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Por Higor Faria – Curiosamente, no dia seguinte, o G1 noticiou que o “mendigo gato de Curitiba” voltou para a clínica de reabilitação para receber alta definitiva e anunciou seu casamento. Fico feliz, parabenizo sua recuperação e desejo muitas felicidades ao lado de sua futura esposa. O que trato nesse texto não tem a ver com a pessoa, Rafael Nunes, mas com sua condição. Tem a ver com todos nós que definimos a quem nossas lágrimas e esforços serão dirigidos, a quem as oportunidades serão ofertadas e a que tipo de outros seres queremos que saiam do estado de vulnerabilidade e alcancem o de heroísmo.
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Nas matérias sobre os protestos de Florianópolis, todas as imagens mostravam como moradores de rua pessoas negras. Não duvido que a maioria das vítimas dos protestos sejam negras — 67% (Pesquisa Nacional sobre a população em situação de rua). No Brasil, somos a maioria quando se fala em espaços de vulnerabilidade.
A situação de rua tem cor pré-estabelecida: é preta.
É isso que diferencia o “mendigo gato de Curitiba” do resto dos mendigos no país. Ele é branco. E, por ser branco, é tratado de forma humana, ao passo que pessoas negras em situação de rua não recebem nem esse tipo de tratamento básico. O racismo opera assim.
Na maioria das matérias, o “mendigo gato de Curitiba” é também tratado pelo nome — ele se chama Rafael Nunes. Ser chamado pelo nome é a mesma coisa que reconhecer que o outro, independente da sua situação, é gente: que tem identidade, história e trajetória. Os pretos moradores de rua de Florianópolis de certo não têm nome. Parecido com os “lotes” de africanos escravizados que recebiam o mesmo nome quando chegavam ao Brasil — um lote de Francisco, outro de João, outro de Maria etc. Parecido também com aquele seu único amigo negro é sempre tratado por um apelido genérico — o neguinho, o negão, o pretinho. Essa histórica forma de invisibilização não é coincidência.
Ao mendigo de Curitiba é dado o status de gato porque seu fenótipo reproduz o padrão europeu endeusado por décadas. Além disso, na nossa configuração racista, a pele os olhos claros dele o colocam numa situação de não pertencimento às ruas. Afinal, naturalizou-se que negros devem ocupar esse espaço e não brancos. Em decorrência também disso, o “mendigo gato” teve o apoio e indignação nas redes sociais e nos veículos de comunicação de todo o Brasil. Dessa comoção nacional, surgiram oportunidades: ele ganhou um emprego em uma agência de modelo, pagaram clínica de reabilitação, terminou e segundo grau e até arrumou alguém para dividir os momentos difíceis na jornada para abandonar as drogas.
Os outros não têm nem nome. Alcançar um título da beleza restrito a quem nasce branco é impensável. “Ora, estão sujando a cidade, deixando-a mais feia”. A história de preto sujo e feio já é velha, mas vinga no imaginário de muitos até hoje. Não tem comoção nacional, mas racismo, preconceito, descaso e estigmatização sobram. Dessa intolerância, resultaram protestos contra esses moradores de rua. Em Florianópolis os manifestantes admitiram isso. Ao invés de lutarem por condições mais dignas para àqueles que estão em situação de vulnerabilidade (como lutaram pelo “mendigo gato”), eles pediam por higienização das ruas, pela exportação ou por qualquer outra medida — leia-se extermínio — com a finalidade de limpar as praias de Canasvieiras. Para as pessoas em situação de rua, não houve o mínimo de tratamento humano, pois eles não são como o “mendigo gato”. Eles não são brancos.
E a seletividade não para por aí. O “mendigo gato” virou “exemplo de superação”, um herói: saiu das ruas, das drogas, arrumou emprego, está terminando os estudos e vai se casar. Já os mendigos de Florianópolis não receberam metade da ajuda ou das oportunidades e são denominados vagabundos, estorvo, lixos que merecem ser varrido das praias. Tudo isso por causa do nosso olhar que é diferente para as diferentes etnias.
Quando falo que a cor da pele define quais os tipos de oportunidades serão dadas ou quais obstáculos serão impostos ao indivíduo ou a um certo grupo é de casos como o do “mendigo gato de Curitiba” e dos protestos contra os de Florianópolis que me refiro.
E há quem ainda acredite que a questão é meramente de classe social.
Higor Faria é preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no https://medium.com/@higorfaria
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