Intolerância: “É preciso separar o Estado da Religião”

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Intolerância: “É preciso separar o Estado da Religião”
Foto: Roger Cipó

“Vinte começaram a jornada, e depois se transformam em cem milhões’’;

“Nós perguntamos se é seguro sair’’;

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“Eles respondem que mais seguro é voltar para dentro’’;

“O vento rodopia, como se Oya estivesse furiosa’’.

Òtùrá Méjì

Em Òtùrá surgiu a raça humana, as religiões, a separação entre os povos, o crime de ódio, racismo, a intolerância, auto ódio, aversão a tudo aquilo que é diferente, com base nesta sabedoria ancestral trazida por este Odú e mais alguns fatos históricos do Brasil, convido a todos e todas para uma leitura sobre intolerância religiosa.   

A população brasileira é composta por diversas etnias o que faz do Brasil um país com uma grande diversidade cultural; brancos “custeados’’ advindos da Europa, negros “escravizados’’ advindos da África e as comunidades indígenas originárias compuseram nossa população e nossa cultura.

Conforme os diferentes povos chegavam ao nosso território traziam consigo um conjunto de manifestações culturais materializadas nas diferentes línguas, costumes e crenças. Portanto, não podemos entender nossa sociedade sem considerar a diversidade cultural presente em nossa identidade, logo, não seria possível pensarmos uma religião única ou como oficial em nosso país. 

Dessa forma o Estado tem por obrigação oferecer a seus cidadãos um ambiente de harmonia e respeito às diferentes crenças, banindo o fanatismo religioso manifestado na intolerância em suas diferentes formas de violência. 

Para isso é preciso separar o Estado da Religião, garantindo sua laicidade, somente existindo a ligação do Estado e Religião ao que tange em prestar proteção e garantia do seu livre exercício. Devido a esse fato, nossa Constituição Federal deixa expressa como um direito fundamental a liberdade de culto, constando o Brasil como um país laico: 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI – e inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

(BRASIL. Lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989)

Entretanto o fato de sermos um Estado separado de Religião e por não possuirmos uma religião oficial, não impediu de constar em nossa Constituição e em atos legislativos pequenos fragmentos religiosos de como conduzir a Nação neste âmbito.

Isso ocorre porque o constituinte entendeu a necessidade de reconhecer o pluralismo religioso que permeia nossas relações sociais. É sempre preciso considerar que o Estado não pode tomar uma religião para si de nenhuma forma, seja ela direta ou indireta. A missão é promover um ambiente onde diversas religiões consigam conviver sem se violentar, respeitem seus ritos e dogmas de forma a não serem obrigadas a se adaptarem devido a alguma exigência social, ou seja, toda religião deve ter total liberdade de culto desde que respeite os direitos humanos previstos em lei.

Na história brasileira, durante o período de colonização, o Império sempre restringiu a liberdade religiosa, professando como verdadeira, apenas uma única religião, até então, o Estado e a Igreja atuam como um poder único, apesar de outras religiões coexistirem, com destaque as crenças de origem indígena e africana, apenas a Igreja Católica Apostólica Romana era tida como oficial, amplamente aceita e disseminada, por ser a única religião permitida em território nacional. A Igreja Católica enquanto religião oficial foi grande contribuinte para propagação da intolerância, e tal processo se agravou com a instauração da Santa Inquisição no século XVIII, destruindo a cultura, o patrimônio cultural e religioso de todos os povos que pretendeu catequizar e subjugar.

Importante ressaltar que em todo período escravagista a Igreja Católica corroborou e usou do seu poder para perpetuar na sociedade a ideia de que os negros não possuíam alma, e em decorrência disto eram equiparados a animais ou coisas, podendo assim sofrerem destituições culturais e religiosas. A internalização dos dogmas Católicos pelos indígenas e africanos, foi uma das formas mais violentas de dominação, tal internalização destituía as origens e a memória destas comunidades e, uma vez, esta memória perdida, os elos sociais de identidade se enfraqueciam tornando tais comunidades cada vez mais vulneráveis e sujeitas a dominação europeia. 

