Água, raça e gênero: relação de desigualdade

Texto: Juliane Sousa

As desigualdades raciais e de gênero são duas enormes injustiças históricas e ainda bastante persistentes em todas as esferas da sociedade. Quando trazemos este problema para o debate sobre o acesso à água, um direito vital, a dificuldade se acentua. Faltam políticas públicas efetivas, mas parte da solução a este desafio também está nas mãos das empresas. 

Pretos e pardos representam a maioria da população no Brasil (55%), porém também predominam na fatia daqueles que vivem sem esgoto adequado (69%). E quando se fala do acesso à água potável, este percentual sobe para 72% de quem não acessa do modo considerado apropriado. Os dados são do último Censo do IBGE, divulgados no mês passado. Além disso, mais de 16 milhões de mulheres não têm acesso à água tratada e 38% vivem em áreas sem esgoto tratado, segundo pesquisa do Trata Brasil em 2022. 

Na história brasileira, as funções sociais foram estabelecidas de acordo com a raça e o gênero. O patriarcado europeu determinou tais papéis ao controle político, econômico e social da mulher. Historicamente, as atividades domésticas foram naturalizadas de função exclusiva das mulheres, consequentemente, responsabilizadas pela procura e pelo fornecimento da água para uso das famílias, com longas caminhadas com latas cheias sob suas cabeças. 

Paradoxalmente, elas exercem quase nenhuma influência se comparada com os homens, nas tomadas de decisões, nos negócios e no estabelecimento das políticas públicas acerca da questão, que ainda são tratadas de forma técnica, econômica, política e nada social. Apesar da significativa evolução dos direitos dos negros e das mulheres, as inúmeras desigualdades ainda persistem. 

Embora as mulheres sejam maioria no Brasil, a incorporação do princípio na Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997, de “reconhecer a importância da participação das mulheres nos colegiados no Sistema Nacional de Recursos Hídricos” ainda é questionada. Hoje, elas representam somente 28% no Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) e 38% na ANA, que criou um comitê pró-equidade. Nos 12 mil espaços de participação dos 223 comitês das bacias hidrográficas no Brasil hoje, nos estaduais, as mulheres são 31%. 

Esta realidade aponta que elas não ocupam a mesma quantidade de cadeiras ocupadas pelos homens nos espaços decisórios. São vozes pouco ouvidas sem as mesmas oportunidades de participação, reflexão e discussão acerca do fornecimento, gestão e proteção da água no nosso país. Estas divisões raciais e sexuais do trabalho prejudicam a definição de instrumentos de participação igualitária e efetiva nos processos decisórios e na garantia de acesso aos benefícios da água. 

É inaceitável que uma raça e um gênero sejam mais afetados pela falta da universalização de um serviço básico à vida. Precisamos ampliar a participação das mulheres negras nestes debates. Todas nós somos corresponsáveis em trazer à marcha ações que promovam uma participação feminina igualitária e efetiva junto aos homens em posições de decisão, no desenvolvimento de políticas do setor, estratégias e gestão dos projetos.

Cabem às políticas públicas e projetos da iniciativa privada do setor de água e saneamento incorporar uma perspectiva de raça e gênero nos projetos de gestão para combater essas desigualdades e garantir este direito de acesso igualitário. Também é preciso a capacitação nas diferentes funções, considerando as necessidades específicas das mulheres em todas as tomadas de decisão associadas ao desenvolvimento e implantação dos projetos. 

O papel dos negócios

Esta conquista depende de uma intervenção multisetorial: governos, setor privado e sociedade atuando juntos. O tema deve migrar das ONGs para as mesas de debates dos conselhos de administração das empresas. Também é papel delas contribuírem com a promoção do acesso e da gestão por mulheres e homens, de modo equitativo, de água potável e adequada para abastecimento dos lares, saneamento, segurança alimentar e sustentabilidade ambiental. 

Na pauta pela equidade racial e de gênero no acesso à água, elas podem atuar na redução dessa desigualdade, alinhando suas estratégias de negócios aos ODS 5, 6 e 10 (igualdade de gênero, água potável e saneamento e redução das desigualdades). A ONU, não à toa, envolveu o setor privado na formulação da Agenda 2030. Com o engajamento dos negócios, mercados e investidores, o mundo terá mais oportunidades de avançar nos objetivos e metas.  

Sem as empresas, não conseguiremos superar estes desafios que custará caro e poderá até levar ao fim de muitos negócios. Elas são parceiras-chave para o alcance dos ODS na contribuição por meio de negócios, avaliando seus impactos socioambientais, definindo ações disruptivas, metas audaciosas, lançando mão de parcerias e tecnologias e reportando seus resultados com transparência. 

Muitas delas já compreenderam e se engajaram nesse plano de ação global. As Empresas B reconheceram a chance de fazer negócios auxiliando a solucionar problemas da sociedade. A gestão sustentável, integrada à estratégia organizacional, transforma todos os aspectos do negócio e da sua cadeia de valor, contribuindo para uma mudança efetiva de cultura e processos. Além disso, demonstra o propósito e os valores da empresa, reduz riscos e, consequentemente, gera lucro sustentável. 

Estes impactos gerados com base nos Objetivos Globais podem ser mensurados por meio da ferramenta SDG Action Manager, desenvolvida pelo B Lab e pelo Pacto Global. A plataforma facilita o alinhamento das estratégias e operações da empresa com as metas dos ODS, além de apontar riscos e oportunidades de negócios e propor metas para a construção de um plano de ação.

O Sistema B Brasil também acredita e atua pelo acesso e controle igualitário das águas como um direito fundamental de todos e de todas, assim como um fator crucial para o desenvolvimento econômico, social, ambiental e cultural. Neste contexto, mais negócios de impacto precisam compreender e assumir o seu papel de liderança na busca de um mundo mais igualitário, justo e sustentável. Pois é a partir deste equilíbrio que viabilizará o fim da pobreza e a promoção da sustentabilidade. 

* Juliane é coordenadora de Comunicação do Sistema B Brasil.

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