Quarta- feira: estou no aeroporto de Londrina, o calor está muito forte, tive um dia intenso de reuniões e estou ansioso para voltar para casa. Meu vôo vai atrasar alguns minutos e me sinto frustrado, mas logo me acomodo como consigo. Um pensamento permeia minha mente, algo que aconteceu três dias antes em São Paulo…
Por Rafael Eusebio
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Trabalho como gerente nacional em uma marca Italiana de tênis. Por conseqüência, acabo viajando muito a trabalho e, sempre que vou visitar nossos representantes em outros estados, levo alguns pares do nosso produto para presentear alguns parceiros que possuímos nas regiões.
Nesta viagem, em especial, me esqueci de pegar os pares em nosso escritório, lembrando-me apenas no sábado à noite. Como meu vôo era no primeiro horário de segunda feira, liguei para um diretor da empresa e consegui uma autorização para retirar esses pares em uma das nossas lojas no domingo.
Assim o fiz: fui até um dos maiores e mais luxuosos shoppings de São Paulo, onde possuímos uma loja, retirar os tênis.
Aqui começa minha reflexão.
Meus pares foram previamente separados em dez lindas sacola. Agradeci e os retirei. Quando saí da loja e passei por um segurança, percebi seu espanto. Ele nem disfarçou. Assim que passei por ele, olhei para trás e o vi correndo até a porta da loja, olhando ligeiramente para dentro a fim de verificar se estava tudo bem.
Ele correu.
A gerente não percebeu nem os clientes perceberam, mas ele correu até a porta da loja para se certificar de que estava tudo bem lá dentro, se não havia ocorrido algum tipo de roubo. Porque ele se espantou? Se eu fosse branco, ele teria a mesma atitude? Como não pensar isso?
Com isso em mente, me lembrei da última viagem que fiz com minha mulher. Fomos até Machu Picchu, Peru, cidade maravilhosa que recebe muito bem pessoas do mundo inteiro, mas que é um lugar muito pobre e com acesso limitado a informações. Neste lugar, algo curioso aconteceu. Antes, por desencargo, cabe dizer que, segundo a agência que nos prestou assessoria, lá o brasileiro é o terceiro maior povo a visitar a região, ficando atrás apenas dos europeus e dos americanos.
Continuando, desde que desembarcamos em Cusco, todos que se aproximavam de nós o faziam em inglês, inclusive os brasileiros. Achei esquisito no início, mas pensei que devia ser coisa da minha cabeça.
Os dias foram passando e a prática se repetiu. No pequeno hotel em que ficamos, na cidade, com os guias, em restaurantes. Até que chegou o dia de subir ao vale sagrado. Estávamos em um grupo composto apenas por brasileiros e, quando os guias chegaram, cumprimentaram todos em espanhol e nós em inglês. Ao falarmos que éramos brasileiros, o espanto nos olhares, inclusive de outros brasileiros.
Fiquei com aquilo na cabeça.
De volta ao hotel, já à noite, fiquei a conversar com a proprietária do local, com quem tinha feito amizade. Quando lhe indaguei o porquê de ter nos recebido em inglês, quando chegamos, e se espantado ao dizermos que éramos brasileiros, ela me respondeu que possuía aquele hotel há mais de 20 anos e que recebia pessoas do mundo inteiro, sendo a maioria brasileiros. Porém, ela nunca havia recebido um casal de brasileiros negros lá. Eu, então, disse a ela que os negros são a maioria da população brasileira. Vi seus olhos se arregalarem.
Isso me marcou.
Vale ressaltar que não estou aqui dizendo que fui discriminado lá. Pelo contrário! Aquele povo é extremamente cordial e nos tratou de forma primorosa. O que me marcou não foi a constatação de que os negros são grande minoria nas viagens internacionais realizadas por brasileiros. Isso não é novidade. Me impressionou a proporção. No Brasil mesmo não é diferente. Existem situações e locais que simplesmente não pertencem à esmagadora maioria dos negros, e isso é além do racismo. Não pertencem, não porque não podem ir ou entrar, mas simplesmente porque estão fora do seu raio de alcance social e, quando eventualmente conseguem alcançar, rola o espanto.
Eu sei, já passei muito por isso.
