Dez anos nos separa de um dos acontecimentos mais brutais da história da violência policial do Rio de Janeiro. Em 16 de março de 2014, Cláudia Silva Ferreira foi arrastada por 350 metros num carro da Polícia Militar, pelas ruas do bairro de Madureira, na Zona Norte carioca. Cláudia, mulher negra, tinha 38 anos, era auxiliar de serviços gerais, tinha filhos e um marido. Num domingo, ao sair de casa para comprar pão, foi atingida por dois tiros, por causa de confronto entre policiais e traficantes no Morro da Congonha. Após ter sido baleada ela foi colocada, pelos próprios policiais no carro oficial para ser socorrida no Hospital Estadual Carlos Chagas, contudo durante o percurso o compartimento da viatura abriu, Cláudia ficou pendurada por um tecido e foi arrastada, tendo sua pele dilacerada no asfalto. Mesmo sob o grito de alerta daqueles que viram a situação, os policiais não pararam. Essa brutalidade foi filmada por um cinegrafista amador e amplamente divulgada na mídia. Ela perdeu sua vida pelo Estado.
Uma década após o crime teve um desfecho: a Justiça inocentou os policiais acusados, que respondiam por homicídio e por remover o corpo do local. O juiz Alexandre Abrahão Teixeira, do 3º Tribunal do Júri, concluiu que eles eram inocentes das acusações citadas. “Erro de execução” concluiu o juiz. Esta frase está ecoando na minha cabeça, assim como outros trechos de narrativas proferidas durante o julgamento. Voltaremos nelas daqui a pouco. Antes disso vou levantar outras questões.
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Quantos metros e por quanto tempo um corpo de uma mulher negra pode ser arrastado? Porque alguns corpos são cuidados e acolhidos, enquanto outros são alvo das mais brutais violências? O que afinal é a Justiça? A Justiça tem uma cor? Não pretendo aqui responder sistematicamente essas questões, mas sim expor uma breve reflexão que passa por essas questões.
Uma das provas usadas no processo criminal que trata este texto foi o laudo do Instituto Médico Legal, o documento conclui que a causa da morte foram os tiros e desse fato, o juiz Alexandre Abrahão afirmou que os agentes de segurança pública (os PMs) agiram em legítima defesa, uma vez que estavam em confronto com traficantes. O argumento supremo e muito antigo da guerra às drogas. “Diante do conjunto probatório existente nos autos, infere-se que os acusados agiram em legítima defesa” , conclui o juiz.
Já sobre a retirada de Cláudia do local do crime, a Justiça entendeu que os policiais tiveram a intenção de socorrer. A Agência Brasil reproduziu algumas falas dos PMs, vou me concentrar numa, pois já será suficiente (e acredito que você irá concordar comigo). “No banco traseiro da viatura havia alguns armamentos. A população estava revoltada e tentou tomar para si as armas, bem como agredir os policiais. Como os agentes tinham que socorrer Cláudia, não houve tempo hábil para retirar as armas do banco. Em razão disso, eles a colocaram, dentro da caçapa da viatura”, afirmou Wagner Cristiano Moretzohn, o comandante do 9° Batalhão da Polícia Militar à época. No instante em que li este trecho do depoimento do comandante, meus olhos lacrimejaram e minha garganta doeu, eram os sinais do meu corpo ao imaginar e recriar a cena na minha mente.
Acredito que você esteja desconfiado sobre o real motivo que guiou os vizinhos de Cláudia tentarem impedir que os policiais a levassem. O desespero sólido. A dor e a angústia dos filhos, que esperavam a sua mãe com os pães, no instante no qual souberam que ela poderia estar morta.
Os representantes da Segurança Pùblica não cumprem com suas funções quando o sujeito é negro. Ao invés de proteger, promove a morte de certos grupos. Como argumenta o filósofo camaronês Achille Mbembe, existe uma estrutura de dominação muito atual que se fortalece e se renova cada vez mais e ela está disfarçada de soberania e da preservação da ordem social vigente, fornecendo ao Estado “autorização” para operar o direito de matar. Assim, o conceito de necropolítica de Mbembe explica os modos de dominação do Estado, e de que forma esse Estado promove a vida ou a morte a depender do grupo social.
Não é exagero afirmar que o Brasil mata sistematicamente corpos negros. Promover segurança pública é um conjunto de ações de controle da criminalidade e da violência por meio do sistema da justiça, esse sistema é composto de entidades ligadas ao Poder Executivo e ao Judiciário, que trabalham em etapas relacionadas e contínuas de controle social que especificam o papel do Estado no cumprimento da ordem pública. Sendo representante do Estado nas ruas, o policial deve, de acordo com a lei, tratar os indivíduos sem distinção de classe, cor, gênero etc. Contudo, isso é só um sonho. No recorte racial, os negros são as maiores vítimas de violência policial.
Para escrever este texto, precisei ler diversas matérias publicadas tanto em 2014 quanto aquelas que eram publicadas a partir das mudanças no processo criminal, como por exemplo, quando foi realizada a reconstituição do crime, ou mesmo nos momentos em que novas testemunhas eram ouvidas e por fim a divulgação da sentença de absolvição dos policiais envolvidos. No conjunto de notícias que li, notei novas mortes, pelo silenciamento do indivíduo enquanto sujeito ativo. O nome da vítima era substituído por “mulher arrastada”, ou em lugar do nome dela a utilização da palavra “corpo”. Não. Não foi um corpo colocado na viatura da polícia, mas sim a Cláudia com seu corpo negro e sua história. Mais uma vez, vemos o processo de aniquilação de quem somos ou poderíamos ser.
A cada nova leitura ou finalização de um parágrafo eu lembrava do trabalho de mestrado da pesquisadora Amanda Quaresma de título Os corpos gritam para ninguém. O ponto inicial da autora foi o grupo documental de laudos produzidos pelo Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador, na Bahia. Sua pergunta central foi questionar: os laudos elaborados pelo Instituto Médico “permitem a construção de verdades que abranjam outras narrativas, que não as produzidas pelo Estado?” A pesquisa da Amanda Quaresma centrada no processo criminal da “chacina do Cabula” e seu resultado têm grandes contribuições para inúmeras reflexões, mas a que queria trazer aqui é uma das conclusões que ela chega: “todo o processo de produção de laudos periciais é permeado por um racismo antinegro, que valida narrativas e ficções de uma polícia que mata, enquanto apaga histórias de comunidades inteiras”.
Por fim, gostaria de apontar uma última ideia: se a Cláudia fosse uma mulher branca, será que seria tratada da mesma forma pelo Estado? Em março, mês marcado pela constituição do Dia Internacional das Mulheres, nós mulheres negras brasileiras, vimos e sentimos o desfecho cruel do crime que Cláudia foi vítima. Precisaria de mais um texto, ou talvez, muitos outros para continuar esta ideia. Mas como prometi que iria terminar, deixo a reflexão sobre os feminismos e suas histórias como movimentos políticos, para o outro momento.
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