O dia em que fui chamado de macaco na produtora de filmes onde eu trabalhava!
Foi nesse dia que me dei conta de uma maneira apavorante que SIM, a minha cor era aval para que chances fossem negadas.
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Meu nome é Valter Rege, sou criador de conteúdo e cineasta, 35 anos, gay, negro, periférico, formado pelo Centro Universitário Belas Artes em Rádio e Tv, e estudante de cinema, autodidata aos 14 anos e posteriormente frequentei oficinas de cinema até chegar na graduação.
Sempre acreditei na meritocracia, e aos 14 anos, sem prever que a chance de uma pessoa negra chegar ao cargo de roteirista ou diretor no cinema nacional era de apenas 2%, elaborei um plano de carreira minucioso para alcançar os objetivos, conto sobre essa trajetória na minha palestra chamada “Da Favela Para As Telas”.
Nesse artigo, quero escrever especificamente sobre o dia em que fui chamado de macaco dentro do ambiente de trabalho e como essa vivência me afetou moralmente e psicologicamente.
As empresas precisam aprender a lidar com o racismo estrutural que se manifesta de maneira naturalizada.
Em 2012, comecei a prestar serviços para uma produtora de filmes que está há muitos anos no mercado. Exercia a função de assistente de finalização, que é o setor responsável pela montagem, pós-produção, e entrega dos filmes publicitários e de conteúdo.
Adorava me sentir útil naquela empresa, pois, fazia parte de uma equipe super humanizada e uma chefia muito motivadora que atendia as nossas demandas estruturais e psicológicas de maneira surpreendente. Tínhamos boa interação, momentos de bate papo, cafézinhos e vivências que nos faziam querer dar o melhor a cada trabalho.
Cresci e aprendi muito com essa equipe.
Porém, existiam alguns excessos por parte de alguns diretores de cena. Cargo esse demasiadamente glamourizado, e alguns diretores usam seus “poderes” de forma irresponsável e pouco acolhedora.
Acho uma direção inclusiva muito mais agregadora para os Jobs.
Motivar uma equipe e fazer com que pessoas trabalhem com otimismo e vontade é extremamente eficaz, lembro quando ainda na faculdade motivei quase 60 pessoas a embarcarem em um média-metragem universitário, e a minha felicidade era saber que nem todos estavam ali para seguir a carreira no audiovisual, e sim, porque estavam inspirados pelo projeto.
Nessa empresa havia um diretor extremamente infantilizado, ele era sobrinho de um grande diretor de filmes, e creio que seu nome pesava mais do que suas habilidades como tal. Ele gritava, era assediador e constantemente perguntava para mim sobre as minhas preferências sexuais, até onde sei não era um homem gay, mas adorava expor gays na frente dos demais funcionários.
O diretor, inclusive tinha uma assistente a quem denominavam como: A babá!
Durante algum tempo, aceitamos e relevamos algumas atitudes extremante abusivas porque as “brincadeiras” eram vistas como “normais” (?), ou até mesmo como personalidade geniosa. Embora incomodasse, muitas vezes preferi focar na entrega de um trabalho realizado com excelência.
Porém, certa noite, com a correria publicitária cotidiana, eu estava na produtora até tarde, aguardando a alteração de um filme que estava em processo de aprovação. Para o meu desespero o diretor havia sumido, e o montador, que era amigo pessoal do diretor, também havia desaparecido, os dois estavam juntos, porém eu como responsável pela pós-produção deveria solicitar o retorno imediato do montador, o que não agradou muito o diretor.
O cliente cobrava a alteração, e eu precisava resolver o problema o mais rápido possível. Chamei um assistente da casa e fiz a alteração na montagem. Porém, com a minha ética inabalável só enviaria depois da aprovação do diretor, nem que fosse via celular.
O montador chegou, e solicitei que o mesmo assumisse o controle de suas funções. De-repente, o montador me entrega o telefone e informa que o diretor queria falar comigo.
