Prevista para este ano, a revisão da Lei estagnou no Congresso
Ítalo Cosme e Patrick Freitas
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As universidades se tornaram mais democráticas na última década graças à Lei de Cotas (nº 12.711/2012). O perfil do alunado é mais diverso. Mas só entrar é suficiente? Neste ano, a política pode passar por uma revisão. O Mundo Negro buscou cotistas beneficiados pela legislação para entender quais pontos precisam de atenção para aprofundar as discussões sobre o tema.
A principal queixa dos estudantes diz respeito às políticas de permanência. “Somente alimentação e moradia são insuficientes para manter o aluno na universidade”, resume Bruno Martins, formado pela Universidade Federal de Viçosa. Por conta das reduções bilionárias no orçamento das universidades, a assistência estudantil tem sido prejudicada. O contexto se agrava com o retorno das aulas para o formato presencial após o ensino remoto por conta da covid-19.
Além disso, Lilica dos Santos, acadêmica da Universidade Federal do Ceará, ressalta a necessidade de revisar o currículo, ainda muito eurocentrado, para incluir mais a literatura afrobrasileira. A universitária relata a relutância de professores para tornar as ementas das graduações mais diversas. Para superar, ela própria montou grupo de acolhimento para calouros negros a fim de tornar a chegada dos novatos menos traumática.
Ed Santana ressalta a importância da adoção das cotas em outros segmentos da sociedade, principalmente no mercado de trabalho. Para ele, é necessário ultrapassar o percentual atual de 50% das vagas reservadas. O arquiteto formado pela UFBA comenta que, apesar de estar na cidade mais negra fora do continente africano, o mercado de trabalho ainda é muito branco. O baiano conta ainda da importância de devolver à comunidade o conhecimento adquirido na universidade pública.
Conheça histórias de quem foi beneficiado pela Lei de Cotas e entenda a conjuntura do debate
Currículo eurocêntrico reforça racismo na universidade, avalia Lilica Santos
Estudante de Sociologia, educadora social em Fortaleza e produtora cultural está no último ano da faculdade
Como um dos últimos compromissos do dia, Lilica Santos discursou no fim de março, no auditório do curso de Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), sobre sua experiência enquanto universitária cotista da instituição. A jovem de 23 anos exaltou o modelo de entrada, mas classificou a relação que teve com o espaço acadêmico e com os professores como “conflituosa”.
Em novembro de 2021, como produtora executiva, a jovem reuniu, durante uma semana, centenas de pessoas na 1.ª edição do Festival Negruras, em Fortaleza, para discutir sobre raça no estado, o primeiro do País a libertar escravizados, em 1883
No último ano da faculdade, Lilica também é educadora social no espaço criativo Soulest, na orla de Fortaleza. A acadêmica entrou em 2017 por meio da Lei a qual se encaixava como estudante integral da escola pública, pobre e mulher negra. “Eu tencionava que nós precisávamos ler autores e autoras negras no Departamento (da UFC), que tínhamos a mesma ementa há muito tempo.”
O conflito, reforça, ocorre porque há um apego por parte da branquitude em cravar os pensadores cânones. “Esse apego se baseia numa forma de controle. Foi o que eles estudaram. Antes nós estávamos fora da universidade. Foi a ciência que eles produziram, e é a ciência difundida no pensamento mundial.”
Lilica entende que parte do que ela chama de genocídio negro se estabelece a partir de um pilar em que há o apagamento da cultura e dos saberes deste povo em detrimento de valores ocidentais na academia.
A jovem relata um dos episódios onde a prática pedagógica foi utilizada para racismo no ambiente universitário. Ela lembra de discutir com uma das professoras sobre como a antropologia é precursora e anda de mãos dadas com a estruturação do racismo, desde os primeiros estudos sobre os povos africanos, a estereotipação das culturas, até a falta de racialização dos debates.
A docente dizia que o que a aluna apresentava não poderia ser considerado em sala de aula. “Quando eu digo que aquilo que o estudante está apresentando não é ciência, eu estou cometendo um epistemicídio. Eu estou negando que a universidade seja plural e abra as portas para intelectuais que trabalham a partir de outras perspectivas”, matura.
Em nota, a UFC destaca que, desde 2013, determina a inclusão do eixo temático relações étnicos-raciais e africanidades, bem como os eixos temáticos educação ambiental e educação em direitos humanos, como componente curricular nos Projetos Pedagógicos dos cursos de graduação (PPC).
“A Pró-Reitoria de Graduação estabelece ainda em seu documento de orientação que a abordagem de conteúdos pertinentes, em especial, às políticas de educação ambiental, de educação em direitos humanos e de educação das relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-brasileira deve ser considerada na atualização dos PPC, constituindo-se em requisitos legais na propositura dos projetos pedagógicos”, reforça.
