Tatiana Tiburcio fala sobre a importância do amor negro em ‘O Jogo que Mudou a História’

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Tatiana Tiburcio fala sobre a importância do amor negro em ‘O Jogo que Mudou a História’
Foto: César Diágones

O Jogo que Mudou a História’, nova série Original Globoplay que conta a história real de como surgiram as facções reais e o crime organizado no Rio de Janeiro, nas décadas de 1970 e 1980, estreou nesta quinta-feira, 13 de junho, na plataforma de streaming.

Na trama, Tatiana Tiburcio interpreta a Jacqueline, advogada que é casada com o Rosevan (Bukassa Kabengele), mais conhecido como Mestre. Ele é um dos líderes da Falange Vermelha, facção que se criou na época. No início da produção, ele está preso e mostra como os dois enfrentam essa situação difícil. Em meio às violências retratadas, o amor entre este casal é um momento de mais alívio e esperança na história. 

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“A presença da Jacqueline e do Rosevan se faz tão importante, do amor desse casal, é um amor calçado no companheirismo, na amizade, no afeto, na família. Tem uma relação que não está atrelada à paixão, ao sexo, em um lugar de virilidade exagerada”, afirma Tatiana, em entrevista ao Mundo Negro. “Colocar esse casal, tendo uma relação atrelada a outros sentimentos e intuitos, que estão para fora dos estereótipos a nós associados, é importantíssimo. Nos permite uma visão de humanidade sobre esses corpos e é isso que buscamos quando falamos da construção de uma nova narrativa preta”, completa.

Embora Jacqueline aparente muita bravura para o marido, ela é o retrato sobre a solidão da mulher negra, por lidar com um marido preso, a sobrecarga nos cuidados dos filhos e a busca pela oportunidade de trabalho sendo uma advogada formada. “Ela é uma mulher que ainda continua na luta, guerreando contra uma estrutura que a nega em todos os sentidos, enquanto mulher, mulher negra, oriunda da classe social da qual ela vem. Jacqueline é uma mulher negada o tempo inteiro, mas que não se rende e mantém a sua dignidade e integridade nessa luta pelo direito de existir”, conta a atriz.

Durante a entrevista, Tatiana Tiburcio também reflete sobre como a série ‘O Jogo que Mudou a História’ é necessária para entender a falta de responsabilidade do Estado com a população negra e como o racismo também se conecta com encarceramento em massa de pessoas negras.

Tatiana Tiburcio como Jacqueline e Bukassa Kabengele como Mestre (Foto: Divulgação/Globoplay)

Leia a entrevista completa abaixo:

Em meio à violência retratada na série, o telespectador vai poder sentir um pouco de alívio com a aparição de sua personagem Jacqueline e seus filhos com o marido Mestre. Como você avalia a importância dessa retratação de um amor negro na trama?

Eu acho que é muito importante apresentarmos o sujeito negro para fora ou para além do estereótipo a ele atribuído. Falamos de uma série onde o estereótipo da violência está muito presente, está muito latente. Afinal de contas, estamos falando do surgimento de uma grande facção criminosa no Rio de Janeiro. Então, não tem como não estar retratado ali um dos estereótipos a nós atribuídos. Justamente por isso, a presença da Jacqueline e do Rosevan se faz tão importante, do amor desse casal, é um amor calçado no companheirismo, na amizade, no afeto, na família. Tem uma relação que não está atrelada à paixão, ao sexo, em um lugar de virilidade exagerada, que é um outro lugar estereotipado também. É muito necessário, traz uma camada muitas vezes excluída, negada a nós, que é a humanidade. Somos plurais, somos múltiplos. Colocar esse casal, tendo uma relação atrelada a outros sentimentos e intuitos, que estão para fora dos estereótipos a nós associados, é importantíssimo. Nos permite uma visão de humanidade sobre esses corpos e é isso que buscamos quando falamos da construção de uma nova narrativa preta.

Ter uma mulher preta sendo representada na década de 70 e 80 como uma advogada, ainda é uma novidade nas produções brasileiras. Ainda assim, é difícil não associar a uma personagem que sofre com uma sobrecarga nos cuidados dos filhos, por se tratar da realidade. Como você enxerga a solidão das mulheres negras, sobretudo em comparação da época com a atualidade?

Em relação à solidão das mulheres negras, isso é um campo tão amplo, é tão gigante falar disso. Você está falando dessa mulher enquanto mulher no gênero feminino, em seus desejos em relação a um parceiro ou parceira. Falando dessa mulher dentro de um contexto maior em relação à maternidade, por exemplo. Falando dessa solidão em relação ao trato no ambiente de trabalho. Falar da solidão da mulher negra é algo extremamente amplo. A Jacqueline carrega vários lugares dessa solidão, nessa condição de ter batalhado tanto. No momento que ela se torna uma advogada em um país racista como o Brasil, e que ainda é muito atualmente, é uma imensa vitória. No entanto, as condições sociais que acercam e que colocam pessoas como ela, Rosevan e seus filhos, em uma condição de difícil acesso a facilitar possibilidades e oportunidades, faz com que não consiga usufruir dessa vitória e colher todos os frutos necessários e justos dessa conquista tão árdua. Quer dizer, quando você pensa em uma pessoa formada em direito, em um advogado exercendo a sua profissão, você pensa em uma pessoa estruturada economicamente. Isso se essa pessoa for branca, se ela não for, tudo fica um pouco mais complexo, entram outros elementos que vão dificultar esse caminho e, por vezes, até impossibilitar de usufruir desse êxito em toda a sua plenitude. E é um pouco o que acontece com a minha personagem, ela acha um lugar para exercer a sua profissão dentro das condições que o Estado a mantém, que impõe para ela. Eu acho a Jacqueline uma guerreira, ela não termina nunca de batalhar. E, de certa medida, tendo que colocar esses sonhos em segundo plano para conseguir manter a existência dessa família física e emocionalmente. Ela é uma mulher que ainda continua na luta, guerreando contra uma estrutura que a nega em todos os sentidos, enquanto mulher, mulher negra, oriunda da classe social da qual ela vem. Jacqueline é uma mulher negada o tempo inteiro, mas que não se rende e mantém a sua dignidade e integridade nessa luta pelo direito de existir.

