*Por Gabriellê
Quando criança, eu sentia algo que não sabia explicar. Não me via nos livros, nas bonecas e na maioria dos desenhos e, se tinha alguém parecido comigo, poucas vezes era a protagonista. Eu me olhava no espelho e não entendia. Eu ia para a escola e não entendia. Tinha um vão dentro de mim que só mais tarde fui entender como uma consequência do racismo que, desde cedo, seguindo uma lógica de educação eurocêntrica, nos fez acreditar que éramos feias, que nossos antepassados tinham menos história ou conhecimento, que estávamos designadas a ser coadjuvantes e não protagonistas.
Notícias Relacionadas
Saudade do tempo em que a TV era branca? Um chamado à diversidade e inclusão na teledramaturgia brasileira
Masculinidades negras: a armadilha da hipersexualização
Pois bem, anos se passaram e aquele vão que eu sentia dentro de mim começou a ser aos poucos preenchido quando comecei a conhecer mais da nossa história, vasculhando tudo o que eu podia para também saber mais da história da minha família. A música preta teve um papel fundamental nisso. Sempre amei ouvir Djavan, também sentia algo que não sabia explicar, mas que era um misto de admiração com vontade de morar dentro das canções que eu ouvia, e que de alguma forma, também preenchiam o vão em mim. Os sambas, pagodes e coreografias de axé que eu fazia com minha irmã e meu primo, somados às batidas de funk, ao meu pai tocando violão e cantando com sua voz mansa, e às vozes das minhas tias cantando louvores, me tocavam e ecoavam dando preenchimento a esse vazio em mim.
Na música, eu finalmente me senti fazendo parte, senti que eu cabia ali também, que minha voz se encaixava com as dos que vieram antes, e possivelmente com os que estariam por vir. Eu não precisava refletir muito sobre isso, eu simplesmente sentia. Talvez essa sensação foi o que me conduziu nos anos seguintes a trabalhar como educadora pelo viés da arte, e principalmente da musicalidade preta.
Os cânticos vissungos, as loas de maracatu, a nota blues de um negro espiritual, a força de um partido alto, a magia das cirandeiras, os improvisos do jazz, as melodias do pagode, as rimas de um rap ou de uma embolada, tudo isso e mais ecoam a história, a força e a beleza que há na trajetória do povo preto. Eu vejo e reconheço por meio da música, da arte e da educação, uma possibilidade de recontar a história pelo nosso viés e também de ressignificar o nosso presente, além de imaginar futuros mais dignos.
Como artista-educadora busco levar essas referências para as aulas de música que dou e tenho vivenciado trocas incríveis. Um dos lugares onde trabalho como educadora de música é a Associação Vida Jovem, que tem um projeto de cultura voltado para adolescentes das regiões do Ipiranga, Heliópolis, Parque Bristol, Jardim São Savério e entornos. Levar o Hip Hop, especificamente o rap, paras as nossas aulas é sempre muito potente, pois os convida a falarem sobre suas vivências, seu contexto, seus territórios, suas raízes e também de suas particularidades. Não necessariamente todos que foram meus alunos e passaram por uma oficina de rap vão querer se tornar MC, cantor ou músico, mas eu espero que o fato de exercitarmos a escrita e fala sobre a nossa história, sobre quem nós somos, o que gostamos ou não, quais os nossos sonhos, contribua para o processo de autoconhecimento e afirmação de cada um.
Mostrar e exaltar compositores e compositoras negras, musicistas, gêneros musicais, histórias de resistência, valores e heranças culturais, é muito mais do que suprir a valorização cultural da população preta e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira, mas é fundamentalmente ecoar caminhos possíveis dentro de nós, lugares de pertencimento, nos reconhecer tanto quanto potência coletiva, quanto individual.
Hoje, com 24 anos, acredito que a arte e a educação quando caminham juntas, se tornam uma ferramenta poderosa. Enxergar por outras perspectivas, questionar a lógica branca, eurocêntrica e hegemônica, espalhar histórias de luta a fim de nos encorajar, resgatar o orgulho de ser quem somos, criar imaginários mais bonitos onde possamos existir para além da dor, não é um trabalho simples. Entretanto, pelos que vieram antes de nós e semearam coragem e fé em nós e nos nossos sonhos, isso se torna uma realidade possível. A educação por si só, tem de ser antirracista, ou ela simplesmente não está educando, e sim mantendo uma estrutura hegemônica que nunca nos coube e cada vez menos será engolida.
Gabriellê é cantora, compositora e arte-educadora da zona Sul de São Paulo.
Notícias Recentes
Mostra que homenageia Léa Garcia estreia no CCBB Rio com exibição de 15 longas e curta-metragem
Aisha Jambo, Lua Miranda e Tony Tornado estrelam especial "Hoje é Dia das Crianças" na Globo