A chegada de Lilica com leituras, iniciativas e desenvolvimento de pesquisas afrocentradas não é um caso isolado, como pontua a ex-ministra Nilma Lino Gomes. Para a primeira mulher negra reitora do país, a adoção da lei visibilizou ainda mais, nas instituições públicas de ensino superior, uma produção epistemológica que deu nova vida e ânimo ao ensino, à extensão, à pesquisa e à internacionalização.
“Vários conceitos e categorias analíticas, com as quais estávamos e ainda estamos acostumados comodamente a trabalhar, têm sido indagadas pela juventude negra, periférica, quilombola, do campo, indígena, trans. Eles trouxeram a sua corporeidade, a sua estética, outros conceitos, outros autores e autoras, outras indagações, advindas das suas experiências sociais. Isso tem feito a universidade repensar sua relação com o conhecimento”, analisa Gomes.
Lilica é uma das fundadoras de um grupo voltado para estudos afrocentrados e recepção de calouros no departamento de Sociologia da UFC. Para ela, apesar dos avanços, a universidade ainda não consegue acolher bem essa população. A jovem tem se destacado no Ceará pelo trabalho cultural e educativo que tem feito. Um dos objetivos é realizar mais uma edição do Festival Negruras.
Educador tinha uma visão da universidade branca, mas se surpreendeu
Formado em Geografia no ano de 2021 na UFV, o professor destaca a necessidade de assistência estudantil mais ampla; UFV sofre com falta de recursos e diz que repasse precisa ser o dobro para atender demandas
Ao chegar na universidade em 2017, Bruno Martins já imaginava que encontraria na Universidade Federal de Viçosa (UFV) um espaço formado por pessoas brancas, mas se surpreendeu. Na licenciatura de Geografia, Bruno se deparou com muitos colegas negros. Mas logo percebeu que essa era uma característica das licenciaturas.
De acordo com a Pró-reitoria de Ensino (PRE) da instituição, em 2013, 37% dos estudantes que ingressaram na UFV se identificaram como pretos, pardos ou indígenas. O porcentual se ampliou gradativa e sistematicamente, tendendo a uma estabilização a partir de 2019. Em 2022, 50% dos que entraram se autodeclara PPI. Para a universidade, o espaço acadêmico está mais plural, o que se assemelha à realidade da sociedade brasileira.
“Entretanto, é importante frisar que não consideramos que a dívida histórica do país com esse público esteja equalizada, o que justifica, a nosso ver, a manutenção da política de cotas, com um enfoque maior na questão da permanência nas instituições”, ressaltou.
Para Bruno, no entanto, ainda há uma segregação racial por curso. Conforme levantamento da Andifes de 2018, Engenharias é a área em que brancos são maioria e pretos e pardos (as) minoritários, relativamente a todas as áreas do conhecimento. Ao mesmo tempo, brancos têm o menor percentual nas áreas de Linguística, Letras e Artes e de Ciências Humanas.
A publicação “Balanço dos dez anos da política federal de cotas na educação superior”, de Adriano Souza Senkevics e Ursula Mello, mostra que os cursos mais transformados pela política afirmativa foram justamente aqueles que apresentavam o menor contingente de estudantes de origem social vulnerável, ou seja, os cursos mais competitivos, seletivos, prestigiados e, portanto, com o maior potencial de retornos econômicos no mercado de trabalho.
Em relação às notas de corte, de acordo com o MEC, os cursos de Medicina, Direito, Engenharia de Produção e Odontologia exigem pontuação mais alta. O topo da lista é encabeçado pela Medicina da Universidade Federal do Maranhão, com pontuação mínima de 952,51 para entrar por ampla concorrência no primeiro semestre de 2021.
Enquanto na outra ponta estão Química, Humanidades, Engenharia Florestal, Geografia e Física. Destes cursos, o primeiro é o menos concorrido na Universidade Federal da Fronteira Sul, no Paraná, com mínima de 363,32, na edição do primeiro semestre de 2021.
Entrar na universidade não foi o único desafio para o professor Bruno. O educador contratado na rede de ensino de Minas Gerais morou no alojamento oferecido pelo campus e recebeu bolsa de assistência estudantil através de uma seleção paralela. Ele também tinha acesso ao Restaurante Universitário.
No entanto, para ele, não havia uma assistência financeira realmente impactante. “Somente alimentação e moradia são insuficientes para manter o aluno na universidade. Embora o acesso seja amplo, faltou oferecer políticas de real permanência na instituição.”
