O querido Babu Santana conseguiu movimentar as redes sociais com uma grande discussão no dia de ontem, graças a uma explicação sobre sua preferência pelo termo preto e não, Negro. O volume exagerado das discussões e de pessoas tomando para si o entendimento apresentado em um programa popular de televisão reflete uma triste realidade: a maior parte das pessoas do nosso país não tem conhecimento algum sobre a realidade de pessoas pretas no país. É um exército de gente que passa a vida absorvendo conhecimentos variados e até se formaram em universidades, mas não tomam ciência que existe uma experiência de vida distinta da chamada “padrão”.
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As contradições sobre o uso de Negro ou Preto não são novas. Porém, quando alguma dessas pessoas são confrontadas com um tipo de explicação como a de Babu, elas podem reproduzir um comportamento problemático: o único amigo negro. Basicamente eles se confortam na única, talvez a primeira, explicação que aprendem como se fosse uma máxima da sociedade e continuam ignorando o desconhecimento sobre toda a discussão.
A gente vẽ esse comportamento, por exemplo, com o vídeo do Morgan Freeman sobre a consciência humana, levado ao pé da letra por gente como um escudo rígido para proteger sua preguiça e má vontade de entender a questão de forma mais ampla ou também com um vídeo, bem difundido, de Nabby Clifford falando como eram pejorativas, as expressões que encontrou no Brasil “lista negra, magia negra… mercado negro”
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Nabby não está errado em sua observação, mas reparem que no início do vídeo ele declara sua identidade dizendo “eu sou Africano, de Gana”. Ocasionalmente, se você chama alguém assim de negro ele retorna com “minha cor não é negra, minha cor é preta”, todavia a discussão não é, explicitamente, sobre a cor de alguém.
Como bem lembrado por Babu, antes, e até hoje, em alguns lugares na África, o termo Negro não faz sentido, pois eles são Yorubás, Nigerianos, Egípcios, Axantes, Dogons, Khoisan… ou seja, eles não precisam de um termo étnico, pois já estão compreendidos dentro de uma identidade africana. Identidade que foi negada para os seus descendentes em diáspora. Sem conexão com o país ou grupo étnico original, alguns movimentos têm trabalhado por décadas para abraçar essas pessoas que estavam no limbo da auto-afirmação. Por isso a gente parte para uma discussão que vai além da etimologia e chega ao campo da semântica. Um exemplo simples da diferença entre esses conceitos é a palavra macaco, a etimologia descreve que o vocábulo se refere à uma espécie de primatas. Então porque ela se tornou ofensiva aos negros? A resposta disso reside na construção histórica do racismo que comparava o crânio de pessoas pretas com esses tipos de animais, chegando ao cúmulo de aprisionar um homem em um zoológico na jaula de um chimpanzé (Ota benga) para validar a teoria racial da época.
Agora, o princípio do Negro é a palavra latina Niger, que significa “escuro ou preto”, o mesmo radical que deu origem ao nome da Nigéria (Nigerianos são, basicamente “nigririanos”). Como lembra a psicóloga e escritora Grada Kilomba em seu livro “Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano”, apesar de ser essa a sua gênese, logo nos primeiros séculos após as colonizações, passou a ser utilizado nos EUA e na Europa como ofensa para “pessoas de cor” que foram escravizadas. Um entendimento, provavelmente irrigado pela visão cristã que antagonizava a luz e sombra como símbolos de Deus ou o Demônio. Kilomba afirma que o significado atribuído carrega uma “cadeia de termos associados à palavra em sí: primitividade, animalidade, ignorância, preguiça, sujeira…”. Uma construção conceitual que demorou séculos e sofreu diversas variações, como neger, negro, nigger, nigrum, noir, nègre – os dois últimos sendo as definições francesas que compartilhavam a mesma compreensão norte-americana que resultou na palavra Nigga, a N-Word.
A história da escravidão em solo estadunidense atribuiu violência à palavra negro, por isso a intelectualidade preta do país construiu sua identidade como Black people ou Afro-Americanos – a lei de uma gota de sangue permitiu que isso funcionasse, pois o país materializou em leis segregacionistas qualquer pessoa descendente de um africano, mesmo que seus traços não sejam tão aparentes.
Enquanto aqui em nosso país, isso se mostrou complexo demais, pois existem muitas pessoas pobres, lidas como brancas, que podem ter uma descendência (mesmo que distante) de um negro. As definições que surgiram de sociólogos e antropólogos racistas na época do império e durante o movimento eugenista trabalharam para impedir a construção de uma maioria dentro do país. Era comum que uma pessoa escravizada, mesmo com pele escura, assumisse a identificação de parda ou, quando os traços africanos não eram intensos, de branco para se afastar da classe social mais preterida. – Vale lembrar aqui de Joaquim Nabucco que descreveu seu amigo Machado de Assis como um branco, tipo grego.
