“Ainda há um peso maior atribuído à capacidade de liderança de pessoas negras”, ressalta doutor em Química Wallace J. Reis

A educação é de fato um agente de transformação, mas precisamos considerar os recortes quando pensamos, principalmente, nas pessoas negras, que ainda sofrem com as dificuldades de acesso e permanência no ensino básico.

Apesar disso, podemos comemorar pequenas vitórias, como o aumento no número de professores universitários negros de acordo com pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que mostrou que, de acordo com Censo de 2021, os negros corresponderam por 24,1%, um aumento significativo se comparado ao Censo anterior, feito em 2017, que mostrava quo o numero de professores universitários negros era de 16% em todo o país.

Isso mostra que um número importante de pessoas negras conseguiu superar as dificuldades de formação no ensino básico, fundamental e médio, chegando à universidade e se dedicando à formação no campo da educação. Esse é o caso de Wallace Júnio Reis.  Doutor em Química pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), parte dele cursado também na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, ele trilhou um caminho acadêmico de excelência que, por muitas vezes foi solitário quando pensamos no perfil racial da maioria dos estudantes que chegam aos níveis superiores da educação.

Foto: Arquivo pessoal

A história de Wallace chegou ao Mundo Negro pelas mãos de Úrsula Francielly, irmã do jovem de 33 anos, que hoje atua como pesquisador no Instituto Federal do Amapá. Ele nos contou sobre a importância da família para sua trajetória como estudante e como ter encontrado pessoas negras nesse caminho também o fortaleceu.

MN –  Como foi a experiência de crescer como um jovem negro de periferia? Quais foram os principais desafios que enfrentou ao longo desse caminho?

Wallace Júnio Reis – Crescendo como um jovem negro, eu sei da dificuldade existente em ocupar um lugar de protagonismo na sociedade e ser obrigado a fazer escolhas. O preconceito pesa muito para jovens periféricos, principalmente nas questões relacionadas à inserção no mercado de trabalho e o acesso à educação de qualidade. Sempre tive acesso à educação, por meio da minha família. Apesar de ser uma boa educação, infelizmente não podemos comparar o nível de qualidade das escolas públicas e particulares devido à diferença de investimento. Na maioria das vezes, precisei procurar outras fontes para agregar o conhecimento desenvolvido na escola, sempre procurando desenvolver habilidades que não estavam disponíveis no meu meio social. Aprender uma língua estrangeira, por exemplo, é algo raro para um jovem negro de periferia. Nossa dificuldade começa pelo acesso à educação, que antecede a dificuldade de conhecimento prévio necessário para desenvolver as habilidades desejadas. Além disso, poucas oportunidades são dadas às pessoas de periferia. Na maioria dos casos, uma empresa não enxerga um jovem negro de periferia como um potencial empregado com um futuro promissor.

MN – Poderia falar um pouco sobre o papel da educação em sua vida?

WJR – A educação teve um papel fundamental na minha vida. Comecei a estudar muito cedo, incentivado pela minha família. A maioria dos espaços que conquistei veio por meio da educação, principalmente o acesso a lugares que eu jamais imaginei conhecer. Por meio da educação, tive a oportunidade de morar na Dinamarca por 9 meses, um país incrível onde fui muito bem recebido e guardo excelentes recordações até hoje. Aprendi a escrever, ler e falar em inglês por meio de cursos presenciais e da internet, o que me permitiu acessar espaços e conhecer pessoas de diferentes nacionalidades. A educação também me permitiu viajar pelo Brasil para participar de eventos nacionais e internacionais, onde pude conhecer histórias incríveis de superação pessoal. Além disso, a educação me permitiu almejar uma vida melhor. Com os conhecimentos adquiridos ao longo da minha formação, posso buscar uma vida melhor e almejar cargos com posições e remunerações elevadas, proporcionando uma vida mais “confortável” do ponto de vista social.

MN – Quais foram os momentos mais significativos de sua formação acadêmica, tanto na Universidade Federal de Ouro Preto quanto na Universidade Federal de Minas Gerais e Aarhus University? Existe alguma experiência em particular que você considera marcante?

WJR – Durante toda a minha formação acadêmica, tive vários momentos significativos. Na minha jornada na UFOP, o momento mais marcante foi a minha formatura. Consegui reunir toda a minha família. Minha primeira professora do jardim de infância compareceu à minha colação de grau. Tirei uma foto com ela e com a minha orientadora de graduação, que também é negra. Acredito que poucas pessoas na vida conseguem realizar algo desse nível. Essa foto mostra que a educação pode mudar a vida das pessoas, permitindo o acesso a lugares e experiências que elas jamais poderiam sonhar. Esse contraste entre o início da formação acadêmica e um momento de conquista foi muito marcante para mim.

