Escrito por Rodolfo Teixeira Alves, antropólogo (UFRJ)
Este texto nasceu de uma provocação indireta. Eu já tinha assistido a série documental Da África aos EUA: uma jornada gastronômica quando vi no Instagram Joy M. Dias, pesquisadora e cozinheira preta, sugerindo uma versão brasileira, o que seria muito apropriado. No lugar de Stephen Satterfield, que protagoniza a versão estadunidense, Joy indicava Lourence Cristine Alves como apresentadora das heranças africanas e afro-brasileiras de nossa culinária. Concordei indiretamente com as sugestões, mas pensei que a função de Lourence pode ser dividida com outras pesquisadoras e pesquisadores que também se dedicam ao tema, que tratam de gastronomia e afro-brasilidades. Nomes como Aline Chermoula, Dida Nascimento (Dida Bar e Restaurante), Fernando Luiz Alves (Quilombo Cultural Urbano Casa do Nando), Dandara Batista (Afro Gourmet), e tantas outras vozes negras, que fariam com maestria uma série nossa.
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Outro empurrão para este texto veio da leitura que venho fazendo do livro Uma história feita por mãos negras (2021), de Beatriz Nascimento, recém publicado pela Zahar, organizado por Alex Ratts. Trabalho primoroso, e tão necessário. O título do livro vem a calhar para este ensaio-resenha que defende uma série nossa, tal como foi feita nos EUA. Nossa, no caso, tem mais a ver com nós, população negra, e menos com a ideia de uma culinária nacional. Explico: não é para narrar a história da alimentação no Brasil dando destaque aos aspectos africanizados como contribuição cultural para algo maior, que é a “cultura brasileira”. Esse tipo de narrativa de incorporação, que fala de contribuições para algo que está no centro – nesse caso, o colonizador português –, já nos cansa. Dessas teorias lusotropicalistas que cheiram a mofo, que gastam páginas e mais páginas para falar de uma suposta empatia que os portugueses nutriam por outros povos, e que a “cultura brasileira” é reflexo disso. Isso que era novidade para alguns nos anos 1930, hoje é démodé – e tem quem ainda usa.
O audiovisual brasileiro já tratou de fazer uma série nesse enquadramento, está disponível no Prime Vídeo com o nome História da Alimentação no Brasil. O quarto episódio fala dos “temperos da panela indígena” e o oitavo é dedicado à “dieta africana”. Os outros, em geral, tratam de ingredientes, de suas origens e usos, e de algumas diferenças regionais e das comidas palacianas, em “A comida real” (episódio 10).
Uma série nossa tem que cumprir outro propósito. Em nossos termos, tem mais a ver com quem fez (e faz) a culinária afro-brasileira, com interesse nas pessoas, seus saberes e tecnologias ancestrais. A história é outra. Imagina como seria incrível uma arqueologia que trouxesse nomes históricos de personalidades negras que fizeram da comida a sua agência política; que praticaram através dela o mercar para sua emancipação, como mostra a historiadora Tâmisa Caduda; da comida como cura física e espiritual. Fizeram assim na versão estadunidense da série, dando destaque à resistência e criatividade da população negra de lá. E, aqui, isso não nos falta. Nossa série deve abordar, por exemplo, a importância que tiveram na gastronomia carioca as tias baianas da Pequena África no começo do século XX, Dona Zica no Zicartola e Vicentina na Portela, entre outros nomes. (Nesse ponto estou indicando meus interesses pessoais de pesquisa, que fique claro).
Dos filmes que eu conheço, o mais perto que chegamos disso foi o episódio sobre a culinária brasileira na série Street Food: América Latina, de David Gelb, também disponível na Netflix. Elegeram a cidade de Salvador como representante do Brasil, mostrando uma culinária genuinamente negra, como experimentamos e sabemos desde os trabalhos de Manuel Querino. Foi por esse documentário que passei a conhecer dona Suzana e sua moqueca, e o Kabaça com a sua feijoada, pratos que fiz questão de provar quando estive em Salvador, fevereiro deste ano. Pratos que falam mais da trajetória de vida desses chefes de cozinha do que da biografia social dos alimentos que eles usam. Se são ingredientes “do reino”, do “continente” ou “da terra”, se provêm das “grandes navegações” portuguesas… essa jornada sonolenta pela exatidão de suas origens (que tanto atrai parte dos interessados no assunto), parece importar menos.