Sem dar a chance de explicar, ele solta vários palavrões. Começa a dizer que sou péssimo profissional, que sou moleque, que meu departamento é uma “merda” que meu chefe é um “c***”, que não deveria deixar um assistente tocar o filme dele … enfim… delicadamente, e com a paciência que trago desde a época em que servi o quartel, informei ao diretor que o mesmo estava se excedendo e que iria desligar o telefone.
Foi o que fiz.
Ele continuou ligando e quando atendi novamente ele não parava de gritar palavras de baixo calão. Sem pensar, gritei o mais alto que pude. Lembro das minhas palavras: – Eu não sou moleque, são quase meia noite, e estou trabalhando. CHEGA!
O meu grito foi tão alto que lembro da minha cabeça doer. Sentei no chão, aos prantos e o assistente da casa veio me acalmar. Eu chorava sem parar!
O meu coração estava acelerado, os gritos ecoavam em minha mente, porém, o meu profissionalismo é imensamente maior que qualquer barreira que impeça de entregar um bom trabalho, então, me recompus e voltei a minha sala.
O telefone não parava de tocar. Resolvi focar apenas na entrega e não atendi mais nenhuma ligação, pois estava ultrapassando a meia noite.
Lembro dos meus dedos trêmulos digitando o e-mail para enviar o filme para aprovação. Segurava a imensa vontade de chorar.
Depois de alguns minutos, eis que aparece o diretor. Ele me cobrava o motivo pelo qual desliguei o telefone, dizia que em 17 anos nenhum assistente havia gritado com ele e com uma voz suave, bem diferente do telefone, dizia que eu era um péssimo profissional.
Ele encostava o rosto no meu e eu tentava evitá-lo olhando apenas para o computador. Dava para sentir o cheiro de álcool e seu descontrole emocional.
Ele falava que meu setor não gostava dele e que falávamos mal dele para os donos da produtora, parecia um pesadelo!
Por um segundo, tive a clareza de que aquilo era um caso de assédio moral. Estava com medo dele. E, instintivamente comecei a gravar o áudio da nossa conversa pelo celular. Em nenhum momento pensei em usá-lo de má fé, só queria enviar ao meu chefe para que ele tomasse as devidas providências, pois aquilo era algo muito sério.
Com o áudio ligado tomei coragem para discutir com o diretor, de alguma forma me senti protegido caso algo acontecesse. Resolvi expor toda a situação, e cobrar respeito, porém, ele não parava de falar, até que em um momento ele sorriu e soltou um sonoro: Vai o seu MACACO… interrompido por um lampejo de sobriedade em meio ao caos. Obviamente ele se deu conta da gravidade de suas palavras.
Fiquei trêmulo, ele rapidamente tentou se esquivar do que havia dito. Olhei para o celular e soltei o botão. Não queria acreditar que aquilo era verdade. Apenas decidi não discutir mais.
Ele saiu da sala.
Logo após voltou e ordenou que eu apagasse a gravação. O assistente dele havia visto eu gravando.
Uma coragem tomou conta de mim e toda vez que ele se aproximava eu apertava o “rec” e enviava direto para o grupo da pós-produção.
De alguma forma, a tecnologia me salvou. Tenho certeza que se não tivesse um aparelho em mãos não conseguiria agir cautelosamente. Muito provavelmente poderia perder a razão e virar o negro raivoso que não aguentou a pressão do mercado publicitário. Mas respirei fundo e resolvi não me comunicar mais. Ele dizia que eu tinha invadido sua privacidade, que ia ligar para seu advogado, inclusive pediu para seu assistente tirar o celular da minha mão.
Sem sucesso, foi embora.
A aprovação saiu quase as três horas da manhã e após isso pedi um Uber e fui para o último trabalho da noite, levar um HD na portaria de uma montadora. O meu horário de sair era as 22 horas, e quase 4 horas da manhã cheguei em casa.
