Na semana em que o rapper Projota foi eliminado do Big Brother, uma pesquisa feita pela Central Única das Favelas (CUFA) e o Instituto Data Favela e Locomotiva do Rio aponta que mais 80% das famílias que vivem em favelas dependem de doações para se alimentar.
O número médio de refeições por dia desta população é 1,9. Ou seja: ou café da manhã e almoço, ou almoço e jantar, ou lanche e jantar. Sempre uma coisa OU outra. Nunca tudo. Sempre quase nada.
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E o que uma coisa tem a ver com a outra?
Projota já foi tarde do horário nobre por inúmeras questões. Mas, na semana anterior a sua saída, para coroar uma série de declarações que o elegeram o fresco da casa em todo os sentidos, ele chamou um prato que é quase uma paixão mundial, o strogonoff, de bosta. Na época, o contexto era uma conversa com Caio que defendia o prato russo, enquanto Projota rechaçava. Na sequência, Caio insiste que ele não gosta porque nunca experimentou o dele. E Projota responde que “é tudo a mesma bosta”. Não bancou comer o que tinha na “xepa” e ameaçou a sair do programa caso “passasse fome”.
Será que dá mesmo pra bater no peito e dizer que é muleque de vila, cria da comunidade e desdenhar de comida a esse ponto? Sem nenhum peso na consciência?
Não consigo descrever como uma frase dessa soa para quem já passou fome, quem não vai ter o que comer hoje em muitos becos do Brasil. Nunca vivi isso no pale. Embora tenha sido assombrada por esse fantasma durante toda a minha infância. Esse era o trauma da minha mãe que repetidamente dizia “vocês não sabem o que é passar fome, o que é não ter nada pra comer, viver de canjiquinha e dar a sorte de encontrar marisco na praia quando a barriga estava vazia”. Ela, minha avó e minhas tias viveram isso durante anos na geração passada e isso ressoa toda vez que eu vejo um desperdício, encontro alguém pedindo algo ou simplesmente entro numa cozinha pra preparar a comida que posso comer.
Projota não é o primeiro nem será o último fresco que se dá ao direito de nem experimentar algum tipo de comida, que nutre nojo e fala mal. E nem a ter espaço pra assumir isso em rede nacional.
Um de meus passatempos preferidos na quarentena é assistir a alguns programas culinários. Tinha tudo pra ser um momento relaxante, instrutivo e gostoso… até aparecerem as pragas orgulhosas do que não comem ou não cozinham.
Num desses episódios, um rapaz, além de ser chato pra comer, não cozinhava nada, não entrava na cozinha, dependia da namorada para se alimentar e o pior: não sabia diferenciar uma abobrinha de uma cebolinha.
E eu fico me perguntando: que tipo vida privilegiada uma pessoa leva para se sentir no direito de não saber a diferença entre um alimento e outro. Ele também não sabia o que era um pimentão. Você sabe o que é um pimentão? Ele não.
Não saber sobre comida quando se come, pra mim, é coisa de gente mimada que tem gente pra fazer. Resquícios de um país escravocrata.
Num outro episódio recente, a história era sobre um rapaz que no auge de seus 27 anos, não comia nada que não fosse fast food. O pai o indicou, apostou que ele não comeria e no fim das contas, o menino comeu um pato com abóbora e jiló e voltou pra casa. Mas só depois de irritar a audiência e esmerilhar muito a comida no prato de um lado pro outro.
Ele me lembrou três amigos de famílias diferentes cujo orgulho de contar que só comem batata frita, hambúrguer, bife ao alho e sal, macarrão e nhoque sem molho já testou minha paciência inúmeras vezes, inclusive na hora de escolher um menu no restaurante. Ouso dizer que a família é a culpada. De um lado a mãe de gêmeos e do outro a esposa dedicada que faz todas as vontades.
E daí eu me pergunto: é trauma? Não é. É um privilégio triplo.
Dentro do meu quadradinho do preconceito, só tem uma coisa que irrita mais que ser chato pra comer: ser chato pra comer e não cozinhar e ainda demonizar ou criticar quem ama uma cozinha. Tenho uma amiga de anos que não gosta e conjuga o verbo odiar quando tem que entrar na cozinha. Nem sei mais se é minha amiga. Não dá pra ser. Me tornei intolerante com a falta de sensibilidade dos outros. Sim, porque declarar ódio a comida, cozinha e cozinhar publicamente num momento desses, é sintoma de um estado de insensibilidade.
Qualquer pessoa que fale qualquer coisa contra comida ou contra o trabalho que é cozinhar aparenta privilégio, infantilidade, alienação e ranço escravocrata de quem tem quem faça sempre.
