A relação da mulher negra com seu cabelo é algo muito singular. Nenhum outro grupo sofreu tanta pressão estética em relação à sua aparência. Mesmo hoje, onde grande parte das mulheres negras brasileiras tendem a preferir usar o seu cabelo sem interferências químicas, os fios crespos ainda sobre preconceito na esfera profissional. O Mundo Negro aproveita as reflexões do Julho das Pretas para fazer um especial inédito sobre o cabelo das jornalistas negras de TV.

A primeira entrevistada dessa série de quatro entrevistas é a analista de política da CNN, Basília Rodrigues.

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Brasiliense, Basília vem do rádio onde ninguém fazia ideia da sua aparência e há dois anos em frente às câmeras da CNN, maior empresa de telejornalismo do mundo, ela encara de cabeça erguida a missão de mostrar um bom trabalho, sem atropelar sua identidade, mesmo quando seu visual recebe críticas. “Já recebi muitos comentários racistas na internet que diziam ‘que cabelo é esse, Basília?’, ‘cabelo desarrumado’, ‘que coisa é essa?’, em tom de ironia. Foram tantas, tantas mensagens chatíssimas. Em outro episódio, surgiram denúncias anônimas de que haveria pessoas no meio jornalístico chamando meu cabelo de ‘bagunçado’, ‘desalinhado’. Algo totalmente sem sentido”, detalha a especialista em política.

Não se deixando abalar pelas críticas, Basília tem uma grande paixão pelos seus cabelos crespos, escuros e de curvatura muito definida e ter mulheres negras cuidando dos seus cabelos fez toda a diferença para ela, não apenas no sentido estético.

Confira a entrevista que Basília concedeu a nossa editora-chefe, Silvia Nascimento.

Como era o seu cabelo quando você começou a aparecer na TV. Era um estilo que você se sentia confortável para aparecer em frente às câmeras?

Tenho quase 15 anos de profissão, como jornalista que cobre Política e Judiciário. Em 2015, fiz minhas primeiras aparições em vídeo muito feliz com meu cabelo cacheado. Foi na GloboNews e na TV Brasil. Na época, eu trabalhava para rádio CBN e era muito flexível poder participar de entrevistas e análises em outros canais. Eu já usava o cabelo cacheado como hoje. Havia parado de alisar em 2012. Depois disso, nunca mais alisei e fiz escova somente duas vezes, nestes anos todos. Eu definitivamente amo os meus cachos.

Ainda no início, quais as jornalistas negras você tinha como referência não só pelo conteúdo, mas também pela estética e o que te chamava atenção nessa pessoa em termos de visual?

Minha referência de jornalista negra com cabelo natural foi Nara Lacerda, que era minha colega de redação na rádio CBN. A minha transformação em 2012 veio devido a um combo de fatores: muitos conselhos dessa amiga, aulas que eu acompanhei naquele ano sobre identidade racial na faculdade e também porque havia algumas atrizes/protagonistas de cabelo cacheado nas telenovelas da época.

Me chamou atenção ver cachos no centro do que era bonito, interessante, autêntico em novelas/capas de revista daquele ano. Do ponto de vista da normalização dessa imagem, a de uma mulher cacheada, fui muito mais motivada pelas atrizes do que, de fato, por jornalistas já que era muito incomum encontrar repórteres cacheadas que se orgulhassem disso. Nara era um ponto fora da curva. Ainda adolescente, quando decidi pela profissão de jornalista, lembro de pessoas próximas tentarem fazer eu mudar de ideia devido à realidade de existirem poucas negras de cabelo cacheado na TV. Mesmo assim, eu entrei na profissão. Porém, não imaginava fazer TV.

O cabelo crespo/natural não era tido como um cabelo de “aspecto profissional”. Como você lidou com isso ao longo da sua carreira? Sempre usou o cabelo crespo?

Eu não me importei com os outros. Me preocupava ficar feio ou não saber cuidar. Mas não passou pela minha cabeça “o que eu perderia na carreira” por voltar a ser cacheada. Alisei meu cabelo dos 12 aos 22 anos. Entrei no mercado de trabalho aos 19. Então, meus primeiros crachás ainda são da Basília de cabelo liso, médio a curto. Lembro que o cabelo estava bem quebrado nessa época. Até que vem 2012. Naquela época, eu havia passado por um acidente grave de carro e também havia começado a estudar outro curso, era um momento de mudanças, de amor-próprio também, de reconhecimento. Tudo se encaixou, desde a colega cacheada do trabalho, o meu cabelo pedindo socorro, o curso sobre identidade, as estrelas cacheadas da TV .