E como o Estado pode intervir diretamente nessa condição que atinge as mulheres negras?

Eu acho que o primeiro de tudo é reconhecer ser racista. O estado brasileiro, a sociedade brasileira, precisam de forma clara, direta e objetiva reconhecer ser racista. Entender que a estrutura econômica, política, social da nossa sociedade como um todo, apesar de toda a sua diversidade, é estruturada a partir de uma visão racista e preconceituosa, de uma estrutura escravocrata. Toda a origem cultural e social desse país vem dessa relação. A economia desse país vem dessa relação. As estruturas, os tratos sociais, a visão sobre os agentes sociais, os sujeitos sociais da nossa sociedade brasileira vêm dessa relação. Então, não tem como discutir qualquer questão social, econômica e política dentro desse país sem colocar a questão racial na frente, ou não vamos conseguir enxergar o problema como ele realmente é. A justiça, a política, a economia, a geografia são racistas e preconceituosas. Enquanto o estado não reconhecer isso vamos ter que continuar batalhando muito acima da média para conseguir alcançar os nossos objetivos. Conseguimos, o povo preto é um povo que sobrevive ao racismo há quatro séculos. Sobrevivemos à escravidão e sobrevivemos ao racismo até hoje. Vamos continuar sobrevivendo, mas o que queremos é viver e não sobreviver. E vamos continuar lutando e batalhando para poder conseguir alcançar isso um dia, estamos plantando hoje as sementes para que os nossos lá na frente colham os frutos disso. Essa vitória virá e isso é um fato.

Jacqueline é uma personagem real ou fictícia? Como foi o seu processo de preparação para estudar esse papel?

A Jacqueline é inspirada em uma personagem real, mas durante o processo foi uma construção muito mais na direção de tudo isso que viemos falando aqui, dentro de um viés de militância e compreensão da questão racial, do que a uma associação direta a personagem real. Não negando a representatividade ou a consciência dessa personagem na vida real, mas entendendo que era uma grande oportunidade de trazer elementos mais amplos, plurais, gerais. Para além do indivíduo, e eu acho que isso foi um grande acerto.

A série aborda temas muito relevantes sobre segurança pública e direitos humanos básicos sendo violados nos presídios e nas periferias. Como você avalia a importância dessa produção hoje em dia, em especial para a população negra?

Eu acho que já passou da hora de refletirmos sobre as condições, o que entendemos enquanto sociedade sobre encarceramento. Isso passa muito pela resposta anterior sobre a responsabilidade do Estado em relação aos sujeitos negros. Se você olha o contingente de pessoas dentro dos presídios no Brasil como um todo, você vai ver a cor dessas pessoas. E isso não é em vão, isso não é à toa. Isso vem de uma visão racista, preconceituosa sobre a pele, a cor, a representação desse indivíduo. Isso passa pelo reconhecimento do Estado enquanto um Estado racista. A compreensão dessa condição de Estado vai levar a reflexão sobre os caminhos de estruturação das relações sociais, que vão reverberar na compreensão da estrutura geográfica, como você lida com a formação dos bairros, com o meio de transporte. Tem a visão sobre o cuidado que você tem que ter com os transportes de linha A e de linha B. Você está entendendo que tudo isso interfere. Eu acho que toda a luz que possamos jogar para um debate que possibilite a reflexão sobre essa necessidade de reestruturar o olhar sobre as grandes mazelas da construção da nossa sociedade é válida. Eu acho que é válido, é importante, mais do que isso, é necessário.

Além de ‘O Jogo que Mudou a História’, os fãs já podem aguardar por novos projetos contigo? Algo que possa compartilhar com o Mundo Negro.

Uma das coisas que eu acho mais legais na nossa profissão é a possibilidade de vivenciar e experienciar, às vezes, até ao mesmo tempo, universos tão diferentes e diversos. Ao mesmo tempo em que estou estreando ‘O Jogo que Mudou a História’ no Globoplay, estou em ‘Passinho: o Ritmo dos Sonhos’, da Disney. É um projeto como se fosse ‘High School Musical’, só que dentro de uma construção do passinho, do universo do passinho carioca. Dessa cultura do passinho que cerca todo o universo dessa dança. E sem passar pela violência, sem passar por mazelas imediatamente associadas a esse universo. Também estou muito feliz com esse projeto. Tem um espetáculo para estrear agora, no próximo mês, em julho, no SESC Copacabana, sobre a obra ‘Ponciá Vicêncio’, de Conceição Evaristo. Tem outros projetos de novela, de série, mas esses ainda não posso falar. Por enquanto, tenho que segurar um pouquinho. Teatro, cinema, televisão, streaming, tem coisas bem bacanas vindo e eu estou muito feliz. Tem muita coisa boa vindo por aí, acho que vocês vão curtir.

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