No capítulo do último sábado (21), a atual novela das seis da Rede Globo, “Nos Tempos do Imperador”, exibiu uma cena que ultrapassou os limites do aceitável no mundo da ficção. Pilar (Gabriela Medvedovski), uma jovem branca, busca moradia na Pequena África após a viagem de Luísa (Mariana Ximenes). O local serve de acolhimento e proteção para negros livres, ex-escravizados e fugitivos. Então Dom Olu (Rogério Brito), o Rei da Pequena África se contrapõe à ideia, explicando que a moça conseguirá facilmente outro lugar para se abrigar, ao contrário dos muitos negros que procuram refúgio por lá.
O que se segue é um diálogo, no mínimo, desconexo com a realidade da época que a novela retrata. O namorado da moça, Samuel (Michel Gomes), não concorda com a resolução de Dom Olu e solta o seguinte argumento:“Só porque você é branca não pode morar na Pequena África? Como queremos ter os mesmos direitos, se fazemos com os brancos as mesmas coisas que eles fazem com os negros?”, questiona o rapaz que na trama é filho de uma mulher violentada por um coronel.
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O personagem de Gomes acusa um refúgio negro de estar discriminando uma aspirante à médica, jovem branca, vivendo em tempos de escravidão. As roteiristas não estavam satisfeitas e colocaram na cabeça da moça uma consciência dos próprios privilégios que nem no século XXI pessoas brancas possuem: “Em seguida, Pilar dá uma lição sobre privilégios, reiterando a fala de Dom Olu: “Eu com certeza vou ter oportunidades de conseguir qualquer coisa, muito mais do que aquela menina, porque sou branca. E os brancos têm tudo, mesmo quando não têm nada. Já com os negros, não é bem assim”. Samuel arremata: “Isso tem que mudar. Brancos e negros têm que conviver como pessoas. Só, nada mais”, diz a moça.
Thereza Falcão, autora de ‘Nos Tempos do Imperador’ junto com Alessandro Marson, se desculpou pela cena em que Samuel sugere que Pilar sofreu “racismo reverso” na novela após a sequência ter repercutido negativamente na internet. Ela classificou a cena como um “erro grosseiro”. Em postagem do influenciador Ad Júnior, Falcão comentou: “Pedimos muitas desculpas. Eu mesma quando vi a cena aqui em casa, falei: o que foi isso? Todos os capítulos que vão ao ar até o 24 foram escritos em 2018, gravados na ampla maioria em 2019. Na época não contávamos com uma assessoria especializada, o que só aconteceu no ano passado, com a entrada do [pesquisador de cultura afro-brasileira] Nei Lopes. Hoje assisto a muitas cenas com uma sensação muito longínqua”, justificou ela.
Desde o primeiro capítulo a novela tem dado dicas de que seguirá um caminho com promoção das figuras da realeza e enaltecimento de personagens brancos como bastiões morais plenamente conscientes de como a escravidão é ruim. Ainda que não haja compromisso com a historicidade, há uma ausência de respeito com os debates ocorridos abertamente por diversas personalidades pretas e inclusive aos atores negros que precisam desempenhar certos papéis para viver. Logo na estreia há um amor instantâneo entre um negro fugitivo e uma moça branca e uma cena bem cafona de uma mulher branca segurando um bebê preto nos braços sob olhares admirados de homens e mulheres pretos.
As novelas de época da Globo nunca se preocuparam com o fato de tratarem pretos como adereços da trama, que parecem que estão lá por obrigação de representar os escravizados. Isso quando não aparecem como capatazes fiéis ou alvo de tentação sexual de sinhás e coronéis,mas em 2021 essa narrativa cansada poderia ser revista com uma simples consulta a historiadores e ativistas que vem fazendo o trabalho de forma ímpar nas redes sociais, na literatura, no jornalismo, etc.
Não há desculpa que justifique. Só quando vierem os capítulos escritos este ano poderemos ter uma ideia de para onde essa trama vai caminhar.
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