Você já ouviu falar em estima racial? A primeira vez que escutei esse termo foi em um vídeo do historiador Robin Walker para o canal ‘Centre of Pan African Thought, onde ele explica a diferença entre estima pessoal e estima grupal/racial, contextualizando o processo de apagamento da história Africana.
Robin conta que para o processo de colonização ser bem-sucedido, os colonos precisaram fazer parecer que a dominação estava sendo feita a ‘ninguém’. Ou seja, era fundamental – para os conquistadores – que os corpos negros fossem percebidos como ‘coisas’ e isentos de qualquer importância. Isso evitava qualquer impulso contrário a escravidão e eliminava a culpa cristã.
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Se pensarmos bem, é meio óbvio que não é possível escravizar ‘alguém’, afinal de contas, uma pessoa que você acredita ter sentimentos e alma não pode ser tratada como mercadoria, certo?
Por isso, a ‘coisificação’ foi – entre diversas outras – uma estratégia utilizada para naturalizar a escravidão, para fazer com que os povos africanos fossem lidos pelos brancos como propriedade, como peças, bens-materiais ou algo que o valha. Porque assim, lendo os corpos africanos como mercadoria, eles se isentavam da condição de pecadores, por exemplo, já que Deus não ficaria nada feliz com a tortura de seus filhos, eles também se autorizavam a cometer as mais bárbaras violências já que corpos negros não possuíam almas, etc, etc, etc…
Vou parar por aqui porque sei que começa a dar enjoo! Mas podemos nos aprofundar mais em um próximo post.
Essa foi uma explicação bem curta e sem muitos detalhes. Apenas para dar um pincelada no contexto e entendermos melhor a teoria de Robin.
Inevitavelmente a pergunta que fica no ar é: Mas como os europeus conseguiram animalizar os povos africanos e perpetuar essa dominação até os dias de hoje? Um povo que conhece a sua história (como os africanos conheciam) e que vive a sua cultura (como os povos originários vivem), não pode ser resumido a nada!
Pois é, mas não foi de repente que o massacre se instalou e não é do nada que ele se perpetua até os dias atuais. Entre diversas outras ferramentas (como a violência física que falamos mais acima) a estratégia de apagamento foi a estratégia que mais corroborou e ainda corrobora para a manutenção do sistema colonial até os dias de hoje.
Para não sairmos muito do tema, vou recapitular e seguimos. Até aqui falamos que saímos de África como seres humanos mas chegamos aqui como objetos, fomos ‘coisificados’ durante a escravização e a perpetuação da colonização só foi possível por conta do apagamento da história do nosso povo.
Vou explicar melhor:
Todo registro sobre a história africana foi queimado e apagado pelos colonizadores. E isso não se resume apenas a materiais físicos, como livros e impressos, o apagamento se estende também aos conteúdos simbólicos e imateriais. No processo de colonização, éramos impedidos de falar nosso idioma natal e forçados a aprender português, por exemplo. E se falássemos nossas próprias línguas, éramos torturadas.
Éramos proibidos de praticar a nossa religião, separadas de nossas famílias, nossos filhos e filhas eram vendidos, o estupro era comum, etc…existiam tantas formas de punição, violência, tortura e manipulação que não é possível abordar todas em apenas um texto. Mas todas tinham como objetivo nos manter animalizadas, escravizadas, presas e distantes de quem realmente somos.
E sobre a continuação dessa opressão, Walker fala:
“INFELIZMENTE QUANDO A NOSSA HISTÓRIA É APAGADA, EM ALGUM MOMENTO ELA REALMENTE DEIXA DE EXISTIR NO NOSSO IMAGINÁRIO PORQUE JÁ NÃO EXISTEM NEM MESMO AS LEMBRANÇAS PARA SE LAMENTAR A PERDA. JÁ NÃO SE SENTE MAIS FALTA, É COMO SE ELA NUNCA HOUVESSE EXISTIDO”.
E se você chegou até aqui, pode estar se perguntando: Mas o que isso tudo tem a ver com estima pessoal e racial? Vamos amarrar tudo agora.
Robin fala que a relação com a imagem de uma pessoa negra se divide em dois conceitos: a estima individual, que é imagem que ela faz sobre si mesma e a estima grupal(ou racial) que é a imagem que ela faz sobre seu povo e sobre a sua história.
A estima individual já conhecemos bem né? é a avaliação subjetiva que o indivíduo faz de si mesmo, comumente chamado de auto-estima. Já a estima grupal, de acordo com o historiador, se refere a avaliação que o indivíduo faz do seu grupo, é a admiração e o respeito que a pessoa tem por outros indivíduos de sua etnia.
Ele reforça que esses dois tipos de estima são totalmente diferentes, uma pessoa pode, por exemplo, ter sua auto-estima elevada, pensar muito bem a respeito de si mesma e ao mesmo tempo, desacreditar de outras pessoas que se parecem com ela.
E por isso é importante entendermos como aconteceu todo esse processo de queima da nossa história, Robin acredita que não conhecermos quem somos e de onde viemos é o grande motivador da falta de estima racial. Como vamos valorizar nosso próprio povo se não conhecemos a nossa história? como vamos formar um elo poderoso entre nós se o que nos apresentam era a passividade dos nossos antepassados escravizados quando na verdade existiram incontáveis revoltas? Como saber sobre nossa nobreza se os arquivos foram queimados? como entender a nossa força e união que nos mantiveram vivas?