Toda essa dominação estava intrínseca ao violento regime escravocrata, a violência física, o trabalho forçado, a dissolução de famílias quando aportavam no Brasil, e a imposição de uma nova religião culminou num processo de extinção cultural, deixando explicito quem detinha o poder de sua vida e morte, no caso seus proprietários. Contudo, sabemos das resistências surgidas ao longo deste processo, a fuga de escravos e a formação dos Quilombos eram uma forma de resistência já que nos Quilombos era possível a recuperação das práticas culturais e religiosas e além disso, a restituição de laços de identidade desta população.

Com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, sob influência da noção de Estado disseminada pelo Iluminismo francês, o Estado tornou-se laico no Brasil, garantindo o direito à liberdade religiosa. No entanto, o catolicismo ainda era a religião oficial do Estado e participava ativamente da organização social do País. Vale ressaltar que todo o processo educacional ainda estava sob a égide da Igreja. O Governo Provisório, que possuía Campos Sales como Ministro da Justiça, solicitou ao Conselheiro Baptista Pereira a organização de um novo projeto de Código Penal, que teve sua conversão em lei em outubro de 1890. Dentre seus artigos podemos elencar:

Art. 402 – Punição ao crime de capoeiragem; 

Art. 158 – Punição ao crime de curandeirismo; 

Art. 157 – Punição ao crime de espiritismo; 

Art. 391 – Punição ao crime de mendicância;

Dentro destes poucos artigos podemos contemplar que houve a continuação da dominação cultural, política e imposição de padrões europeus, não havendo uma preocupação e consideração a dignidade dos negros. Após todas as revoluções históricas e sociais, garantir este direito se torna uma obrigação legislativa, por este motivo, além da garantia constitucional, outras leis são necessárias para que tal direito pudesse ser gozado de maneira ampla e irrestrita na forma da lei, evitando qualquer tipo de intolerância, imposição e discriminação religiosa.

A partir desta pequena contextualização histórica, é possível considerar que o desenvolvimento das religiões afro-brasileiras fora marcado pela perseguição em diferentes níveis, o preconceito se materializa desde as outras religiões até ao Estado e suas legislações. Isso põe a necessidade de criar estratégias de sobrevivência e dialogo frente às condições adversas para a manutenção destes cultos afro-brasileiros. Tais religiões foram perseguidas pela Igreja Católica ao longo de quatro séculos e pelo Estado republicano, sobretudo na primeira metade do século XX, quando este se valeu de órgãos de repressão policial e de serviços de controle social e higiene mental, e, finalmente, pelas elites sociais num misto de desprezo e fascínio pelo exotismo que sempre esteve associado às manifestações culturais dos africanos e seus descendentes no Brasil.

Com o fortalecimento da Ditadura e na medida em que se percebia a formação destas resistências, o Regime Militar pretendeu um maior controle sobre a abertura dos espaços destes cultos. Estabeleceu-se um forte controle regulatório por parte do Estado, e para se abrir um espaço de religião de matriz africana era necessária uma autorização da Secretaria de Segurança Pública, e cabe ressaltar que muitos dos movimentos contrários ao regime de exceção se davam nestes espaços religiosos.

É possível traçar um paralelo da Ditadura com os dias atuais, quando vemos o crescimento e a democratização de grupos conservadores, os quais se organizaram para defender seus interesses baseados nos seus dogmas religiosos. Atualmente com o aumento da bancada evangélica no Senado, a intolerância tem sido legitimada pelo Estado, quando encontramos uma série de eventos e atos inconstitucionais, tais como o pleito a proibição da imolação animal, ferindo diretamente o Estado Laico.  

É notório que o crescimento neopentecostal corroborou também para o crescimento da intolerância, o proselitismo é muito grande e a tolerância não faz parte da ideologia de muitos deles. Ainda mais quando temos líderes políticos e facções criminosas simpatizantes, e até mesmo adeptos de movimentos evangélicos radicais – pois sabemos que a Umbanda e o Candomblé não são parceiros políticos interessantes – a tensão fica ainda maior, como no caso do estado do Rio de Janeiro onde traficantes expulsam terreiros que já estão ali estabelecidos há anos, a pedido de algumas Igrejas Evangélicas.

Os ataques acontecem de diferentes formas: agressões físicas contra terreiros e seus membros; ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais públicos; ataques aos símbolos dessas religiões existentes em tais espaços; ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que possuem relação com as religiões. Os ataques decorrentes de alianças entre igrejas e políticos evangélicos se tornaram banalidades, e os incêndios criminosos tem sido notícia cada vez mais frequente na mídia.

