Por Shenia Karlsson
Nos últimos dias sofremos uma avalanche de notícias assombrosas dignas de roteiros hollywoodianos. Os requintes de crueldade e o sentimento de impunidade parecem nutrientes de uma sociedade também mediada pelo discurso médico- jurídico legitimado em criminalizar uns em detrimento da proteção dos privilégios de outros. Este artigo é sobre como brancos que cometem crimes hediondos tem sua integridade física respeitada e sua humanidade preservada, ao passo que negros são aviltados em todos os sentidos da vida mesmo diante de delitos insignificantes. Para tanto, devemos analisar o histórico de criminalização de negros no Brasil e como o discurso Psiquiátrico têm sido utilizado a fim de amenizar aspectos perversos e desviantes da branquitude. Mas, o que a Psicologia tem a ver com isso? Acredite, tudo.
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A criminalização da negrura
Essa história é antiga, entretanto o ontem persiste no imaginário social hoje e influencia diretamente os dispositivos jurídicos, sobretudo a quem obtém o poder de decisão, os detentores da famosa caneta. Em linhas gerais e de forma sintética – aquém da devida atenção necessária ao tema- o advento da abolição entregou milhares de negros a toda sorte de infortúnios e nossos ancestrais foram rapidamente substituídos por mão de obra europeia, projeto higienista e de embranquecimento da sociedade brasileira e que na época tinha como projeto de nação a extinção da população negra neste país.
Foi com Antropologia Criminal de Nina Rodrigues a inauguração formal da criminalização de negros no país ao disseminar ideias racistas em que aferia aos negros um desvio inerente de conduta devido à tal suposta “inferioridade racial”. Tais ideias foram fundamentais na construção de dispositivos jurídicos alicerçados no discurso médico a fim de determinar os que deveriam sofrer sanções e o que deveriam ser poupados. Tais ideias elitistas e brancocêntricas permaneceram no imaginário social brasileiro e a consequência é a criminalização sistemática de pessoas negras de acordo com as estatísticas oficiais. No entanto, a branquitide sempre cria formas de subverter o sistema para assim isentar-se de suas responsabilidades, construindo formas diversas de usar a estrutura ao seu favor, principalmente no que tange manter suas projeções perversas e localizar no corpo negro tudo o que não suporta vê em si, como parafraseia Frantz Fanon em “Pele Negra e máscaras brancas”.
A patologização da brancura
Podemos notar o surgimento de uma relativização por parte da sociedade quando a grande mídia expõe uma notícia de um crime cometido por uma pessoa branca. O desconforto e o estranhamento produzem um mal estar e rapidamente uma narrativa é adotada: o discurso psiquiátrico.
Não é de hoje que o tema da violência obstétrica contra mulheres negras é um problema seríssimo de saúde pública no Brasil. O caso do médico anestesista Giovanni Quintela Bezerra, preso em flagrante após estuprar uma mulher negra em total situação de vulnerabilidade durante seu parto obteve grande visibilidade. Uma dentre as milhares de violências obstétricas cometidas contra mulheres negras nesse país – vide as estatísticas oficiais. O tal médico teve seu perfil psiquiátrico rapidamente construído por “especialistas” e arrastado para a posição estratégica de “incapaz”. “Foi possível identificar o ego-inflado, narcisista, não tinha empatia nem receio” disse um colega num artigo sobre o caso, “ele era estranho, não cumprimentava ninguém, era muito fechado” disse alguém da academia que o indivíduo frequentava.
De fato, uma psicologia comprometida atenta-se a não associar todo crime ou desvio a um transtorno, visto que o médico em questão parece totalmente consciente e responsável por seus atos. Nem sempre crimes, de uma forma geral, são norteados por transtornos mentais, contudo, existe uma tendência da branquitude em lançar do discurso médico-psiquiátrico quando são eles os agentes. Em psicanálise abordamos em termos de mecanismo de defesa, uma suposta negação de seus atos de crueldade e projeção de suas características negativas que deveriam ser expressadas somente por pessoas negras, vendo-se sempre como vítima e nunca como algoz. Quem é o criminoso, o perigoso, o estuprador? É o homem negro e não o branco.
Pactos narcísicos da branquitude
Notaram a delicadeza e o cuidado da delegada responsável ao dar voz de prisão ao médico suspeito? Foi um ato que chamou a atenção e assunto nas redes sociais: “o senhor gostaria de um café?”, “senhor médico branco, gostaria de dar um telefonema?”. Foram frases repetidas e apontam a diferenciação de tratamento entre negros e brancos. Não podemos esquecer que atiradores brancos são presos pela polícia estadunidense e negros mortos sem nenhum indício de perigo iminente. Mas este é outro contexto, embora tenham similaridades, afinal, temos exemplos idênticos em nosso cotidiano.
Voltando ao pacto narcísico da branquitude, afinal, o que é? É um pacto entre os brancos que visa os privilégios raciais, políticos e econômicos, e tem sua maior motivação a manutenção das vantagens angariadas historicamente segundo Aparecida Bento. Esses pactos são perpetrados e protegidos coletivamente, é um pacto de sobrevivência pelo seu caráter profundo e ontológico e construídos por atitudes conscientes e alianças inconscientes.
De acordo com René Käes “para se formar as alianças inconscientes deve-se mobilizar os processos identificatórios comuns, mútuos e compartilhados (…) as funções que elas realizam ou satisfazem a serviço da aliança são diversas: experiência de segurança, reforço de defesas ou facilitação de transgressões”.
Mudança de mentalidade
Temos muito a avançar, é bem verdade. O racismo estrutural muito bem conceituado e discorrido por Silvio Almeida, impacta diretamente a forma como os indivíduos são julgados e estigmatizados por dispositivos jurídicos, reflexos de nossas construções sociais. Nosso papel é denunciar, tornar pública essa disparidade e apontar as injustiças. Penso que é fundamental uma descolonização da mente para a saúde de nossas relações, a tal humanidade deve ser estabelecida para todos de forma equânime para que possamos avançar em nossas pautas e superar as disparidades sociais.
Shenia Karlsson – Psicóloga clínica, Co-Fundadora do Papo Preta: Saúde e Bem-estar da Mulher Negra.
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