A cor da violência e a nova senzala

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A cor da violência e a nova senzala
Foto: Macelo Camargo/ABr

“Se o desmatamento das florestas não pode ser visto de forma natural, a presença maciça de afro-brasileiros nos bolsões de miséria também não”, explica o professor e pesquisador Nelson Inocêncio, em seu artigo “Racismo ambiental: derivação de um problema histórico”. Esse conceito pouco discutido no Brasil explica, entre outras coisas, que as populações em áreas periféricas sem saneamento básico, portanto mais sujeitas a doenças são em sua maioria negra. Podemos somar a essa reflexão a questão da violência, cujas as vítimas também são majoritariamente de pele escura e vivem e sobrevivem, dentro de espaços abandonados pelo Estado, de forma que seria leviano analisar os agentes e vítimas da violência, sem se fazer um recorte racial do cenário.

Ato em memória do jovem Johnatha,morto na favela de Manguinhos, pela luta por justiça de sua mãe Ana Paula Oliveira, e lançamento da cartilha: Manguinhos tem fome de direitos (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
(Tânia Rêgo/Agência Brasil)

“As pessoas que integram tais contingentes não são seres abstratos, elas possuem características fenotípicas que evidenciam seus pertencimentos a segmentos étnico-raciais, cujas identidades culturais também não devem ser subestimadas” completa Inocêncio.

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Dados de 2012 da Anistia Internacional obtidos em uma ampla pesquisa sobre a cor das vítimas e homicídio, apontam que a cada duas horas, 7 jovens entre 19-25 anos, são assassinados. Dentro desse grupo 93% são homens e 77% são negros e somente 8% dessas mortes foram ou estão sendo investigadas. Não por acaso, a região Nordeste, onde há a maior concentração de afrodescendentes no Brasil é a que apresenta índices recordes de homicídios contra jovens negros sendo 10 vezes maior que a média nacional. Onde há mais negros há mais homicídios.

Ato em memória do jovem Johnatha,morto na favela de Manguinhos, pela luta por justiça de sua mãe Ana Paula Oliveira, e lançamento da cartilha: Manguinhos tem fome de direitos (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Ato em memória do jovem Johnatha (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Das guardas imperiais à Polícia Militar

“Nas províncias brasileiras, por toda a colônia e império, os fazendeiros, coronéis e lideranças políticas tinham guardas regionais e familiares que tinham como principal função capturar negro fugidos. O grande medo das elites quando acaba a escravidão, era a revolta dos negros. A polícia cumpre essa tarefa historicamente, ela existe para conter rebeliões e garantir a segurança de quem tem patrimônio”, explica o Editor do Blog Negro Belchior e professor da Uneafro e Douglas Belchior.

Rio de Janeiro - Um dia antes da ocupação das tropas federais na favela da Maré, policiais revistam carros, moradores e apreendem grande quantidade de drogas e armas na favela (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Um dia antes da ocupação das tropas federais na favela da Maré, policiais revistam carros, moradores (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

O professor ainda explica que quando o Brasil passa a ser república acontece uma revisão no sistema penal brasileiro que institui uma série de regras, normas e leis que criminalizam os negros. “Novamente a polícia entra para o cumprimento dessa lei que é racista onde há a lei da vadiagem, a que criminaliza a capoeira, o candomblé a umbanda, tem a redução da idade penal de 14 para 9 anos”, detalha Belchior.

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Negros fardados contra negros sem farda

O educador da comunidade de Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, Jota Marques, também faz um paralelo entre passado e futuro ao explicar a atuação da polícia. A região está em um intenso conflito entre policias e traficantes e após da queda de um helicóptero da polícia, os ataques se intensificaram e ainda ganharam um respaldo jurídico para revistar invadir as casas dos moradores, em uma “medida” excepcional autorizada pela juíza estadual Angélica dos Santos Costa, no dia 21 de novembro. “A gente segue respirando e sentindo os reflexos dos tempos escravocratas. Quando eu olho para o Estado a forma que ele realiza a segurança pública, não posso deixar de refletir da relação dos capitães do mato com a polícia militar brasileira. Há diferenças gigantescas, mas ainda existe comportamentos ali no seio do sistema que retomam esses tempos anteriores”, reflete Marques.

