultassem de práticas efetivas de discriminação, toda vez que uma mulher negra fosse representada em lugares subalternos e de pouco prestígio social haveria protestos e, se fossem obras artísticas, seriam categorizadas como peças de fantasia.”. Tenho figuras de mulheres potentes que me inspiram a ir muito longe, como nossa lady boss Silvia Nascimento, Tais Araújo, Camila Pitanga, Adriana Barbosa, Larissa Luz e tantas outras. Decidi que não vou parar de incomodar. Vou abrir espaços, adentrar lugares, fazer questionamentos, expor situações. Quero  ser agente de mudança para que o caminho daqueles que virão depois de mim seja mais leve e mais justo. 

Então, “Jardins”, eu sinto muito, mas vocês terão que lidar com uma mulher preta andando pelas suas ruas arborizadas e brancas, frequentando os mesmos espaços que vocês. Comendo o mesmo que vocês, comprando as mesmas plantas, legumes e verduras que vocês. E desejo imensamente que eu seja muitas. Que eu não encontre uma ou outra mulher preta, como aconteceu esses dias, que abra um sorriso com os olhos, feliz pelo encontro por essas ruas. Mas que isso seja multiplicado. 

E agradeço a Silvio Almeida (@silviolual) que tem me ajudado tanto com seu ensinamento. Por estar me ensinando que não é incoerente estarmos e adentrarmos esses lugares, o que é incoerente a estrutura da sociedade.

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