As diferenças entre as séries Da África aos EUA: uma jornada gastronômica e História da Alimentação no Brasil explicam algumas coisas. O que esses documentários têm em comum é que ambos derivam de um livro. E é aqui que entra o trabalho de Beatriz Nascimento que falei anteriormente. Da África aos EUA: uma jornada gastronômica é a tradução para a português de High on the Hog: How African American Cuisine Transformed America. Seu título original faz menção direta à obra de base, que é o livro High on the Hog: A culinary journey from Africa to America, de Jessica S. Harris. Já o documentário brasileiro tem o título homônimo do livro de Câmara Cascudo. Assim, como cada série expressa os recortes teóricos do livro de referência, as diferenças entre eles aparecem no plano político e epistemológico. São essas diferenças que me levam a defender a necessidade de uma versão brasileira com o nome Das Áfricas ao Brasil. No plural mesmo, para marcar as diásporas africanas por aqui e para falar de trânsitos de saberes que não se limitam à escravidão.
Beatriz Nascimento dedicou muitas linhas de seus escritos para criticar o pensamento social de sua época, em especial aquele ancorado no lusotropicalismo de Gilberto Freyre, onde se enquadra a obra de Câmara Cascudo. De maneira arguta, às vezes sarcástica, Beatriz Nascimento mostrou que parte de seus contemporâneos da intelectualidade branca, reforçaram perspectivas racistas sobre a história e formação social do Brasil. A escrita dessa história foi feita por mãos brancas, ela defende, que relegou ao negro, através da ideologia da “democracia racial” e do inclusivismo retórico, a posição de contribuinte cultural, à revelia degradação escravista. É uma história branca conforme tem a branquitude como pressuposto, por desconsiderar a violência colonial como mediação das relações que as teses mistificadoras, de orientação lusotropicalista, insistem em representar como complacentes. Por isso a importância de uma história escrita por mãos negras, baseada nas vivências da população negra, como uma reescrita da história brasileira. E como nosso tema aqui é comida, devo dizer que também a história social da alimentação no Brasil carece de ser reescrita. Atualmente tem muita gente se dedicando a isso. Listei alguns nomes acima.
Suponho que essa reescrita apresenta coisas novas (e boas) conforme traz outras epistemologias, quando insere sensibilidades decolonizadas para contestar, com a escrita de si, narrativas como de Câmara Cascudo em seu livro História da Alimentação no Brasil. São outros enquadramentos, portanto. Visam superar as narrativas que apresentam o africano e o indígena como sujeitos totais e mumificados, felizes com a missão de contribuir culturalmente, baseadas na ideia de um iberismo absorvente de fundo.
Enfim, nossa série fala das diásporas africanas no seu aspecto alimentar no Brasil, tendo o cuidado para não cair nas armadilhas epistemológicas do inclusivismo retórico da formação da cultura brasileira de perspectiva lusotropicalista. Uma série de reescrita, feita por mãos negras, com outras sensibilidades pressupostas. Que trata a culinária negra em termos de agência política, e fala da cozinha como espaço de organização e exercício contra-colonial. Perspectiva que obviamente seria muito diferente das representações do escravizado dócil, que desconsidera nosso histórico de revoltas. Estariam em jogo outras sensibilidades e epistemologias, como vem fazendo pesquisadoras e pesquisadores atualmente, que, aos poucos, reescrevem e fazem a história social da alimentação no Brasil sob outros parâmetros conceituais.
O livro de Jessica S. Harris começa com a autora se apresentando: “I am an African American” [Eu sou afro-americana]. E isso já diz muito. Uma história feita por mãos negras. Que nossa série siga esses termos, que fale, pela comida, de pessoas e movimentos políticos e culturais da população negra no Brasil. Que aborde os trânsitos contínuos de saberes e não reduza a ancestralidade africana como algo do passado. A mudança é o deslocamento epistemológico feito por uma narrativa sensível, como Beatriz Nascimento – “Eu sou preta, penso e sinto assim” – diz em seu texto “Por uma história do homem negro”, que compõe o livro já citado.
Enquanto a Netflix não se atenta para a necessidade de financiar uma série nossa, seguimos com os nossos trabalhos. Enquanto Lourence não assume a função atribuída, nos contentamos com os espaços onde tratamos dos saberes da nossa gastronomia afrocentrada. É por isso que eu deixo aqui, para concluir, o convite para o painel temático “Alimentação: saberes e tecnologias ancestrais africanas e afro-brasileiras” que vai acontecer no Festival do Conhecimento da UFRJ, na próxima quinta-feira, 15 de julho, às 11:30, no espaço virtual do evento. Convidei Aline Chermoula, Lourence Cristine Alves e Tâmisa Marques Caduda para um bate papo, essas que são as possíveis narradoras de nossa série documental, que necessita ser produzida. Alô, Netflix!
Rodolfo Teixeira Alves, sou antropólogo (UFRJ) e desenvolvo atualmente o projeto de pesquisa “Alimentação e cidade: circuitos de restaurantes afros no Rio de Janeiro”.
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