Aprendi muito e larguei o alisamento de cabelo. Em 2013, com 25 anos de idade, lembro que perguntei para um colega, de outra empresa em que trabalhei, o que ele achava se, além da rádio, eu fizesse reportagens de TV com cabelo cacheado. Ele disse que no exterior era possível, mas que no Brasil, naquele momento, não via essa possibilidade.

Nos EUA onde as questões dos direitos civis são bem avançadas, as jornalistas negras, em maioria ainda usam o cabelo liso e até mesmo perucas e apliques. Por que no Brasil somos diferentes? E usar o cabelo liso seria um problema, na sua opinião?

Acho que devemos ter o cabelo com o qual nos identificamos. Negras alisadas, negras cacheadas, negra com megahair, que todas sejam felizes. O que não dá é para acreditar em estereótipos equivocados do que é bonito, como se o crespo fosse “menos profissional”. Um cabelo limpo e lindo é o que vale.

O seu cabelo já foi alvo de algum comentário racista? Caso sim, o que foi feito a respeito?

Apesar de aparecer em programas de TV desde 2015, o universo televisivo se tornou uma rotina diária somente a partir de 2020 na minha vida, quando fui para CNN Brasil. Todos os dias, as pessoas me veem de cabelo solto, em um coque ou puxado de lado. Isso surpreendeu muita gente. Acredito que especialmente aquelas pessoas que limitam (ainda que no imaginário) o espaço do negro. Sou presença constante no vídeo e brigo pela notícia para sempre ter o que apresentar ao público. Cacheada, é claro. Em função disso, já recebi muitos comentários racistas na internet que diziam “que cabelo é esse, Basília?”, “cabelo desarrumado”, “que coisa é essa?”, em tom de ironia. Foram tantas, tantas mensagens chatíssimas. Em outro episódio, surgiram denúncias anônimas de que haveria pessoas no meio jornalístico chamando meu cabelo de “bagunçado”, “desalinhado”. Algo totalmente sem sentido. Em 2021, escrevi um artigo para o jornal Folha de São Paulo sobre o assunto.

Sobre quem cuidou e cuida do seu cabelo. Você sente que os profissionais sabem cuidar do cabelo natural?

Além do autocuidado, costumo ir em um salão afro que compreendeu minhas necessidades, meu cabelo. Nem todo salão sabe lidar com cabelos naturais, até mesmo aqueles que se identificam como afro nem sempre entregam o que dizem vender. Meu cabelo representa um povo, ao mesmo tempo que ele é só meu. Busco sempre o que é melhor para ele, sem cair na fórmula padrão de salão. Corto sempre com uma pessoa de confiança, tenho meus produtos prediletos e o principal: paciência. Gosto de pentear com os dedos.

Foto: Divulgação

O cabelo de quem trabalha na TV sofre com o efeito de secador, gel e outros produtos. Qual sua rotina de cuidado capilar?

Lavo com mais frequência do que gostaria por semana porque uso laquê para o cacho não cair no meu rosto durante meu movimento no vídeo. Isso exige lavar o cabelo para ele sempre estar limpo. No lugar do pente, uso os dedos e algum bom creme para ir separando os cachos e hidratando-os. E de seis em seis meses, corto à seco, como uma cascata que dá forma ao penteado. Durmo sempre de cabelo solto, às vezes uso touca de cetim, hidrato toda semana em casa. Nenhum cabelo é fácil, tem que investir creme e tempo. Às vezes esqueço de agitar um pouco a raiz para ele não ficar baixo. Odeio quando ele fica baixo.

Tem algum truque que você aprendeu no trabalho, sobre cuidados com seu cabelo, que você poderia compartilhar com a gente?

Antes de tudo, ame os seus cabelos. No trabalho, aprendi a fazer um coque abacaxi belíssimo. A Juliana Dias, que faz meu penteado, coloca dois grampos em um daqueles elásticos de escritório. Puxa um de cada lado. Você faz o coque no cabelo usando essa liga esticada para segurar, prende o grampo no cabelo, dá a volta com o elástico, prende o outro e, num passe de mágica, você está com um lindo coque. Adoro. A Juliana, justamente quem faz, prefere o meu cabelo solto. Ela diz que somos sócias do meu cabelo. Mas é ele mesmo quem decide o que quer, tem vida própria. Ele adora a Juliana uma profissional negra de madeixas aloiradas devido às luzes, tipo Beyoncé. Uma mulher negra entende o cabelo de outra mulher negra.

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