Por Shenia Karlsson, Psicóloga clínica, Co-Fundadora do Papo Preta.
Essas duas últimas semanas foram efervescentes no mundo da web, e o tema polêmico das relações amorosas sempre mobiliza muito, engaja muito. Os últimos escândalos envolvendo casais negros e racializados aos quais terceiros elementos, neste caso “mulheres brancas”, apareceram publicamente pleiteando supostos direitos, forçando um protagonismo característico da fragilidade branca. Definitivamente isso chamou a atenção do público.
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De um lado, homens negros e racializados, artistas de gêneros musicais voltados principalmente para a cultura negra. De outro lado, mulheres negras e racializadas, lindíssimas, bem sucedidas em suas profissões e gozando de um reconhecimento público merecido. No meio, mulheres brancas precárias e de atitudes duvidosas, tentando manter uma superioridade ilusória construída pelo racismo e seus privilégios no mercado afetivo, principalmente quando alvo são homens negros, afinal, elas sabem que esse grupo as aceitam sem muitos critérios, ou às vezes nenhum. Outro assunto que fez muita gente se surpreender. Ser branca não é critério de escolha para nada, entretanto, em pleno 2023, existem aqueles que seguem firmes. Força camarada!
Este artigo não é sobre palmitagem, mesmo porque este termo apequena a discussão e a torna superficial. Meu intuito é trazer à luz certos aspectos aos quais não são levados em consideração, mas são extremamente importantes para abordar: o medo branco e a dominação pelo afeto. Esses fatos colocaram em ênfase algo historicamente problemático, a relação de rivalidade entre mulheres brancas e não brancas. O universo feminino é por si só um ambiente fértil para disputas, contudo, quando se trata da interação entre mulheres brancas e não brancas, o componente hierarquia nas mais variadas dimensões é ressaltado e as mulheres brancas fazem questão de impor a verticalidade dessa relação como fator predominante para que a experiência aconteça.
A história entre mulheres brancas e não brancas no Brasil é uma história controversa. No livro ‘Casa Grande e Senzala’ do autor Gilberto Freyre, ao narrar a vida na época da Colonização ele discorre como as mulheres brancas, negras e indígenas eram vistas. Pelo fato da colonização ter sido um advento primordialmente masculino e branco, as primeiras mulheres que esses homens se depararam foram as mulheres indígenas, um tipo totalmente diferente das quais eles estavam habituados, tendo sido elas um objeto de desejo e de tentação. Com o advento da escravização de africanos e a chegada das mulheres negras, outro tipo de corpo passou também a ser um objeto de desejo e de perturbação para os europeus, visto que socialmente essas mulheres não eram corpos moralmente aceitáveis para relações formais. Não preciso estender essa discussão sobre os estupros sistemáticos, certo?! Ok.
A chegada das mulheres brancas foi gradativa e com um intuito bem delimitado, garantir a linhagem branca, ou seja, poderes materiais e simbólicos na manutenção e construção de uma supremacia branca brasileira. Eram mulheres sem relevância, não desejadas, vistas como feias, sem encanto, utilizadas para gerar filhos brancos descendentes e proporcionar ao homem branco o status de homem de família, cristão e reto. Visto que o desejo carnal destes homens eram direcionados às indígenas e negras, as mulheres brancas construíram uma relação de ressentimento com mulheres não brancas. Por um lado, gozavam do privilégio de serem protegidas e escolhidas para a constituição da família, por outro eram esvaziadas de seu status feminino e reduzidas a meras indumentárias.
Após a abolição da escravatura, o discurso eugênico estava tão embrenhado na sociedade que a chegada de europeus muito pobres na substituição da mão de obra negra fez com que a superioridade branca fosse afirmada como norma. Outros desdobramentos foram acontecendo e homens negros que foram adquirindo posses passou a escolher mulheres brancas pobres para constituir matrimônio e família. Essas mulheres brancas fora dos padrões elitistas da branquitude foram gradualmente disputando o mercado afetivo com mulheres não brancas pelo privilégio que o racismo entregou a elas.
