Preta, nordestina e trans com muito orgulho. Joe Andrade é uma mulher com uma linda jornada de descoberta, em que ela aprende sobre si mesma, mas também ensina quem cruza seu caminho. Feliz quem pode testemunhar de perto esse renascimento poderoso.
Joe que é estudante de teatro na UFPE é uma das entrevistadas mais especiais desse nosso Julho das Pretas e fala com a gente sobre sua vida como mulher, como a transição impactou suas relações sociais e familiares. Ela também destaca a transfobia presente na comunidade negra. Para se ter uma noção, Joe administra uma página bem conhecida pela comunidade negra no Facebook, a Desenrolando. Depois que ela começou a publicar mais conteúdos sobre comunidade LGBTQ+ e principalmente sobre mulheres trans, ela perdeu muitos seguidores.
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“Minhas redes sociais, 95% são pessoas negras que me seguem. Eu falo sobre questões raciais desde 2013, a gente vai adicionando todas as pessoas pretas, mas depois vamos notando algumas coisas que me deixavam chocadas. Desconsiderar a existência das pessoas negras LGBT é um apagamento”, diz a ativista.
Te convidamos a conhecer mais o universo das mulheres negras trans nessa entrevista.
Mundo Negro – Quando você descobriu que ser trans era algo possível? Digo pela questão da representatividade , a gente não sabe que pode ser uma coisa que nunca vimos.
Joe Andrade – O processo de autoconhecimento aconteceu em 2016 quando percebi que não era um homem gay e sim uma pessoa trans. Acredito que eu já sabia desde cedo, quando criança, me identificava muito mais com os problemas das meninas negras do que dos meninos negros, quando eu me olhava no espelho eu me enxergava a própria Taís Araújo e não o Lázaro Ramos. Porém por medo resolvi me assumir gay para minha família e andar na linha da cisheteronormatividade. Chega um momento que não tem jeito, você tem a necessidade de colocar para fora algo muito precioso que está acontecendo dentro de você, e foi quando eu me assumi TRAVESTI, eles não ficaram tão chocados mas alguns ” amigos” se afastaram, houve aqueles que me excluíram de suas redes sociais, mas eu nunca me senti tão linda.
Como foi para você o início desse processo e qual era o seu nível de preocupação com o julgamento do outros quando você decidiu ser você. Como foi sua família nesse processo?
Foi uma grande autodescoberta, eu procurava ao máximo ouvir pessoas trans, principalmente as mais velhas, observava as inúmeras vivências. Chega um momento em nossas vidas que a gente acha que aprendeu tudo e essa questão me fez perceber que não é bem assim. A minha preocupação era se as pessoas iriam se afastar de mim, hoje em dia eu percebo que isso é um favor. A minha ideia de família ou modelo familiar mudou com o passar do tempo, para mim, família são as pessoas que respeitam a sua humanidade e te dá todo o suporte que a vida possa oferecer, independente de laço sanguíneo. Penso que essa ideia de ” família é de sangue” seja fruto de um pensamento colonial, nós, pessoas LGBTQI+ precisamos descolonizar essa ideia e mostrar para a sociedade os inúmeros modelos de família brasileira.
Você fez terapia durante essa mudança? Teve algum tipo de acompanhamento profissional?
Eu busquei a terapia para resolver outras questões, porém a questão da travestilidade acabou entrando no jogo e me ajudou ainda mais. Eu pretendo voltar quando começar o processo de hormonização, inclusive, é extremamente perigoso se hormonizar por conta própria, o profissional irá nos ajudar a tomar as quantidades certas, quais tipos de hormônios tomar. Muitas meninas ficam inseguras de procurar acompanhamento profissional devido algumas violências transfóbicas que vivenciamos com alguns profissionais da psicologia, afinal, só em 2019 que a OMS retirou a transexualidade da lista de doenças mentais, mas existem muitos profissionais capacitados e que respeitam a nossa humanidade, vale a pesquisa.
O que mais as pessoas dizem sobre os trans que te irrita, que te tira do sério?
