*Por Indy Naíse
Eu não aprendi a dizer “eu te amo” com as palavras. Fui criada por mãe solo, viemos da Bahia para São Paulo quando eu ainda era criança, cresci longe dos meus avós, de quem eu conheci como família, e também do meu pai, que era músico, viajava muito e só foi estar mais presente na minha vida quando completei seis anos de idade. Minha mãe, uma mulher do sertão de Curaçá, cabocla, marcada pela vida difícil que levou, não era muito de abraçar. Acho que consigo contar nos dedos as vezes que ela disse que me amava. Mas, são incontáveis os gestos de amor que ela teve por mim desde que me entendo por gente.
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Me lembro de um dia em que eu estava doente, ela me levou ao médico e em seguida ligou do orelhão da rua de casa para o patrão pedindo pra ficar cuidando de mim, e ele negou. Ela foi trabalhar chorando. Lembro da sensação horrível que era ver minha mãe chorar, e até hoje sinto da mesma forma quando acontece por qualquer motivo que seja. É o que eu chamo de conexão, o cordão umbilical que nunca é rompido.
Ela me ensinou a ser uma criança compreensiva, que entendia todas as suas limitações financeiras e nunca fui de pedir nada. Quando acontecia, e ela me dizia não, eu sempre tive o entendimento dos motivos. E teve um dia que numa ida a Pinheiros, bairro de muitas lojas populares aqui em São Paulo, passamos em frente a uma que tinha um banner enorme anunciando a venda do CD+VHS do show “As quatro estações” da dupla Sandy & Júnior. Eles eram uma febre nos anos 90/2000 e, eu que os amava, prontamente manifestei meu desejo e ela me disse que não podia comprar. Eu entendi e não fiquei triste. Dias depois, no dia do meu aniversário de oito anos, ela me acordou às 5 da manhã, horário que saía para trabalhar, e me entregou o que eu havia pedido. Eu chorei como nunca havia chorado ao ser presenteada, e não pelo presente, mas pelo o que significava. Apesar de tão novinha, eu sabia o esforço que ela estava fazendo em me presentear. Essa era uma das formas dela dizer que me amava.
Por eu ser a filha mais velha, criada apenas por ela sem uma figura paterna presente, só nós duas sabemos tudo que passamos até ela se casar novamente e recomeçar sua vida. E, só eu sei, a quantidade de coisas que ela se submeteu para me dar a vida que estava bem distante do meu alcance. Esse, com certeza, foi o gesto de amor mais dolorido que ela fez por mim. Ela só queria que saíssemos do aluguel e morássemos bem, com conforto, sem preocupações. A esperança em mudar de vida e construir uma família, se intensificou mais ainda com a chegada da minha irmã, mas o sonho da família de comercial de margarina ainda era algo distante para nós.
Minha mãe sempre tentou me proteger e garantir meu futuro, pois o da minha irmã já era garantido. Ela tinha um pai. Geralmente, filhos caçulas tem uma superproteção, mas na minha casa sempre foi o contrário. E essa era outra forma dela dizer que me amava.
Por conta de tudo que vivemos juntas ao longo da vida, muitas vezes cheguei a pensar que afeto era sentir dor, era sofrer e oferecer o mesmo ao outro. Um ciclo de violência sem fim que parte de uma visão completamente romântica e distorcida do que de fato é. Por conta disso, cheguei a pensar que o momento de escrever músicas sobre afetividade nunca fosse chegar. Sempre tive muita dificuldade em falar daquilo que achei que não tinha na minha vida. Mas, acontece que o afeto sempre existiu, eu que não conseguia reconhecer nos pequenos gestos, se manifestando de diversas maneiras que não nas expectativas que criei pelo olhar do ocidente.
Afeto entre os nossos, para além de um relacionamento amoroso com alguém, é também se conectar com outro, ter e receber cuidado, ter respeito, reconhecer as feridas, cicatrizes e limitações. É pedir licença pra entrar. É estar em comunidade e entender que somos plurais e temos nossas subjetividades. Que temos direito ao erro e, principalmente, ao recomeço.
Afeto é sentar na calçada com meus avós e explicar as fases da lua. Meu avô jurava que existiam quatro, e eu acho até bonito essa forma dele ver o sistema solar.
Afeto é olhar para as nossas crianças pretas e enxergarmos nossos ancestrais. E reconhecer, que assim como nossos mais velhos, elas merecem ser reverenciadas.
Afeto é minha mãe, com brilho no olhar, me abraçar e dizer que sou linda e que estava com saudades depois de meses sem nos vermos por causa da pandemia.
Afeto, antes de ser afeto, é construção.
*Indy Naíse é cantora, compositora e empresária à frente da produtora Filha do Trovão
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