Existe relação de afeto entre os homens pretos?

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Existe relação de afeto entre os homens pretos?
Nappy
Nappy

Sendo uma mulher preta, eu não poderia responder tal pergunta, todavia, essa questão pairava na minha mente. Entre nós, mulheres, somos criadas e condicionadas desde criança a cuidar umas das outras. Temos uma “permissão” para demonstrar emoção, tocar, trocar carinho e afeto. Dificilmente somos reprimidas por demonstrar tais sentimentos, e quando mais novas, ninguém falou “pare com isso, que não é coisa de menina”. Hoje, nos encontramos com saudade do afeto. Um abraço, sim, aquele abraço trocado a cada encontro, passou a ser a maior de nossas outras faltas. E passei a ter uma reflexão: como está a relação de afeto entre os homens pretos? Como isso se dá? Compartilham seus sentimentos? Conversam sobre suas dores e amores? Como está sendo a solitude de um isolamento social que por muitas vezes se transforma em solidão? O quanto estão conseguindo quebrar crenças e ressignificar as questões que fizeram parte de sua formação? Pra desenvolver mais essa reflexão, convidei o Fabio Sousa, para escrever esse texto comigo. Fabio é Psicoterapeuta Junguiano e criador do coletivo Ressignificando Masculinidades, provoca sempre discussões sobre as diversas masculinidades possíveis.

O que é ser homem? O que é ser um homem preto? Essas são daquelas questões impossíveis de se chegar a uma resposta que contemple a todos. A construção da ideia do que é ser homem é algo subjetivo e sofre atravessamentos de experiências pessoais, culturais, sociais, estéticos, midiáticos e também raciais.
Logo na infância, é muito comum meninos escutarem o que eles não podem ser ou fazer para serem homens, esse entendimento se dá muito mais pela exclusão do que pela inclusão de atributos empregados na construção desse ideal masculino. Frases do tipo “homem não chora”, “isso não é coisa de homem”, “fala que nem homem”, “anda como homem”, “você é o homem da casa”, dão o tom do entendimento de como meninos são direcionados a agir para serem reconhecidos como homens. Tais direcionamentos apontam para o caminho de que para ser homem, os meninos devem ser fortes, reprimir suas emoções, não se mostrarem sensíveis, assim como se afastar de tudo que é colocado como feminino, o famoso “isso é coisa de mulher”, que mais adiante tem o potencial de se transformar no “isso é coisa de viado”, que além de colaborar com a desvalorização das mulheres e para a homofobia, esse último contribui para a ideia equivocada de que a heterossexualidade é a única orientação sexual possível para os homens. 

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De um lado oposto, a agressividade, a raiva, o uso da força física para resolução de problemas, parecem ser justificados como comportamentos genuínos dos meninos. Aqui entram em cena o “resolve que nem homem”, “se apanhar na rua, leva outra surra em casa”.

Todas as aspas citadas acima tomam formas diferentes de transmitir as mesmas ideias e em contextos distintos, acompanhando os meninos durante seu crescimento até a fase adulta. Tais experiências acontecem de forma sistemática e ostensiva podendo ser no ambiente familiar, escolar, na rua, no trabalho, nas amizades, colaborando de forma equivocada para o entendimento de uma forma única de ser homem, baseada num padrão machista e patriarcal, que emprega a heteronormatividade, a competitividade, o poder, a dominação e o controle de forma violenta com as outras pessoas e consigo mesmo. 

Somando-se a tudo isso, vivermos numa estrutura racista adiciona mais um elemento nesse ideal de masculinidade, a branquitude. Portanto, o homem ideal, é o homem branco. As masculinidades dos homens Pretos, pertencem ao lugar do não reconhecimento pleno, da não aceitação plena, da reprodução de comportamentos aprendidos para também serem reconhecidos como homens, como aponta o professor Rolf Malungo de Souza: “(…) a masculinidade é uma experiência coletiva em que um homem busca reconhecimento através de práticas com as quais conquistará visibilidade e status social perante seu grupo.”  

Quando Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, afirma que “o negro não é um homem”, evidencia o padrão do ideal do homem branco, e mesmo que homens Pretos performem a masculinidade hegemônica, ainda assim serão homens Pretos. “De um homem exige-se uma conduta de homem; de mim, uma conduta de homem negro – ou pelo menos uma conduta de preto.” (Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas, 1952). As masculinidades Pretas sofreram e sofrem um processo de estereotipização, recheada de preconceito, discriminação e racismo. As representações de homens Pretos na literatura, teatro, cinema e televisão são baseadas em conceitos racistas preestabelecidos: eles costumam ser apresentados como pessoas primitivas, preguiçosas, selvagens, de má índole ou superviris. A repetição sistemática desses estereótipos contribui para a criação e manutenção de um entendimento coletivo do que é um homem Preto, assim como homens Pretos podem introjetar tais valores à sua personalidade. Alguns buscam subverter estereótipos para aspectos de aceitação e pertencimento, como o garanhão, o fetichizado, hipersexualizado, bom de cama. A objetificação de corpos pretos está relacionada ao passado escravocrata, em que o homem Preto escravizado era avaliado a partir de seus aspectos físicos. Ainda hoje o homem viril e bom de cama permeia o inconsciente coletivo acerca de homens Pretos, sendo reduzidos a imagem simbólica de um pênis, animalizando e desconsiderando atributos humanos desses homens. A identificação com esse homem objeto é um caminho para a solidão de homens Pretos, uma vez que ocupam apenas o lugar de satisfação sexual do outro, muitas vezes mulheres e homens brancos. Mesmo a masculinidade hegemônica sendo pautada em categorias de exclusão, vivemos em sociedade, em relações de classe, gênero e raça, então, em algum nível, essa é uma masculinidade que também serve aos homens Pretos, uma vez que o machismo, em muitos casos, pode ser uma das únicas possibilidades de ocupar uma posição de poder para homens Pretos. 

Todo esse sistema contribui para a construção e manutenção de relações embrutecidas, pautadas pela competição predatória e distanciamento afetivo. Fábio reforça o quanto homens Pretos precisam conversar sobre tudo isso, sobre como também são afetados por um ideal de masculinidade que não os contempla, para assim, construir novas narrativas, pautadas na alteridade e com atitudes positivas em relação às mulheres, LGBTQIA+ e a si próprio. O afeto positivo entre homens Pretos é uma revolução num sistema que nos mata e nos coloca uns contra os outros. 

Abrimos aqui um canal de escuta e de troca. Procurem uns aos outros, conversem, troquem sobre anseios e conquistas. Demonstrar afeto é tão importante, você está aqui e está vivo, então construa novas histórias. Precisamos criar novas narrativas, e você faz parte desse processo, então abra as portas e as janelas.

Lembre-se que o Amor Preto é resistência e revolução!

Fontes e referências

Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas – Ubu 2020

Henrique Restier e Rolf Malungo de Souza (organizadores), Diálogos Contemporâneos Sobre Homens Negros e Masculinidades – Ciclo Continuo 2019

JJ Bola, Seja Homem: A Masculinidade Desmascarada – Dubliense 2020

Fabio Sousa @ressignificando_masculinidades @fabiosssousaa

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