Uma lista de coisas:
- Que somos pessoas indecisas;
- Que somos pessoas sem Deus ;
- Que temos problemas psiquiátricos;
- Que somos pessoas promíscuas;
- Quando duvidam da nossa capacidade intelectual;
- Que não iremos viver mais de 30 anos ( nossa expectativa de vida)
- Quando perguntam nosso “nome verdadeiro” ou se já “fizemos a cirurgia”. As pessoas se interessam muito pelas genitálias de pessoas trans, ninguém saí perguntando a um homem cisgênero se ele fez a circuncisão, nem deveria.
A comunidade negra é transfóbica ?Pode dar algum exemplo de algo que te afetou pessoal ou profissionalmente?
Acredito que assim como o racismo, a transfobia é um problema estrutural na sociedade, isso não significa que não vamos nos repensar e jogar a responsabilidade para a “sociedade ” como se nós não fizéssemos parte dela. Nós fazemos parte dessa estrutura, então, assim como o racismo é problema dos brancos a transfobia é um problema das pessoas cisgêneras. A comunidade negra é transfobica quando pauta a negritude apenas no aspecto cisgênero e heterossexual e exclui todas as outras possibilidades de gêneros e sexualidade.
Eu acredito que a comunidade negra deveria abraçar a luta da travesti, afinal, a maioria das travestis que são assassinadas são negras e eu acredito que isso se configura genocídio negro. Essa pessoa trans que não chega até os 30 anos em sua grande maioria é negra, 90% das meninas que estão na rua se prostituindo devido a falta de oportunidade são negras. A experiência negra deve ser pautada para além da cisheteronornatividade. Nós travestis negras morremos duas vezes, por ser preta e por ser travesti, às vezes somos assassinadas três vezes, a terceira morte é quando erram nosso nome nas notícias.
Fiz uma seleção para uma agência de modelos, fui aprovada e me convocaram para uma reunião importantíssima, eu achei que seria para fechar o contrato, mas foi para me comunicar que infelizmente não poderiam me contratar. Eles me aprovaram mas a minha aprovação gerou uma certa polêmica e eles resolveram me dispensar, a justificativa que um dos agentes deu é que sendo uma pessoa trans isso geraria muita polêmica e alguns clientes poderiam cancelar parcerias, eles não queriam correr tal risco. Eu me senti extremamente humilhada, quando se é uma pessoa trans em busca de um emprego não é o seu curriculum e experiência que está em pauta e sim a sua humanidade.
Agora que você se tornou o que você é? Quais são as suas maiores alegrias, o que mudou no seu autocuidado?
Eu me sinto muito mais bonita e confortável, me sinto uma pessoa extremamente corajosa e feliz, no país que mais mata travesti é preciso ter coragem para andar pela rua na luz do dia. A minha maior alegria foi ser a primeira da minha família a entrar em uma universidade pública e ter a oportunidade de descolonizar essa instituição que historicamente nos excluiu e desmereceu os nossos conhecimentos.
Quem são suas referências entre as pretas trans?
As minhas referências principais são minhas amigas, Marcya Soares, Jarda Araújo, Rimena Brilhantina e Sued Hozanna, são pessoas que eu aprendo e me inspiram , são intelectuais maravilhosas e o futuro da nação. Espero que uma delas seja PRESIDENTA do Brasil um dia, acredito que esse país só irá para frente quando tiver uma presidenta travesti. Também amo as atrizes da série Pose, MJ Rodrigues, Dominique Jackson, Angelica Ross e o elenco todo.
As crianças trans estão descobrindo mais cedo que não se identificam com o gênero de nascimento. Qual seu conselho para os mais jovens?
Eu acredito que a internet aproxima muitas discussões, hoje algumas crianças já nascem com um smartphone na mão e tirando uma selfie para postar no Instagram. Penso que todas as pessoas que querem ter uma criança deveriam ler sobre questões de gênero e respeitar os seus filhos, apoia-lo e ajuda-lo no que for preciso. O meu conselho para os mais jovens é que se cuidem emocionalmente, temos um mundo extremamente cruel mas as que vieram antes de nós abriram a porta e nós estamos aqui, não iremos embora, não morreremos pois somos sementes.
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