Volto ao ponto inicial.
Tem gente passando fome desde que o mundo é mundo. Mas entre 2017 e 2018, a fome nua e crua deu conta de 10 MILHÕES e 300 MIL pratos no Brasil.
Dois bilhões de pessoas vivem num estado de insegurança alimentar no mundo todo.
No Brasil, o número é de 43 MILHÕES na mesma situação. Mais de 7 milhões em situação grave. O que significa que milhões de pessoas vivem uma incapacidade de ter acesso a alimentos seguros, nutritivos e suficientes o ano todo. Abobrinha, pimentão e cebolinha, entende?
Se alimentar saudavelmente é um desafio pra mais de 14, 5% da população. E a anemia entre mulher aumenta a cada ano e quase bate os 30 % da população feminina.
E todos esses dados são subestimados diante da pandemia que já completou aniversário no Brasil e no mundo. Dados da FGV indicam que, no nosso país, o vírus e a ineficiência do Estado jogaram mais 22 milhões de pessoas na pobreza nesse período. E 16% das pessoas que já eram pobres em 2019, migraram para a extrema pobreza.
Um retrato fiel da miséria, das panelas vazias em que quem tem fome não faz distinção do que comer porque não tem com o que se alimentar.
Quem é cria da favela, o tal moleque de vila, hoje, não tem tempo, irmão, pra escolher o que comer.
Para deixar os dados mais poéticos, se é que possível, imaginem que vivemos num país em que Carolina Maria de Jesus escreveu “Quarto de Despejo”, um livro sobre sua rotina diária de catar papel e passar fome em 1960. E esse livro poderia ser reescrito por ela ou por mais de 43 milhões de pessoas hoje, 60 anos depois.
“A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”, escreveu Carolina.
Enquanto ongs e coletivos como Cufa, Voz das Comunidades, Coalizão Negra por direitos, inúmeros centros espíritas e católicos estão se desdobrando para dar conta dessa conta que não fecha, me parece inaceitável que você seja uma pessoa que – não tendo nenhuma restrição alimentar – só aceite comer apenas aquilo que tem em festinha de aniversário infantil no dia a dia.
Ninguém é obrigado a nada que fique registrado. Assim como eu também não sou obrigada a achar bonitinho ou não me irritar ao ver quem tem o privilégio de comer simplesmente não comer.
Reitero que a crítica aqui passa longe de gente que tem traumas e os cultiva sem a chance de terapeuta ou psiquiatra surtirem efeito. Tenho um amigo que certa vez encontrou um besouro no feijão e depois disso nunca mais comeu comidas com molho ou escuras.
Respeito e apoio crianças daquelas que não comem carne e viralizam na internet porque querem proteger os animais. Isso é bonitinho.
Nesse mesmo espectro, 35% dos brasileiros apontam algum tipo de intolerância à lactose e evitam leite e derivados. Acontece com o glúten e os celíacos, o açúcar e os diabéticos e por ai vai…
Mas uma coisa é restrição alimentar e incapacidade. Outra coisa é escolha em meio à alienação.
Num grupo do qual faço parte no whatsapp, a pauta era essa: o que você não podia comer na infância que hoje pode? Um papo inspirado numa sessão nostalgia com a música traumática da Xuxa das frutas nos anos 1990. A quantidade de relatos sobre como as privações moldaram paladares restritivos é bizarra e entristecedora. “Eu não consigo nem olhar pra uva. Eu nunca comi uva até crescer. Morria de vontade. Hoje que posso, odeio uva assim como pizza e hambúrguer, por exemplo”. Um ódio justificado pela privação.
Como é que uma pessoa que sempre teve acesso à uva, que não criou nenhum tipo de trauma em relação à uva porque não podia comer, não tem intolerância ao paladar ácido da uva, se recusa a pelo menos experimentar uma uva? Ou, no caso do nosso amigo do programa. Se você aceita comer abóbora, jiló e pato num programa de televisão por que você não fazia isso no seu dia a dia, então?
Da próxima vez que cruzar o batente da porta da sua cozinha, leve todas essas histórias com você, principalmente os números da última pesquisa sobre as favelas.
OITENTA POR CENTO DA POPULAÇÃO DE FAVELAS, HOJE, DEPENDE DA ESCOLHA DOS OUTROS PARA COMER.
Se puder, ajudem os mais de 80 dos moradores das favelas e pessoas em situação de rua a continuarem.
Ong Voz das Comunidades
Caixa Econômica Federal
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Cufa – Central Única das Favelas
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