Por Alva Helena de Almeida
A enfermagem brasileira é a segunda maior categoria profissional depois dos metalúrgicos. É a maior força de trabalho na área da saúde, cerca de 2.5 milhões de trabalhadores, que correspondem a 53% dos profissionais assistenciais do setor, e cuja produtividade representa 60% das atividades desenvolvidas no sistema de saúde. É uma área predominantemente feminina, constituída por 77% de profissionais do nível médio de escolaridade, as Auxiliares e as Técnicas, e por 23% de universitárias, as enfermeiras e as obstetrizes. Nesse contingente, 53% se declararam negras, 42% brancas e 0,6% indígenas. Dentre as enfermeiras 57,9%, se declararam brancas e 37,9% negras (COFEN,2017).
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A função social do trabalho da enfermagem é a produção do cuidado à saúde desde antes do nascimento até depois da morte. Não é possível imaginar a complexidade do sistema de saúde, nos distintos níveis e setores, onde a enfermagem não atue direta ou indiretamente, constituindo a sua força motriz, viabilizando a atenção à saúde. Ainda que haja algum reconhecimento da importância dessa produção e da sua especificidade, a área da enfermagem permanece no imaginário social como uma atuação de menor valor, inerente ao papel feminino e de menor prestígio, quando comparada à atuação da equipe médica.
A institucionalização da enfermagem como prática profissional teve início em 1890, culminando em 1923, com a instalação do primeiro curso de formação de enfermeiras no país. Antes disso, a produção dos cuidados e curas era atribuição das mulheres, das escravizadas, pretas, pardas e das indígenas. A profissionalização negou o espaço de atuação e posteriormente o acesso à profissão ao contingente de mulheres pobres, negras(os) e mestiços. Foram definidos como critérios de ingresso aos cursos ter o diploma do curso normal e ser da ‘raça branca’(Moreira,1999). Por influência de Florence Nightingale1 adotou-se um modelo de organização do trabalho pautado na divisão social e técnica, atribuindo a prestação dos cuidados diretos às mulheres de menor escolaridade, as ‘nurses’, enquanto a supervisão, o ensino e o gerenciamento às ‘ladies-nurses’, mulheres das classes média e alta, pré-selecionadas, com maior escolaridade (Lombardi, Campos, 2018).
A enfermagem brasileira institucionalizada nasceu sob o escudo do ‘branqueamento’. Nesse projeto, os conhecimentos específicos advindos das formações e capacitações específicas passaram a ser valorizados em detrimentos dos conhecimentos tácitos das populações tradicionais (Campos et al, 2007). A população negra permaneceu apartada da prestação de cuidados até meados de 1930, quando a expansão dos serviços de saúde no governo de Getúlio Vargas absorveu contingentes de trabalhadores, possibilitando a ascensão de grupos sociais subalternizados3. Há de se reconhecer pelo menos duas compreensões a respeito da configuração da estrutura organizacional do trabalho na enfermagem, uma, explicitada nas publicações, de que “a divisão técnica interna do trabalho se hierarquizou a partir e sobre as relações sociais de gênero, raça e classe” (Lombardi, Campos,2018).
A outra perspectiva contrapõe elementos do racismo estrutural pautados na eugenia e darwinismo social para a exclusão da população negra da produção de cuidados na sociedade brasileira. Além disso, a implementação de políticas educacionais favoreceram a estratificação social2 no interior da área, visto que a proliferação de cursos profissionalizantes permitiu o acesso de mulheres e jovens, de menor poder aquisito aos cursos técnicos, em contraposição à menor ofertas de vagas no ensino universitário. Dentre os profissionais do nível médio 72% acessaram a formação em instituições de ensino (IE)privadas, 48% na modalidade de curso noturno, enquanto na graduação apenas 35,6% acessaram a formação no ensino público, 36,6% na modalidade curso integral e 57,4% nas IE privadas.
Esses determinantes produzem a estrutura organizacional da enfermagem no país: uma ampla base de profissionais nos cargos de menor valorização e remuneração, que realizam o trabalho de maior sobrecarga física, em condições de maior desgaste e adoecimentos, maioria de mulheres negras, chefes de família. No ápice temos a menor parcela da equipe, maioria de mulheres e homens brancos, também submetidos a um padrão de rebaixamento salarial e menor proteção social quando comparados a outras categorias da saúde. Nas imagens publicizadas na mídia, não é possível perceber esse mosaico racial. A invisibilidade da população negra na história e na identidade da enfermagem no país constrói a falsa ideia de identidade social e racial única e atemporal.