Os poucos registros que ainda existem não são apresentados a nós durante a nossa formação, não nos ensinam história africana nas escolas (e nem nas universidades). A primeira vez que descobri que existiam livros escritos por ex-escravos, por exemplo, e que existiam livros de filosofia africana, eu estava mais perto dos 30 do que dos 20.
Walker afirma que, justamente este, pode ser um dos motivos que mais promovem o ódio entre pessoas negras, brigas constantes, discussões e a inabilidade de manter relacionamentos saudáveis. Por conta da ausência de equilíbrio de alguns indivíduos que ainda que possam ter altíssima admiração por si mesmo, nutrem baixíssima ou nenhuma admiração pelo seu povo.
Neste momento, me lembrei da tese da Gwyneira Ledford, professora americana que escreve sobre as nuances de viver sua interseccionalidade sendo uma mulher negra moradora do sul dos Estados Unidos. Ela diz:
“Nós (pessoas negras) estamos traumatizadas por atos de violência, mortes inesperadas ou por uma imprevista experiência de ruptura social. Nós estamos traumatizados individualmente por experiências diretas onde um evento abruptamente impacta nossa psique. Em outros casos, os traumas ocorrem indiretamente, lentamente penetrando a consciência daqueles que o sofrem. Isso impacta negativamente os vínculos que, antes, criavam um senso de comunidade. Independentemente da forma do trauma (seja individual ou em grupo), ele resulta na remoção ou desparecimento de aspectos saudáveis das pessoas e geralmente apresentam ainda mais componentes destrutivos na psique do indivíduo.”
Neste trecho, a gente percebe a força com que as experiências de violências (diretas e indiretas) impactam nossa consciência, nossa mente ou usando o mesmo termo, nossa pisque. O entendimento de quem somos e do lugar o qual pertencemos é atravessado pelas inúmeras vivências traumáticas que experimentamos ao longo de nossas vidas.
Ainda quando crianças, a grande maioria de nós, experimentou crueldades físicas ou simbólicas ou ambas, e essas agressões nos acompanham por toda a nossa vida, dificultando o exercício de nossa plena humanidade, comunicação e relacionamento social saudável.
Gwyneira completa:
“As emoções tumultuadas que cercam as circunstâncias são geralmente caóticas demais para serem mentalmente processadas, mais ainda para serem articuladas. Além deste obstáculo, barreiras raciais dificultam a articulação dos sentimentos associados a nossa experiência racial”
Ou seja, o ambiente externo não é saudável e nós estamos em constante movimentação com esse exterior, que nos apresenta uma estrutura gigantesca com seus pilares fincados em opressões acumulativas, como o racismo e o patriarcado. Nesse diálogo com o mundo a nossa volta, negociamos a nossa identidade em tempo integral e lutamos pela sobrevivência e pela vida do nossos corpos emocional, sentimental e físico a cada novo dia. Quanto nos resta de energia para cuidarmos de nós mesmas? Como podemos entender e articular tudo isso que nos atravessa brutalmente?
Nos últimos tempos, aprendi a diminuir a expectativa e fé nessa barganha, eliminá-la me parece impossível agora mas tento reduzi-la a ponto de poder formar a minha própria ideia sobre mim mesma, decidir quem eu sou e quero ser e caminhar em direção a uma identidade positiva.
A solução que Walker propõe para elevar a estima racial é através do conhecimento e da reconexão com a nossa história. Ele acredita que quando estudamos a história contada pelos nossos ancestrais, é possível se orgulhar de quem somos e éramos, e assim, transformar o olhar pelas demais pessoas que pertencem ao nosso mesmo grupo.
Ledford tem uma pensamento parecido para resolução do problema, ela acredita que:
“Quando nós levamos em consideração o contexto racial e cultural, somos capazes de entender melhor nossas identidades, auto imagem e percepções pessoais que continuam definindo quem somos e sustentam os vieses predominantes na sociedade”
Nesta tese, ela também se lembra das palavras de Bell Hooks que nos dá um caminho:
“É importante que os indivíduos transformem suas consciências para acabar com o sistema estrutural da supremacia branca, e essas lutas individuais devem estar ligadas a um esforço coletivo.
É um caminho individual mas que é abraçado e apoiado pelo coletivo, Se não fizermos esse esforço juntas, não moveremos. Ela continua:
“Ao transformar as minhas experiências, pensamentos, leituras e reflexões em uma dissertação, outros podem ser informados e/ou inspirados. Então esse trabalho não só me afetará, mas também se estenderá aos membros da minha família, meus alunos e colegas educadores”
E trazendo esse ensinamento da Bell para a vida de cada uma de nós, podemos usar todo espaço que ocupamos para informar e inspirar através de quaisquer atividades que estejamos fazendo, online ou offline, no corporativo, nas artes, na educação (e dentro das infinitas possibilidades) . Primeiro transformamos a nós mesmas e damos as mãos, para juntas, transformarmos o mundo.
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