Quando cheguei à Universidade de Aarhus, na Dinamarca, para fazer o doutorado sanduíche, conheci uma aluna africana do Lesoto no prédio onde estava hospedado. Ela também estava realizando intercâmbio pela universidade. Até aquele momento, eu não havia tido contato com pessoas negras na universidade, apenas com pessoas mestiças. Perguntei a ela sobre a África, pois temos a ideia de um país muito pobre onde as pessoas não têm oportunidades de acesso à educação. Também perguntei a ela sobre a questão racial na África, considerando ser um dos lugares com a maior concentração de pessoas negras no mundo. A resposta dela não foi diferente daquela esperada no Brasil. A maioria das pessoas é pobre e sem acesso a uma estrutura educacional adequada. Os poucos ricos do país geralmente são estrangeiros brancos. Isso mostra que as pessoas negras enfrentam dificuldades em todas as partes do mundo. No Brasil, essa realidade não é exceção, e precisamos mudá-la o mais rápido possível.

Na Universidade Federal de Minas Gerais, o momento mais marcante foi quando tive a oportunidade de conhecer um pesquisador negro de relevância internacional. Um professor de Química da Universidade de Viena, na Áustria, uma das universidades mais antigas do mundo, veio ministrar uma palestra a convite de um professor da UFMG. Durante a palestra, foram apresentados trabalhos de extrema relevância e alta qualidade, que me chamaram a atenção pela elegância e aplicabilidade em diferentes áreas de pesquisa. Ele reservou um tempo para conversar com alunos ou professores que tivessem ideias diferentes. Durante nossa conversa, compartilhei algumas ideias e pontos que me chamaram a atenção nos trabalhos apresentados. Ele considerou minhas ideias pertinentes ao assunto e apontou algumas questões que eu não havia observado (ele era muito mais experiente na pesquisa do que eu). No final da conversa, ele me disse: “Foi muito agradável conversar com um aluno interessado, principalmente sendo um jovem negro do seu país. Continue, você tem um futuro brilhante. Quem sabe podemos trabalhar juntos algum dia?” Esse incentivo foi de extrema relevância, pois se tratava de um pesquisador negro de uma universidade renomada mundialmente. Esse episódio ficou marcado em minha jornada acadêmica, e espero ter a chance de trabalhar com ele um dia e lembrar dessa experiência.

MN – Sendo uma pessoa negra, acredita que, mesmo com toda sua formação acadêmica, ainda enfrenta muitas barreiras para se estabelecer em sua área de atuação? Particularmente, quais são?

WJR – Como pessoa negra, enfrento inúmeras barreiras para me estabelecer em minha área de atuação, mesmo com toda a minha formação acadêmica. Não é comum encontrar professores negros, principalmente em níveis de graduação e pós-graduação no Brasil. Vejo poucas pessoas negras nos eventos que frequento, sejam eles nacionais ou internacionais. Esse fato já evidencia a dificuldade de ocupação desses espaços por pessoas negras. A falta de representatividade também pode levar ao questionamento da credibilidade desses profissionais. Inúmeras vezes tive que provar minha capacidade diante de alunos e colegas de trabalho. Infelizmente, ainda há um peso maior atribuído à competência e capacidade de liderança quando se trata de pessoas negras ocupando posições no mercado de trabalho e na sociedade em geral.

MN – A Úrsula entrou em contato conosco, enaltecendo bastante o seu currículo. Gostaria que falasse sobre a relação de vocês como irmãos e se sua família o incentivou em todo o seu processo de formação.

WJR – Minha relação com minha irmã Úrsula sempre foi a melhor possível. Sou o irmão mais velho e, desde que ela nasceu, minha mãe sempre enfatizou a importância da cumplicidade e proteção entre irmãos. Sempre tivemos uma relação muito próxima, sempre nos apoiando mutuamente para facilitar a vida um do outro. O incentivo da nossa família foi fundamental em todo o meu processo de formação. Sem o apoio deles, dificilmente eu teria chegado onde estou hoje. Cresci em uma família pobre da periferia, com seus problemas financeiros e sociais. No entanto, minha família sempre foi um exemplo para mim ao longo da minha formação. Minha mãe, por exemplo, é professora atualmente, mas antes era costureira e, após eu crescer, formou-se em História. Essa situação já foi por si só um exemplo de superação e vitória, considerando as dificuldades de conciliar família, trabalho e uma graduação. Além disso, meus tios e tias mais próximos possuem formação em cursos superiores nas áreas de engenharia e saúde, então eu tinha muitos exemplos próximos de sucesso acadêmico. Sempre fui incentivado a acreditar que a educação era a única forma de mudar de vida e que o conhecimento, uma vez adquirido, é uma ferramenta capaz de promover mudanças permanentes em todas as áreas da vida.

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