Nos últimos tempos, muito se tem falado sobre a importância da representatividade negra na indústria brasileira de entretenimento. De fato, cada vez mais atrizes negras ocupam papéis nas telas e nos teatros. Essas conquistas de espaço são resultado de muitas lutas de homens e mulheres negras que vieram bem antes de nós e que a partir de estratégias diversas conseguiram abrir os caminhos do meio artístico.
Quando analisamos a inserção negra na indústria brasileira de entretenimento, é importante não ficarmos só no hoje. Precisamos nos voltar para os espetáculos populares do final do século 19 e início do 20. Nesse período, personagens negros foram constantemente estereotipados nos palcos teatrais em todo o Atlântico negro. No Brasil, o frenesi da busca pela identidade nacional trouxe para o teatro popular figuras afro-brasileiras, como “malandros” e “mulatas”, que marcaram o imaginário coletivo.
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Entre essas personagens, a mulata se destacou como forma de retratar as mulheres negras. Ela era a representação da mulher altamente sexualizada, que utilizava de seu corpo atraente para seduzir homens desavisados, fazendo-os de verdadeiros “otários” para conseguir alcançar seus objetivos. O alvo preferido eram os homens portugueses, que pareciam não resistir às curvas femininas do corpo negro.
O encanto e a lascividade da mulata ganharam respaldo em uma época em que o corpo feminino de atrizes e dançarinas obtinha cada vez mais destaque nos palcos do Atlântico negro e de Paris. Os modelitos, por exemplo, tornavam-se cada vez mais provocativos. Nas fotografias da época, percebemos a construção de uma sensualidade pela vestimenta, tornando a mulata expressão máxima da sensualidade nas produções.
Nessa lógica perversa da construção do lugar feminino negro escrito por mãos brancas, o espaço para atrizes negras ainda assim era estreitamente limitado. Se a personagem da mulata era diretamente associada à população negra, os corpos responsáveis pela interpretação eram em sua grande maioria brancos ou de tonalidade muito clara. No período, era recorrente que atrizes brancas construíssem suas carreiras interpretando mulheres negras. As primeiras “mulatas”, inclusive, foram interpretadas por atrizes estrangeiras.
Para nós essa lógica de corpos brancos estarem ocupando papéis negros pode causar certa estranheza. Porém, naquele período, o uso da técnica do blackface era comum nas principais companhias de revistas do Rio de Janeiro. Atores e atrizes brancos pintavam suas peles, usavam perucas que encrespavam o cabelo e reforçavam de forma grotesca características físicas como narizes e bocas. Além disso, desempenhavam nos palcos trejeitos exagerados para representarem pessoas negras. Muitas dessas performances contaram com registros fotográficos para divulgação das peças.
Entretanto, ainda que esses personagens fossem construídos em diálogo com teorias pseudocientíficas de inferiorização da população negra, as poucas mulheres negras que conseguiram furar a bolha e estar no palco negociaram, ressignificaram e subverteram o papel da mulata.
Esse era o caso, por exemplo, da dançarina e cantora Plácida dos Santos, que fez sucesso nas primeiras décadas do século XX. Descrita nos jornais como a “morena cor de jambo” em suas performances, ela não só dançava o maxixe, que era uma dança cheia de requebrados, como cantava vários lundus e modinhas “apimentadas” vestida de baiana. Ao se vestir dessa forma, Plácida dos Santos trazia para o palco uma performance a partir de seus próprios termos, muito diferente das artistas brancas, que imitavam as “mulatas” em um período em que não existiam companhias teatrais negras.
Plácida dos Santos não estava sozinha. Ela fazia parte de uma forte rede de contatos e ajuda mútua entre vários artistas negros que fortaleciam a ocupação do cenário artístico. Essas redes de contato certamente permitiram que no ano de 1926 surgisse a Companhia Negra de Revistas, dirigida pelo artista afro-brasileiro De Chocolate, formada por atores, atrizes e o coro. Somente homens e mulheres negras participavam. Seu surgimento representava uma afirmação de identidade negra em um período de positivação da mestiçagem no campo cultural. A Companhia teve um breve período de funcionamento e seu surgimento foi um importante caminho para que outras ações e estratégias fossem postas em prática no cenário artístico teatral.
Desse modo, quando olhamos para trás, fica evidente que as conquistas das atrizes de hoje são resultado das lutas de artistas negras como Plácida dos Santos, Julia Martins, Aracy Cortes, Ruth de Souza, Mercedes Baptista, Léa Garcia, Zezé Motta e outras tantas, que, sob estratégias diversas, seguem abrindo os caminhos para que mais mulheres possam chegar. Olhar para essas trajetórias mostra que artistas mulheres seguem buscando subverter a lógica da exclusão, criando outras formas de representação da população negra e fortalecendo umas às outras.
*Este artigo compõe a Ocupação da Rede de Historiadores Negros em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021.
Escrito por: Juliana Pereira – doutora em História (UFF); Lissa dos Passos – mestre em História (UFF) e professora da Educação básica. Ambas são integrantes da Rede de Historiadorxs Negrxs e do Podcast Atlântico Negro.
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