Bruno cita que teve colegas na residência universitária com condições piores. A sorte do professor era que a mãe conseguiu lhe ajudar enviando recursos, mas outros colegas cotistas não tinham a mesma possibilidade.
Em nota, a Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários (PCD) informou que os estudantes em vulnerabilidade socioeconômica podem ser atendidos com serviço ou auxílio moradia, alimentação gratuita ou com 75% de subsídio, auxílio creche (destinado aos que têm filhos em idades pré-escolar), e bolsa de aprimoramento e aperfeiçoamento profissional.
Auxílios emergenciais também podem ser concedidos, se necessário. Além disso, a UFV, destaca o setor, oferece atendimento nas áreas de saúde física e mental e programas de esporte, lazer e cultura para todos os seus estudantes.
A Universidade, no entanto, não vive um bom momento financeiro, situação semelhante em outras instituições federais, o que prejudica atendimento ao alunado mais vulnerável.
Após se formar, Bruno passou em dois concursos nas redes de ensino de Belo Horizonte e do Espírito Santo. Está classificado, mas ainda não foi nomeado. Nos dois certames, o candidato optou por ingressar por meio de cotas.
Dificuldade no mercado de trabalho e retorno para sociedade marcam vivência de arquiteto da 1.ª turma de cotistas da UFBA
Ed Santana defende que o total de vagas destinadas aos pretos, pardos e indígenas seja equivalente à população por estado
O curso de arquitetura da Universidade Federal da Bahia ganhou um pouco mais de melanina após a implementação da Lei de Cotas. A avaliação é de Ed Santana, ex-discente da graduação, sobre quando ingressou no primeiro ano de implementação da política afirmativa. O baiano só se formou em 2020, sete anos depois da entrada no ensino superior.
O arquiteto diz que o senso de responsabilidade social foi aguçado depois de entrar na universidade. Além de trabalhar como arquiteto, Ed atua em um projeto no Instituto Cultural Steve Biko, voltado a pessoas negras. Na capital baiana, ele trabalha com uma turma de mulheres negras no ensino médio, da escola pública Centro Educacional Edgard Santos.
O grupo ao longo dos três anos desenvolveu um projeto para tornar a biblioteca da instituição mais acessível e fomentar as potências dos estudantes. O projeto encontra-se na fase final de execução.
Além das recompensas mais diretas, Ed celebra o dia a dia: “No ano passado, conseguimos ler três livros juntos. Quatro mulheres negras leram um livro inteiro pela primeira vez escrito por outra mulher negra. Foi uma energia surreal, elas choraram”.
Para o jovem de 28 anos, a política de cotas é essencial, mas é insuficiente se não ajuda o estudante a permanecer; se quando graduado, fica sem emprego. Mesmo na cidade mais negra do mundo fora do continente africano, ele lamenta as dificuldades de acessar o mercado de trabalho em Salvador e a falta de representatividade nos espaços políticos.
“Nós continuamos na mesma situação. São mais de 500 anos de escravidão e exploração do povo negro e indígena. Só mudou de nome. Para discutir cotas, precisamos começar por aí. O que é uma cota? Ainda não é nada. Na verdade, os brancos que perderam sua mão de obra que foram reparados pelo Estado. Nós, os escravizados, fomos jogados para a fome. Cota não é reparação alguma. Se a gente fosse discutir reparação, nós estaríamos discutindo outras coisas.”
Para ele, o primeiro passo é pensar em equivalência: de moradia, de salário, de oportunidades trabalhistas, de acesso à saúde. E, em relação à educação, especialmente na universidade, que o percentual total das vagas de cada curso, não apenas dentro dos 50% das vagas reservadas, para pretos, pardos e indígenas, seja definida de acordo com o percentual da população que se identifica como tal de acordo com cada estado.
Na UFBA, 75,6% dos alunos são negros, ante 76,7% no Estado, segundo a Pnad/Ibge de 2018. O percentual de negros na UFBA é bastante superior ao do conjunto das universidades federais: 51,2%, o maior da série histórica da pesquisa, e ao da população brasileira, 60,6%, também segundo a Pnad.
Em relação às outras 64 universidades e institutos federais (Ifes) que participaram da pesquisa, a UFBA é a que tem maior número de alunos autodeclarados pretos: 32,2%, ante 15,5% no Nordeste, e 12% no país.
Para Ed, por conta dos altos custos do curso, seja para comprar material ou deslocar-se para aulas de campo, por exemplo, a permanência do estudante de arquitetura na universidade é o maior obstáculo para um cotista. À época, diz ele, havia uma bolsa-material, mas nem todos eram contemplados. Para muitos, conciliar trabalho com estudos é o caminho. Para outros, abandonar é a solução.
