Há exato um ano atrás,o ex-segurança George Floyd foi assassinado pelo policial Derek Chauvin. O funcionário de uma loja chamou a polícia alegando que Floyd usou uma nota falsa para pagamento e o que veio em seguida foi o pescoço do policial branco por mais de nove minutos contra o pescoço do homem negro de 46 anos que, apesar dos apelos por ar, só teve sua agonia interrompida pela morte.
O mundo estava em quarentena por uma doença que poucos entendiam, mas a força da filmagem daquele homem pedindo para respirar inspirou uma onda de protestos que começaram nos Estados Unidos e se espalharam pelo mundo. O movimento “Black Lives Matter” chegou ao Brasil com a exata tradução de “Vidas Negras Importam”, inspirando pessoas a irem para as ruas fazer frente à manifestação de apoiadores do governo, assim como artistas de várias áreas emprestaram suas redes sociais para influenciadores negros a fim de que falas antirracistas tivessem voz e rostos pretos.
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Após essa onda, o que mudou? Qual a relação entre a morte de George Floyd e o racismo estrutural e institucional no Brasil? Para a pesquisadora de Relações Raciais e professora da Universidade de Brasília (UnB), Kelly Quirino, o mundo está em quarentena, prestando atenção às notícias, com pessoas angustiadas, ver a gravação foi um catalisador para as ações que seguiram. “A morte do George Floyd ano passado na realidade ganha contornos mundiais por causa da questão da pandemia naquele momento e tem a questão da gravação. A gravação e a forma com que foi gerou uma comoção mundial”, diz.
A professora lembra que o movimento “blacklivesmatter” surge antes, por exemplo já há protestos espalhados pelos Estados Unidos com a morte do jovem Michael Brown, alvejado por um policial com apenas 18 anos de idade. Com mais pessoas conectadas às redes sociais e maior velocidade de conexão, as pessoas sofreram o choque ao mesmo tempo daqueles nove minutos.
Apesar da comoção com a morte de um homem negro em outro país, não tivemos nada parecido quando perdemos o garoto João Pedro ou a menina Agatha.As informações vindas dos Estados Unidos parecem ter maior efeito no imaginário brasileiro quando se trata de compelir pessoas a se indignarem. “Os Estados Unidos e o Brasil têm processos diferentes em relação ao racismo. Nos Estados Unidos a abolição começa com a guerra de secessão. Os Estados do norte ganham dos Estados do sul que são obrigados a acatar, mas instalam leis segregacionistas como a Lei Jim Crow que legalmente colocam os negros em espaços diferentes dos brancos. Elas vigoram até os anos 50 onde acontece o caso da Rosa Parks parte que se recusa a levantar do ônibus”, explica.
As leis segregacionistas dos EUA geram um forte marcador racial que acaba por influenciar em como os negros norte-americanos se entendem dentro daquela sociedade, o que explica a razão dos protestos mais numerosos serem mais comuns por lá. “O próprio fato de ter universidades para negros no século 19 diz muito sobre o processo de formação histórica dos Estados Unidos. As pessoas terem saído á rua pelo direito a acres de terra diz muito desse processo que é um processo de segregação racial, mas que também é colocado como componente a educação por meio das Universidades o direito ao comércio, a uma casa, à condições mínimas de sobrevivência”, diz a professora, que explica que o Brasil não explicitou o racismo juridicamente explícito como nos Estados Unidos, mas que perpetuou a violência contra o negro por meios de códigos jurídicos como a Lei do Capoeira e a Lei de Terras.
No Brasil, um ano depois da comoção causada pelas ‘vidas negras importam’, tivemos a polícia matando 24 moradores do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e os artistas que levantaram a antiga hashtag pouco se mostraram indignados em suas redes sociais. “Historicamente a classe artística que sempre foi comprometida com o povo preto é o rap. Você tem Racionais, MV Bill, Facção Central, que é a música de preto feita por preto. Agora a classe artística mainstream é uma classe média branca que está em espaços que a população negra está em situação de subserviência”, aponta a pesquisadora.
Para quem viu esperança nos espaços cedidos durante o fatídico maio de 2020, o que se seguiu foi o contínuo morticínio de pessoas negras, seja por formas violentas, seja por causa da negligência do Estado com a pandemia do coronavírus. No entanto, diante da normalização da morte de pretos brasileiros, não houve comoção. “A nossa formação enquanto país é uma formação extremamente violenta com pessoas negras, com indígena, com mulheres, e com crianças, só não somos violentos com homens brancos quando essa violência chega no homem branco, aí vem as passeatas da paz, querem reduzir a maioridade penal. O nosso projeto de país na questão racial é nosso calcanhar de Aquiles”, diz Kelly.
Ao contrário do Brasil, há uma classe média negra influente e personalidades influentes, como a cantora Beyoncé e jogador de basquete Lebron James, que não deixam arrefecer a lembrança das violências pelas quais passam os negros. Ainda assim continuam morrendo pretos, mas a luta parece mais delineada pela transparência das posições dos indivíduos que a compõem. A polícia toma decisões contra os seus apenas após muita pressão das ruas e algumas reformas são previstas em departamentos marcados pela violência policial. A própria condenação do assassino de George Floyd é incomum no judiciário norte-americano.
“Uma reforma no judiciário brasileiro não seria suficiente. Teria que ser uma reforma no judiciário e na polícia”, aponta como solução a pesquisadora. “A polícia no Brasil serve para manter os espaços brancos numa lógica do período colonial. Tinha a figura do capataz que protegia a casa grande e hoje a polícia serve para manter a estrutura da elite”, conclui.
Nunca saberemos como seria a extensão das manifestações aqui no Brasil se não estivéssemos no decorrer de uma pandemia sob um governo conservador, mas ao menos já é uma demanda dos movimentos negros que a base da sociedade seja transformada para que mais pretos não sejam assassinados e quando ocorrer que a injustiça não vença. Se a estrutura se mantém branca nada muda. “Nós pretos. Tentamos entrar no judiciário nos lugares para fazer mudanças, mas tem que ser estrutura total de cima para baixo. Sem ser com uma revolução completa fica muito complicado evitar que nossos George Floyd não morram”, conclui.
Após um ano do pico de indignação, o Brasil da elite voltou ao patamar de antes, mas os coletivos e a mídia negra continuam com esse trabalho de mostrar que as vidas negras importam para além de um único momento de catarse coletiva. Para a pesquisadora o jornalismo tem uma responsabilidade muito grande de fazer denúncia, conscientizar a população e fomentar o debate “Enquanto a gente não tiver matérias que mostram que os jovens morrem por ser negros, não conseguiremos avançar ainda, não estamos conseguindo e isso é muito ruim. ”A gente repete que ‘vidas negras importam’, mas nesse atual momento político a polícia segue muito forte, fizendo incursões ilegais no Jacarezinho e matando. Temos muito que avançar. Enquanto isso, a gente continua fazendo essa resistência seja na academia, ou seja no jornalismo alternativo. Porque temos que acabar com a necropolítica. É a necropolitica que coloca corpos negros para serem assassinados como de George Floyd”, termina.
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