Sou o único negro em cargo de liderança em minha empresa e não considero minha empresa racista, até porque, se ela fosse, eu não estaria ali. Entretanto, quando me apresento profissionalmente percebo o tal do espanto nas pessoas. Sou o único porque meu povo de alguma maneira não consegue se preparar para disputar esse tipo de vaga e isso é fato. E o papo aqui não é sobre vitimização. Olhe ao redor em sua empresa, olhe os líderes. Vou mais além: olhe para os que têm salário superior a três mil reais e me diga quantos negros são.
Não estou culpando o branco por isso e nem tirando o mérito de quem chega onde deseja, mas posso afirmar que na atual estrutura brasileira no que se refere ao povo negro, você terá um concorrente a menos para lutar pelo seu espaço (caso seja branco). Isso é um fato.
Dizer que a culpa disso é do próprio negro é algo além de ignorância, é desonestidade, já que é fato que faz apenas 130 anos que a escravidão acabou no Brasil (cara, a marca em que trabalho tem 100 anos). É fato também que fomos os últimos a abolir essa aberração e que, após a libertação, não foi feito nada ou quase nada por aquele povo. Meu povo. Diferentemente do que ocorreu nos EUA, por exemplo, em que pelo menos um burro e um pedaço de terra foram concedidos aos negros libertos.
Pergunto a você: em 130 anos, é possível um povo se reerguer assim? Será que o negro realmente se faz de vítima? Será que este texto é mimimi?
Pergunte a algum parente seu mais velho o que realmente queria dizer um anúncio de emprego nos anos 70 que dizia “requer boa aparência”. Só o fato de você não permitir que pensamentos que acusam o negro no Brasil de ser o maior responsável por sua situação saiam de sua boca, ou de seus dedos nas redes sociais, já ajuda muito, é sério.
Pois isso machuca. Busque exercer empatia.
Não creio que a atitude do segurança foi só racismo. Provavelmente, para ele, ver um negro cheio de sacolas, saindo de uma loja em um shopping de luxo, onde os negros são vistos apenas trabalhando, lhe causou espanto ao ponto de desconfiar da licitude de como consegui aqueles calçados. Aplico esse exemplo nas abordagens policiais às quais já fui submetido. Em um carro mais velho, a seguinte abordagem: “bom dia, senhor! Habilitação e documento”. Abordagem ok. Eis que ao dirigir um carro melhor, a abordagem se transforma na pergunta: “de quem é esse carro”? Não preciso nem dizer que ao responder que é meu, lá vem o espanto outra vez.
Antes que me critiquem, quero deixar claro que não estou acusando a instituição Polícia de racismo. Eu a respeito e reconheço sua importância. A questão que tento trazer neste relato é que no senso comum o negro está sempre à margem na sociedade e sua ascensão causa algo além de preconceito. Causa espanto. E não precisa ser uma grande ascensão social para sentir isso não. Eu mesmo estou longe de ser rico, luto todo dia para conseguir meu lugar, pagar uma boa escola para minhas filhas e, quem sabe, realizar grande parte dos meus sonhos. Mas ser recebido com espanto toda vez que assumo o lugar que luto para ter, dói muito. Pensar se minhas filhas também terão que passar por isso, dói mais ainda.
Dói todo dia, pois não importa o quanto você lute, você sempre tem a percepção de não pertencimento àquele lugar. De não merecimento pelas coisas que conquista.
O sentimento de que é um invasor.
O racista escroto propriamente dito me causa raiva e pena ao mesmo tempo. Todavia, ir para o meu carro no estacionamento de um shopping e ver uma senhora correndo com medo por eu estar indo em sua direção (já que meu carro está ao lado do dela) dói muito. Ainda mais por saber que o único critério que ela usou para se sentir ameaçada foi a cor da minha pele.
Podem me trazer milhares de explicações, teorias, opiniões, mas a verdade é que essas pequenas coisas no dia, além de machucarem, nos minam. A tentativa de falar sobre essas coisas, inclusive, já gera receio.
Como sociedade, temos um grande caminho a trilhar sobre este assunto. Existem muitos aspectos a serem avaliados por todos. Precisamos falar a respeito e isso me encoraja a transformar essa reflexão em um relato. Relato este que escrevi enquanto esperava o meu vôo, mas que está em meu coração há muito tempo. O embarque começou…
Até breve.
Rafael Eusebio.
Pai,preto, trabalha no mercado de moda a mais de 10 anos e escreve sobre suas vivências por livre e espontânea vontade.
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