Conforme a pesquisa da Andifes, em 2014 o percentual de estudantes ocupados era de 35,3%, 5,4 pontos porcentuais a mais do que em 2018. Naquele ano, do
total de discentes, 29,9% trabalhavam.
Para finalizar, o arquiteto provoca: “Imagina estudar em uma escola pública. É preciso ter muita força. A professora e os alunos chegam na escola e não tem banheiro, não tem água, não tem lanche. Se o ensino básico tivesse mais qualidade, a gente também não precisaria discutir essa coisa tão afundo assim. Se a gente tivesse em par de igualdade educacional, econômica, nutricional e habitacional, a cota não era nada.”
Vagas para indígenas são insuficientes, defendem amazonenses
Ex-presidente do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas e doutorando em Antropologia apontam necessidade de espaços de valorização dos saberes e apoio financeiro
Localizada no estado com a maior concentração indígena do País, a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) passa por intenso debate em relação às vagas exclusivas para a população originária local. Esta é a principal bandeira do movimento estudantil. Isso porque as vagas na Lei de Cotas não dão conta da demanda.
Erimar Miquiles, do povo sateré-mawé, passou os últimos quatro anos à frente do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam). O acadêmico de Direito na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) diz que muitos amazonenses têm prestado vestibular em universidades federais que já adotam a modalidade exclusiva para indígenas.
Doutorando em Antropologia Social na Ufam e representante no Colegiado Indígena, Diakara Dessano considera que há um sequestro de conhecimento por conta disso. “A Ufam, criada dentro do coração da amazônia, não consegue sentir a circulação de sangue de várias etnias. O curso de Medicina só tem duas vagas para indígenas. Nós queremos mais vagas”, reivindica.
“Quem não tem condição de pagar pela privada, tem de tentar fora. Essas universidades, inclusive, executam as provas aqui. O candidato faz e, se aprovado, vai embora”, diz Miquiles. Criada em 2001, a UEA adotou o modelo específico de entrada em 2005.
Entre as universidades que adotam o vestibular indígena estão a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade de Brasília (UNB), Universidade Federal de Roraima (UFRR), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal do Pará (UFPA).
“A pauta principal dentro da universidade é reservar vagas exclusivas para indígenas, uma ou duas, por curso. Isso não traz prejuízos para a instituição”, acredita Miquiles, o ex-coordenador do movimento estudantil.
Dessano, por sua vez, reconhece a conquista através da Política de Cotas, mas diz que trata-se de um “vestibular-dipirona”, tendo em vista que não acolhe de forma efetiva os universitários nem atende a demanda. “Deram a chave para entrar via cotas como simbologia. Mas é uma casa sem estrutura”, compara.
O doutorando defende que a universidade precisa trocar a lente que usa para olhar o indígena, que detém de filosofias e olhares diferentes. O estudioso ressalta a necessidade de qualificar os conceitos teóricos e epistemológicos dos conhecimentos de cada povo e suas identidades.
Na avaliação dele, os primeiros cotistas beneficiados pela legislação enfrentaram resistências e preconceitos ao ingressar na universidade, mas isso mudou ao longo dos anos. “Hoje essa pessoa já está fazendo mestrado, doutorado. Ele mesmo está discutindo na universidade o que teria mais possibilidade do que impossibilidade com sua presença na faculdade.”
Miquiles sinaliza que pequenas mudanças já fazem a diferença na vida de um indígena no ambiente universitário. Para ele, é necessário tornar os editais mais acessíveis, com possibilidade de renda desde o primeiro semestre da graduação, além de fomentar grupos de trabalho e discussão sobre pautas específicas.
“A grande maioria dos estudantes vêm do interior para estudar na capital. A gente vê outra realidade. Ninguém está acostumado a um centro urbano tão grande. Nossos parentes vêm de lugares distantes, onde se pode fazer tudo a pé, aqui é diferente. Esses novos universitários chegam e precisam de suporte”, considera Miquiles.
Dessano recomenda a criação de espaços específicos, como centro de saberes tecnológicos e epistemológico dos saberes indígenas, metodologia e programa de ensino específicos, para que o indígena, graduando, mestrando e doutorando, possa repassar aos não-indígenas do que trata-se o conhecimento de cada povo e fazer com que eles também entendam os saberes.
Confira a primeira reportagem desta série especial sobre os 10 anos da Lei de Cotas.
Esta pauta foi selecionada pelo 3.º Edital de Jornalismo de Educação, iniciativa do Itaú Social e da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca).
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