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(Tânia Rêgo/Agência Brasil)

O trabalho sujo feito pelos capitães do mato é também boa parte das atividades realizadas por policiais de baixo escalão, que são negros em sua maioria. “Trabalho sujo é entendido como atividades que embora sejam necessárias são desagradáveis ou tidas como menos importantes. E, consequentemente, delegadas aos sujeitos que não possuem as características que convirjam com os requisitos da ordem moral vigente”, explica Aline Maia Nascimento especialista em segurança pública em sua tese de Mestrado “Tem que ter raça”. Polícia Militar como ascensão social negra. No estudo ela ainda usa dados de relatório: “O que pensam os profissionais de segurança pública, no Brasil. Ministério da Justiça, A Secretaria Nacional de Segurança Pública”, que mostra que 58% dos praças, militares de categorias inferiores são como cabos e soldados são negros, contra 39,6% de brancos e apenas 28% dos delegados são afrodescendentes.

“Minha luta é contra o Estado e sistema que faz a gestão disso. Essa é uma guerra alimentada e criada por senhores da Casa Grande que tornam a convivência e a empatia desses homens comuns, impossível. O resultado disso é a higienização social da sociedade. Bingo para casa grande e a estrutura. Eles nos colocam em tabelas e números e calculam quantas pessoas tem que morrer e pelotão para fazer isso”, analisa Marques.

Crianças sem referências, sem educação e sem esperança

O racismo Institucional banalizou os rostos negros em cenários de pobreza e violência e nem as crianças escapam dessa maldição. Os pequenos afro-brasileiros, nascidos nas comunidades são tratados como marginais nas ruas. Dentro de casa, são criadas por pais, avós ou membros da família que vivem em situações de estresses causadas pela violência explícita a poucos metros de da porta de casa, sem contar as dificuldades econômicas e de acesso à educação. Como criar uma criança em clima de terrorismo constante? Dia, noite, no meio ou final da semana. A qualquer momento a calma pode ser interrompida por troca de tiros e corpos ensanguentados pelo chão. Como vítimas ou testemunhas, as crianças são personagens dessa triste história.

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(Tânia Rêgo/Agência Brasil)

“A maioria das crianças nas comunidades nem sabe que é negra e estereotipada pela nossa sociedade. Elas ainda estão muito cruas dentro dessa opressão. Elas não recebem nenhum estímulo, nem dos pais. Essa é a realidade deles, eles não conhecem outra”, explica Juliana Luna colaborada em projetos no Morro da Providência. “Elas refletem o meio que elas vivem e não tem um comportamento típico infantil, eles são bem agressivas”, relatada Luna que acrescenta que educação vem de forma muito primária e muitas crianças das comunidades, não têm acesso a leitura. “Hoje um menino de 12 anos não conseguia ler um exercício”, exemplifica a voluntária.

O crescente número de homicídios mostra que o processo de pacificação por meio das Unidades de Polícia Pacificadora falhou. Resta a reflexão: será o que o Estado realmente tem interesse em tornar as comunidades em um ambiente pacífico? Quantas gerações ficarão à margem da sociedade, privados dos direitos mais básicos e sem perspectiva de futuro? Apesar de assalariados e com o direito de ir em vir, garantido por lei, muitos  moradores das comunidades brasileiras, são a prova de que os resquícios da escravidão, como opressão, violência e territorialismo estão fortemente presentes da vida cotidiana dessas pessoas.

A propósito, daqui à aproximadamente 20 minutos, mais um jovem negro estará morto, vítima de arma de fogo.

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