E qual foi o resultado desta equação? Segundo Rachel A. Feinstein, autora do livro ‘When Rape Was Legal’ ( Quando o estupro era legal – em tradução livre) é possível acessar relatos de violências perversas praticadas por mulheres brancas, como castigos físicos, humilhações, perseguições e negligência quando descobriam os estupros praticados por seus pais, maridos, filhos e familiares. Eram coniventes com todas as violências praticadas na época e muitas vezes participavam ativamente de tudo, e a moeda de troca era o privilégio de manter seu status de sinhá. Sendo assim, a mulher branca relacionou-se com mulheres não brancas somente através de relações assimétricas e de poder, em que suas projeções negativas pudessem encontrar nessas mulheres um depositário de suas frustrações.
Hoje, as violências estão mais sofisticadas embora continuem a todo o vapor, seja no trabalho, nas relações familiares ou no tal mercado afetivo. As mulheres brancas tentaram a todo custo manter as mulheres não brancas como simples espectadores de suas vidas, fazendo-as de cuidadoras, empregadas, mucamas, confidentes e figurantes da vida idealizada da branquitude e nunca houveram esforços para a construção de relações equânimes, horizontais e de liberdade. Mulheres brancas costumam acusar mulheres não brancas de invejá-las e odiá-las, mas, quem mesmo iniciou tudo isso e continua jogando baixo?
No livro ‘Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo’ da autora Lia Vainer Schucman, em umas de suas entrevistas com uma mulher branca jovem totalmente fora dos padrões da beleza – bleleza que eles mesmo estabeleceram, confessou que preferia investir em homens negros acima do padrão e admitiu obter vantagem diante de mulheres negras por ser branca. Inclusive a obra demonstra o quão conscientes os brancos estão sobre seus privilégios e que os usufruem sem nenhuma reflexão crítica. A postura de mulheres brancas no que tange todas as violências sociais praticadas no Brasil é absolutamente questionável na medida que elas sustentaram o colonialismo e a escravização com o intuito de obter benefícios próprios e hoje continuam a sustentar o racismo também em benefício próprio.
Hoje, diante das mudanças sociais, mulheres “não brancas” têm ganhado algum destaque e estão com muita dificuldade tentando disputar esse mercado afetivo ao qual tem os mesmos direitos, mas as mulheres brancas não enxergam desta forma. A historiadora Célia Maria Azevedo e autora do livro ‘Onda negra, medo branco: O negro no imaginário das elites’, destaca o medo branco como um componente importante para analisar como os brancos se mobilizam para tentar manter uma suposta ordem e garantir assim o controle em vários níveis. A pergunta “o que fazemos com os negros?” É tão atual quanto na época, na medida que ações vão se corporificando com um único intuito, o controle sobre nossos corpos. Quais corpos os brancos podem usar quando querem? Quais corpos eles detém o poder? Quais corpos podem ser desejados? Quais corpos podem ser amados?
A dominação pelo afeto é uma estratégia muito eficiente que a branquitude tem usado para a nossa submissão e afirmo que talvez seja o capital social mais importante e o que eles têm mais medo de perder. Imagina acordar um dia e descobrir que não é mais o modelo ideal de nada? Que é odiado e menosprezado? Essa é a angustia vivida hoje por mulheres brancas que acreditam que homens negros e racializados são de domínio próprio delas.
As demonstrações de rivalidade, ódio, destruição e desespero são comportamentos típicos da violência da branquitude, que atacam quando sentem-se coagidas ou ignoradas. O protagonismo seria a única forma de estar, e assim é necessário dizimar a mulher não branca simbolicamente humilhando-a publicamente, seja saindo do Hotel de um homem comprometido ou até chamar uma mulher negra de vagabunda num momento de extrema inveja e rejeição. Uma mensagem clara: Eu sou a escolhida, a única a ser amada! Se não pode ser meu, seu não será. A ideia de assistir mulheres não brancas vivendo plenamente suas vidas é insuportável para aquelas que acreditaram que esse direito é somente delas.
Neste artigo não vou aprofundar a questão da fidelidade, da lealdade e da incapacidade de homens não brancos de protegerem mulheres não brancas e sim, destacar uma guerra em curso que só mulheres não brancas não vêem, pois as mulheres brancas estão a todo vapor e dispostas a tudo o que vocês puderam ver por aí, e quem sabe pior. Então, preparem-se, irmãs! Protejam-se! Sejam felizes e amadas, e não esqueçam, o jogo não é limpo. E quanto às brancas, estamos de olho e agora, vamos reagir, já que não tens mais o chicote como defesa. Fica a dica.
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