Anthony Rodrigues
O crescimento vertiginoso de produções de autoria e/ou protagonismo negro nos últimos anos vem despertando debates calorosos dentro da academia e da crítica cinematográfica. O principal deles é motivado pelo uso recorrente de termos como “cinema negro” e “narrativas negras” para definir filmes (ou séries, clipes, animações etc.) escritos, dirigidos ou estrelados por pessoas negras. Pode parecer intuitivo para o público em geral, mas nem sempre um filme com essas características recebe esse rótulo consensualmente. Ao longo da história, o termo “cinema negro” ganhou contornos estéticos e políticos específicos, como um movimento artístico-cultural que emergiu paralelo às mudanças sociais mais amplas acerca da representação racial. Isso significa dizer que fazer “cinema negro” não é apenas sinônimo de presença negra atrás e/ou na frente das câmeras – embora esses aspectos ainda sejam fundamentais. Fazer “cinema negro” diz respeito à forma com que os filmes são produzidos, como as imagens são capturadas e qual narrativa está sendo contada.
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O teórico negro do cinema Michael B. Gillespie vem pensando isso de modo interessante, ao defender o uso do termo blackness film [negritude fílmica] para escapar dos clichês que geralmente acompanham o “cinema negro” do senso comum (filmes sobre racismo e a realidade social negra) ou a ideia de “performance negra” (culturas negras performadas exoticamente na tela). Blackness film, nesse sentido, é pensar as produções audiovisuais onde o que prevalece é a liberdade criativa do(a) artista negro(a), implicado(a) tanto pelas produções de autoria branca, quanto (e principalmente) pela própria subjetividade, trajetória de vida e poder de imaginação. É, em síntese, se apropriar e escapar, paradoxalmente, dos enquadramentos teóricos e políticos da crítica e produção cinematográfica branca, para projetar a complexidade da negritude e do “mundo negro” fora das relações raciais com a branquitude – inclusive ironizando-as.
Ao meu ver, são exatamente essas características que estão presentes na terceira temporada da série Master of None, dirigida impecavelmente em cinco episódios pelo seu ex-protagonista Aziz Ansari, que também assina o roteiro com a brilhante roteirista e atriz Lena Waithe. Após o envolvimento pessoal de Ansari em uma polêmica de assédio sexual, o seu personagem Dev deixa o centro da narrativa, transferindo para a melhor amiga Denise (Lena Waithe) e sua companheira Alicia, interpretada por Naomi Ackie. A temporada, então, gira em torno do relacionamento de Denise com Alicia e os conflitos que surgem a partir do desejo das duas de terem uma criança. Mas essa não foi a única mudança radical na série. Antes uma dramédia que flertava fortemente com o gênero sitcom em alguns momentos (afinal, Ansari também é comediante), Master of None se transformou num drama cult, profundamente complexo, sensível, político e muito bem construído pela dupla Ansari e Waithe. Em suma, se transformou numa “série de arte”.
A proposta estética parece combinar perfeitamente com a mudança de tom na narrativa. Agora, a série valoriza a fluidez natural dos diálogos, dando a sensação de que o tempo passa mais devagar para quem assiste. A primeira percepção é que todos os enquadramentos são fotograficamente bem definidos, e são raras as cenas em que a câmera se movimenta. Na verdade, quem se movimenta são os personagens, que por vezes saem do quadro e são reconhecidos apenas pela sua voz. Essa nova dinâmica exigiu que quase todas as cenas fossem gravadas em plano-sequência, já que praticamente não há os cortes comuns do cinema de gênero, como os tradicionais plano e contra-plano em diálogos. Para compensar a ausência de uma dinâmica acelerada, a direção de arte aposta numa paleta de cores impecável, tanto nas roupas e acessórios das personagens, quanto nos objetos e detalhes da casa de campo que Denise e Alicia moram.
A narrativa, apesar de também tematizar problemas sociais a serem enfrentados por um casal negro lésbico, conseguiu passar ao largo dos clichês de uma “produção-denúncia”. A crítica está ali, e é forte, mas ela não é abordada diretamente. É tratada a ideia de amor romântico, o desejo de maternidade para uma mulher negra lésbica e a solidão que pode fazer parte desse processo sem que o telespectador assuma isso como norte da narrativa. Não é uma temporada sobre racismo e lesbofobia, embora também seja. Nesse ponto, o roteiro acerta em apostar em diálogos corriqueiros de um casal, que passa por momentos de carinho, sexo e companheirismo, mas também por crises comuns a todos os outros casais. Ao fim e ao cabo, apenas ficamos apreensivos acerca do desfecho do casal, principalmente após o intenso episódio quatro, protagonizado por Alicia.
Nessa terceira temporada, Ansari e Waithe humanizam Denise e Alicia – e até mesmo Dev, que aparece esporadicamente também tendo uma briga de casal e dando apoio a Denise. “Humanizar”, nesse caso, significou tornar personagens negras complexas, que cometem erros e passam por questões subjetivas nem sempre ligadas às relações de opressão, embora isso seja constitutivo de suas trajetórias de vida. A ausência relevante de personagens brancos na série é um bom indicativo de como a série conseguiu, nesta temporada, quebrar com os clichês em torno do “cinema negro” e da “performance negra” sem necessariamente precisar sair do realismo e da verossimilhança. E acreditem, é muito difícil alcançar esse nível.
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