A negação da negritude em solo brasileiro foi absurda, o país não queria vender a ideia de que aqui existia um número exorbitante de Africanos e pretos, nossa sociedade partiu ora da descendência, ora da marca para determinar que essas pessoas seriam “cabras, mestiças, cafuzas, crioulas, boçais, mulatas…”, algumas dessas palavras, usadas como eufemismos para negar aqui a existência de povos africanos, ganharam maior utilização na hierarquização da sociedade que as utilizadas em outras sociedades escravocratas (neger, negro, nigger, nigrum, noir, nègre – aliás aqui, o relativo à ofensa Nigga é Crioulo). Os brasileiros podiam ser qualquer coisa, menos negros, como escreveu um dos maiores propagadores do racismo científico no país, Raimundo Nina Rodrigues: “A supremacia imediata ou mediata da Raça negra” era considerada nociva à nacionalidade brasileira. Para isso, as oligarquias e a elite que estava no poder implantou o projeto da consciência eugênica e vendeu a ideia de que os mestiços não eram negros.
“Negro era sujo, eu era limpa; negro era burro, eu era inteligente; era morar na favela e eu não morava e, sobretudo, negro tinha os lábios grossos e eu não tinha. Eu era mulata, ainda tinha esperança de me salvar” – Relato encontrado no livro Tornar-se Negro.
Foi a partir desse contexto que os movimentos negros criaram uma tensão contrária, trabalhando não apenas para ressignificar o sentido de ser negro no país, mas abrangendo todos os descendentes de africanos que eram chamados por vários termos racistas no passado. Essa era a forma de pesar na balança e “mostrar o peso econômico da massa negra organizada”, como escreveu José Correia Leite, um dos mais importantes nomes da história negra brasileira. Eu sempre, sempre trago o trecho de um dos livros mais importantes da intelectualidade preta brasileira, “O Genocídio do negro brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado”. Nele o autor nos ensina: Um brasileiro é designado preto, negro, moreno, mulato, crioulo, pardo, mestiço, cabra – ou qualquer outro eufemismo; e o que todo mundo compreende imediatamente é que se trata de um homem de cor, um negro não importa a gradação da cor da sua pele.
Esses cabras, pardos, mulatos seriam os equivalentes aos descendentes de Yorubás, Nigerianos, Egípcios, Axantes, Dogons, que perderam sua identidade na escravidão brasileira. Assim as lutas dos movimentos nacionais de igualdade racial assumiram o termo negro como um Ideal de Ego, um conceito evidenciado por Neusa Santos Souza no livro que é um marco para a psicologia social negra em nosso país, Tornar-se Negro.
Esse foi um entendimento coletivo, construído há muitas mãos e por décadas. Nomes como Isildinha Baptista e Virgínia Bicudo, fizeram as bases para o estudo da perspectiva sobre a realidade dos negros brasileiros e trouxeram evidências que os padrões fenotípicos (os traços) são decisivos no nosso plano das relações interpessoais.
Em algum momento outros grupos em outros países também estabeleceram um significado para sua própria negritude. No Senegal e em outros países que foram colonizados pela França, surgiu o movimento literário Négritude que negava a colonização e ressalta a cultura negra. Também há o episódio emblemático da libertação do Haiti e sua constituição de 1805 que determinava “todos os cidadãos haitianos, de aqui em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros” (les Haïtiens ne seront désormais connus que sous la dénomination génériques de Noirs.)
Enfim, a construção da identidade negra, a negritude que discutimos é um conceito brasileiro diante de todo o contexto vivido pelos movimentos em nossa longa história. Agora vamos voltar ao ponto mais importante da discussão, desenhada pela cena em que Babu discorre sobre o tema com as participantes do BBB. Quanto dessa e de outras histórias sobre os negros do nosso país você conhece? Quanto disso tudo que conversamos você aprendeu na escola ou nos debates políticos da sua emissora preferida?
Negros vivem em dois mundos: nós conhecemos a realidade que uma sociedade racista nos impõe e também observamos a realidade que os brancos ao nosso redor vivem, nós lemos e estudamos seus filósofos, ouvimos suas músicas, assistimos seus pontos de vistas em programas de TV, conhecemos a história de momentos dramáticos dos povos brancos, entendemos de mitologia grega, nórdica, sabemos da linhagem da rainha da Inglaterra e mesmo assim temos que explicar coisas tão triviais do tipo “posso chamar alguém de preto?”
Agradeço imensamente ao Babu, pois se você leu esse texto e descobriu coisas que nem imaginava que existia, foi por conta da discussão que ele começou. Sobre a resposta da pergunta, ela varia. Tem gente que gosta de ser chamada de preta, tem gente que prefere ser identificada como negra. Na dúvida, faça como a gente faz com qualquer pessoa branca, só chama pelo nome.
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