Ao ouvir a gravação, chorei compulsivamente. Me senti violentado, humilhado, desvalorizado.
Era como se todas as minhas qualificações não valessem nada. Era como se eu tivesse que ser submisso a coisas sem fundamentos e não tivesse o poder para questioná-las. Caso eu tentasse questionar alguém me lembraria o quanto SOU MACACO.
Será que uma pessoa branca ouviria esse termo?
Lembrei o quanto as empresas defendem a importância da meritocracia, mas como são negligentes com as qualificações de profissionais negros.
Algumas reflexões só chegam quando há acontecimentos extremos.
Passei o pior final de semana da minha vida, chorava compulsivamente, até que um amigo ativista, Samuel Gomes, me visitou e orientou-me a fazer um B.O.
É impressionante como quando a nossa saúde mental está abalada não temos força para fazer o óbvio.
Fiz o B.O e notifiquei o meu chefe que queria a formalização de um pedido de desculpas e uma reunião com todos os sócios, em uma sala de reuniões, para discutirmos sobre preconceito racial. Eu não aceitaria uma conversa de corredor, o que havia ocorrido era um crime!
A minha intenção sempre foi ser didático, jamais agiria de má fé dentro da empresa que trabalhava há quase 4 anos. Queria ter a oportunidade de falar, e resolver o assunto de forma ética e profissional. Mas, a resposta não vinha, o silêncio me sufocava, perguntei ao meu chefe e ele disse que estava aguardando o sócio e o diretor retornarem.
Desde o início o meu chefe foi presente, mas sei que muitas coisas não dependiam dele, então, após uma semana de silêncio procurei a secretaria da igualdade racial, e posteriormente o Ministério do Trabalho.
Em 3 dias chegou a intimação, e assim o departamento jurídico me procurou para saber se eu gostaria de conversar com o diretor, naquele momento, o meu psicológico já estava abalado, eu não conseguia acreditar que realmente tive que procurar a justiça para ser ouvido! Cada vez mais sentia o peso de ser um negro dentro de uma empresa com poucos negros, em um ramo com poucos negros.
Resolvi ir até o fim, marcamos uma conciliação no Ministério do Trabalho.
Eu já tinha certeza que queria conciliar uma palestra interna para dialogar com o diretor e todos os funcionários. Pesei o fato de trabalhar com esse diretor há algum tempo e o fato de gostar de trabalhar na produtora, eu ainda tinha um pensamento quase utópico que um dia chegaria a valorização.
Porém, na conciliação, o diretor já chegou “armado”, queria ouvir o áudio e disse que não lembrava de ter me chamado de macaco. Senti hostilidade em sua abordagem então deixei claro que estava ali para fazer a conciliação. Caso ele quisesse ouvir o áudio iríamos sem problemas para o criminal. Ele, obviamente baixou a guarda.
Durante a conversa, ouvi tentativas ultrapassadas de provar que não era racista como: – Tenho muitos amigos negros, tenho um afilhado negro, já dei abrigo a um negro.
Ele até disse que era humilde porque gostava de ficar com a “ralé”, referindo-se aos funcionários do meu setor.
O coração doía, eu não conseguia ver reflexões ou arrependimentos, apenas o medo que ele tinha de levá-lo ao criminal. Pelo menos tive a oportunidade de fala, disse o quanto aquilo era prejudicial para empresa e o quanto o racismo fere milhões de negros nas instituições.
Saímos do ministério do trabalho com a conciliação de que faríamos uma movimentação com atividades e palestras para conscientizar a empresa sobre os malefícios do preconceito racial.
A empresa nunca se pronunciou, eu procurei várias vezes o dono da produtora, mas ele me evitava e o diretor que me chamou de macaco foi afastado, ou se afastou, pois ele sabia que se voltasse a acontecer eu não seria tão didático.
O silencio retornou.