A exploração do trabalho na enfermagem não é um fato recente, desde a regulamentação da profissão em 1986, fomos surpreendidos pela decisão avassaladora dos empresários do setor saúde que permitiram a indicação de jornada de trabalho, mas bloquearam a definição do piso salarial. Esses mesmos grupos, apesar dos lucros exorbitantes obtidos no ano de 2020, na vigência da pandemia, permanecem impassíveis no lobby junto ao legislativo, impedindo a definição da jornada de 30h e do piso salarial digno e justo para todos os profissionais.
A enfermagem brasileira permanece no front para desempenhar a sua função, e em luta pelo reconhecimento da importância do seu papel na produção do cuidado, por salários compatíveis com a especificidade desse trabalho e pela própria sobrevivência, visto que a precarização até mesmo uberização4 das condições de trabalho, além da adoção de uma política de subdimensionamento dos quadros de pessoal dos serviços, vem expondo esses trabalhadores a graus extenuantes de desgastes, adoecimentos e mortes. Desgraçadamente alcançamos a posição número 1 no ranking dos países com o maior número de contaminação e mortes dos profissionais de enfermagem pela COVID no mundo.
Em maio – mês designado às comemorações na enfermagem5, os trabalhadores permanecem submetidos a péssimas condições de trabalho, exacerbadas na crise sanitária e, até o momento sem perspectivas de melhoras, visto que raras têm sido as decisões por contratação de profissionais para o desempenho das funções rotineiras, acrescidas da atuação como serviço essencial no combate à pandemia, e da responsabilização isolada pela imunização no país.
A enfermagem brasileira é um tecido esgarçado, que precisa de socorro, de respeito e de proteção, sem o que o Sistema Único de Saúde está em iminente risco.
Por Alva Helena de Almeida, integrante da ANEN – Articulação Nacional da Enfermagem Negra, enfermeira aposentada, mestra em Saúde Pública e doutora em Ciências.
Notas
- Florence Nightingale, enfermeira inglesa é considerada a precursora da enfermagem profissional. Seus conhecimentos e práticas serviram de referência para a enfermagem mundial.
- Para Silvio Almeida (2019), a estratificação social é um fenômeno intergeracional consequente à práticas de discriminação de um grupo social, impedindo a ascensão social.
- no Estado de São Paulo, à época da Revolução Constitucionalista de 1932, foi permitido a inclusão de negros no exército. O livro “1932 Imagens de uma Revolução” apresenta entre civis e militares anônimos as “enfermeiras da Legião Negra”, mulheres negras, voluntárias, retratadas em cerimônias públicas como “enfermeiras”.
- A uberização tem sido reconhecida como extrema precarização do trabalho, perda de direitos e autonomia, contratação por tempo determinado, com disponibilidade diuturna para o trabalho, responsabilidade por adquirir os próprios equipamentos de proteção individual e a remuneração por hora trabalhada (Souza dias, Carvalho et.al, 2020).
- No Brasil está consagrado comemorar a Semana de Enfermagem com início em 12 de maio, dia Internacional da Enfermagem, nascimento da inglesa Florence Nightingale, e dia do Enfermeiro em homenagem à Ana Nery, até 20 de maio, dia do Auxiliar e Técnico de Enfermagem e falecimento de Ana Nery.
REFERÊNCIAS:
Machado, Maria Helena (Coord.). Perfil da enfermagem no Brasil: relatório final: Brasil / coordenado por Maria Helena Machado. ― Rio de Janeiro NERHUS – DAPS – ENSP/Fiocruz, 2017.
Lombardi MR. Campos VP. Revista da ABET, v.17, n.1 jan a jun, 2018.
Moreira MCN. A Fundação Rockefeller e a construção da identidade profissional de enfermagem no Brasil na Primeira República’. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, V (3): 621-45, nov. 1998-fev. 1999.
Campos, Oguisso e Freitas. Cultura dos cuidados: mulheres negras e formação da enfermagem profissional brasileira. Cultura de los Cuidados. 2º semestre 2007 Ãno XI n,22.
Beatriz Calass, Juliana Andrade https://forbes.com.br/forbes-money/2021/02/bilionarios-brasileiros-da-area-da-saude-sao-os-que-mais-ganharam-dinheiro-durante-a-pandemia/
Souza, Dias, Carvalho et. al. Risco de uberização do trabalho de enfermagem em tempos de pandemia da Covid 19: relato de experiência https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/9060/8175
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