Na verdade, hoje, a intolerância tem sido disseminada por líderes políticos e religiosos; tudo porque a intolerância, ou não suportar alguém e não querer fazê-lo, tornou-se uma arma poderosa com vistas a fazer aliados de toda sorte. Assim como homofobia, transfobia, racismo, misoginia e outras formas de intolerância são verdadeiros crimes que só fazem incitar a violência, a desumanidade e a segregação de pessoas. 

O sistema jurídico brasileiro segue insipiente e falho, ao passo que a Lei n° 7.716 da Discriminação Racial e Estatuto da Igualdade Racial Lei N° 12.228 não conseguem atender de forma adequada esta e outras demandas do gênero, uma vez que sua aplicabilidade resta prejudicada e a grande maioria dos casos ficam impunes, ou são tipificados como outros crimes, por existir uma certa confusão em sua apuração pois confunde-se liberdade de expressão com discurso de ódio carregado de palavras agressivas e tratamento diferenciado e restrito de acordo com determinada religião ou raça. Insta ressaltar que as leis anteriormente sempre possuíram a função de assegurar a dominação branca sobre a população negra. 

Ainda que não haja um discurso direto de ódio, algumas seitas evangélicas disseminam diariamente o ódio aos adeptos e elementos das religiões afro-brasileiras, ou seja, ainda que não incitem seus fiéis a agredir outras pessoas, eles incutem no psicológico dos mesmos que tais “demônios” são responsáveis pelo mal e o sofrimento da humanidade e que devem ser combatidos, pois “é dever do cristão combater o inimigo”. Estes tipos de mensagens corroboram para que o fiel acredite que os Orixás e entidades das religiões afro-brasileiras são de fato demônios, e seus adeptos são adoradores deles e, portanto, devem ser eliminados.

Renomadas pessoas, brancas, da alta sociedade, se envolveram na religiosidade Africana, mas isso pouco mudou a concepção enraizada na sociedade de que tal prática é contrária as “leis criadas por Deus’’. Os agressores passaram a disseminar as inverdades do tempo da escravidão e os Orixás e guias das religiões afro-brasileiras voltaram a ser associados aos demônios. Contudo, se esquecem os propagadores de tais absurdos que o demônio é uma figura própria que só existe no cristianismo. Na religiosidade afro-brasileira não existe a concepção de inferno, diabo e pecado; os seus devotos são os principais responsáveis pelo próprio destino e precisam zelar pelo ìwà rere (bom caráter).

As seitas corroem de tal forma o psicológico dos fiéis e os induzem ao preconceito, que os mesmos acreditam que estão em “guerra santa” e que devem eliminar, a todo custo, “a obra do inimigo” e os adeptos do “demônio”. Isso explica os ataques gratuitos, as destruições de terreiros, as inúmeras ofensas e as ameaças de liberdade ao culto que diariamente atingem os candomblecistas e umbandistas.

É inconcebível que em uma sociedade plural como a nossa, nos dias de hoje tenhamos pessoas que precisem negar sua identidade religiosa por medo de represálias, no trabalho, na escola, na sociedade como um todo, pois há casos de isolamento estudantil, humilhações e agressões pela internet, demissões e afastamento de profissionais adeptos da religião. Os casos de intolerância em sua maioria não são amplamente divulgados e são poucos os que são registrados e denunciados, tornando-os juridicamente inexpressivos. 

Contudo, podemos concluir que o Racismo é a base da Intolerância Religiosa em nosso país, e não há registro de nenhum outro grupo religioso no Brasil que enfrente tanto desrespeito e perseguição. O negro deixou de ser um produto, para se tonar um ser humano marginalizado juntamente com sua cultura e práticas afro-religiosas consideradas abomináveis e primitivas, por não seguirem os princípios eurocentristas, perante os olhos da sociedade brasileira após a abolição. Não podemos nos enganar, mas as sequelas de 358 anos de escravidão reverberam entre nós. 

 
Por Douglas Carneiro – Sobalojú Fákáyòdé
Homem Preto de Candomblé e Ifá, contrariando as estatísticas. Pós-graduando em História, Cultura Afro-brasileira e Indígena. Especialista em Direito Constitucional, Ativista de Direitos Humanos e Diversidades e na batalha antirracista.

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