Todas as tentativas de diálogo foram interrompidas, todas as minhas propostas de mudança de setor, negadas, então, em fevereiro de 2018 resolvi sair da produtora e comecei a analisar as minhas qualificações. Percebi que era muito mais ativo que os diretores da casa, pois eu filmo, monto e finalizo vídeos para o meu canal todas as semanas. Percebi que o setor audiovisual não dá oportunidades a negros e tudo isso era desmotivador.
Em 2016, no mesmo ano do ocorrido, graças a um edital de cotas do MINC, consegui produzir um filme curta-metragem, que foi selecionado para alguns festivais de cinema. Isso me motivou a continuar otimista. A oportunidade que o mercado audiovisual não me dava viria por conta de ações afirmativas. Resolvi falar sobre racismo e escrevi e dirigi o “Preto No Branco”.
Comecei a estudar todas as possibilidades de fazer uma boa carreira para o filme, e o mesmo foi selecionado para alguns festivais internacionais como InterFilm de Berlin, Festival de cinema da Índia, e dois festivais de cinema negro no Canadá. Eu queria provar para mim mesmo que era capaz, então, sem o apoio da produtora onde eu prestava serviços, fiz uma vaquinha, viajei para o Toronto Black Film Festival, exibi o filme e durante a viagem captei todas as vivências dessa experiência inspiradora.
Filmei toda a viagem, e resolvi transformar a experiência em um documentário a fim de percorrer favelas e escolas, e incentivar negros e periféricos a não desistir dos objetivos.
Intitulei o filme de “ O Cinema Me Trouxe Aqui”, e lancei o mesmo em um cinema da periferia.
A oportunidade a mim negada de palestrar na produtora onde ocorreu o racismo se transformou em motivação para levar reflexão a outros lugares então resolvi palestrar “ Da Favela Para As Telas” onde percorro Ongs, escolas, Fundação Casa e até o MAM (Museu de Arte Moderna).
A palestra também fez parte da programação do Social Media Week 2017.
Após voltar do Canadá pedi demissão da empresa que não soube lidar com o grave caso de racismo que ocorreu em suas dependências.
Fico pensando quantos negros estão sendo sugados pela falsa ideia da democracia racial / meritocracia e apenas são enganados por um sistema que suga suas energias e nunca lhes dão oportunidades.
Resolvi me dar o aval.
A partir da autoanálise das minhas qualificações compreendi que sou amplamente capacitado para fazer o que gosto, e a partir dessa autovalorização tive em um ano uma evolução profissional que em 10 anos não cheguei perto.
Atualmente faço palestras, monto vídeos, gerencio o meu Canal no Youtube que fala sobre racismo, periferia e homossexualidade e estou desenvolvendo dois curtas-metragens, um documentário, um longa-metragem, preparando um livro sobre a minha trajetória e presto serviços para uma agência de Creators Negros, a “Côrtes Assessoria”, gerenciada por uma empresaria negra, Egnalda Côrtes, onde cuido da parte audiovisual.
No final das contas, o grande recado que dou para os negros que convivem diariamente com o racismo estrutural e institucional é que antes de aceitar uma crítica negativa examinem as próprias qualificações e as qualificações do emissor, as vezes o aval tem que vir de si!
Infelizmente, no caso de injuria / racismo a conciliação não foi viável, então, se for preciso vá para o criminal.
Quanto as empresas, a grande lição desse caso é que as vezes vocês estão perdendo grandes talentos porque antes das qualificações vocês analisam a cor, a classe social e a sexualidade. Estamos em uma era em que a diversidade faz toda a diferença e em um país de 54% de afrodescendentes, será um grande erro não acompanhar a nova era da representatividade.
No final de tudo, não quero expor nomes da pessoa ou empresa, só quero usar a minha trajetória para causar uma real transformação na sociedade.
Meritocracia? Infelizmente para negros e periféricos não existe, mas sou otimista com a nova era que surge, afinal, se não me vejo , não consumo!
Como diz Viola Davis, só precisamos de oportunidades.
Valter Rege / Criador de Conteúdo – Cineasta
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